SAC 24 horas: intervenção inconstitucional no domínio econômico
23 de setembro de 2024, 13h22
A bem-intencionada proposta da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), que pretende impor atendimento pessoal no SAC por 24 horas diárias, é inconstitucional por violação ao princípio da livre iniciativa e configura intervenção desproporcional no domínio econômico. De acordo com ela, na hipótese de não ser observada a determinação, o acesso ao SAC poderia ser interrompido (artigo 2º, § 3º).
Ele é definido como “o serviço de atendimento realizado por diversos canais integrados com a finalidade de dar tratamento às demandas dos consumidores, tais como informação, dúvida, reclamação, contestação, suspensão ou cancelamento de contratos e de serviços” (artigo 2º, caput).
O princípio da livre iniciativa, previsto no artigo 1º, IV, e reiterado no artigo 170 da CF, é um dos pilares sobre o qual se arrima a ordem econômica nacional, sendo essencial para assegurar a liberdade e a autonomia às empresas em seus negócios, protegendo-as contra a exagerada incursão do Poder Público.
Inconstitucionalidade
Ao impor obrigações desproporcionais que aumentem demasiadamente os custos do produto e inviabilizem modelos de negócio, a intervenção estatal acaba por colidir com a CF, onerando a atividade empresarial sem oferecer nenhuma contrapartida.
A Lei Federal nº 13.874/2019, Lei da Liberdade Econômica, enfatiza que os agentes econômicos devem desenvolver suas atividades com o mínimo de interferência estatal e têm o direito de definir livremente os preços de seus produtos e serviços (artigo 3°, inciso III).
Estabelece também que o Estado deve intervir na economia somente de maneira subsidiária e excepcional (artigo 2°, III), abstendo-se de impor barreiras desnecessárias ou excessivas ao funcionamento das empresas.
A proposta, desacompanhada do estudo de viabilidade econômica e sem prévio debate no Poder Legislativo pretende que, mediante ação unilateral do Executivo, sem a participação do Congresso, sejam impostas restrições à liberdade do comerciante de decidir como administrar seus custos e definir suas estratégias de preço, elementos fundamentais da autonomia gerencial assegurada pela livre iniciativa e pela liberdade econômica. Retira também do consumidor o direito de escolher pelo critério do preço, em vez do critério do SAC.
Impacto
A ausência de estudo de impacto econômico e a falta de debate prévio no parlamento imprimem um caráter imperativo à proposta e pode trazer efeitos contrários aos que se pretende produzir. O primeiro deles será o aumento do custo da operação, o qual certamente será repassado ao consumidor final, violando o princípio da transparência nas relações de consumo.
O consumidor, sem saber, arcará com os custos da nova exigência. É natural que, sendo a atividade empresarial movida pelo lucro, o enorme aumento de despesa decorrente da proposta irá implicar em maior custo para o consumidor, que pagará mais pelos produtos que adquirir.
O segundo efeito contrário ao pretendido será a redução da atividade econômica, que ficará muito mais dispendiosa para o fornecedor, gerando corte de despesas e, por conseguinte, desemprego. A imposição interfere no planejamento estratégico das empresas, as quais terão de absorver custos adicionais, gerando um impacto desproporcional.
Mesmo as empresas de maior porte terão dificuldade para arcar com os gigantescos custos resultantes da contratação de pessoal para atendimento à distância do consumido por 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas.
Custos e benefícios
O princípio da proporcionalidade exige uma relação equilibrada de custos e benefícios em cada intervenção estatal. O custo social representado pelo aumento no preço final ao consumidor precisa ser calculado previamente, comparando-se a situação atual com aquela que se quer projetar.
A ausência de estudo de impacto econômico e de um projeto de lei a ser debatido amplamente no Congresso, tornam a proposta precipitada, justamente em um momento de lenta recuperação econômica da crise gerada pela pandemia da Covid-19.
Nosso sistema jurídico não concede ao Poder Público adentrar o modelo de negócio individual e rejeita normas que retirem do empreendedor a liberdade para organizar sua atividade. Nesse sentido, o STF, em voto do ministro Luiz Fux, nos autos do RE 839.950/RS, afirmou que:
“O empreendedor possui o direito, resguardado pela Carta Magna, de formatar o seu negócio da forma mais eficiente para o atendimento das demandas dos consumidores, aplicando a organização apropriada para otimização das tarefas e processos empresariais, conforme suas necessidades e conveniências. O papel do Estado, nesse contexto, deve cingir-se a ‘proporcionar condições mínimas de bem-estar do cidadão, cobrar tributos, prestar serviços públicos e editar comandos legais para regular as relações econômicas’, sendo vedado ao Poder Público substituir o administrador privado para configurar, ao seu alvedrio, o modelo da empresa.”
Nessa mesma linha, Manoel Jorge e Silva Neto: “mesmo no caso de lei editada pelo corpo legislativo competente, não poderá a norma implicar restrição excessiva à liberdade de iniciativa econômica, pena de declaração de inconstitucionalidade“ [1].
Se é assim no caso de uma lei, imagine na presente hipótese quando, o que se pretende é um decreto, ato de quem, por meio de ato unilateral e isolado, impõe nova realidade econômica para o mercado.
O STF, no julgamento do Tema 525, firmou a tese de que são inconstitucionais as leis que obrigam supermercados ou similares a embalarem produtos para os clientes ao seu próprio custo. No caso, haveria violação ao princípio da livre iniciativa e proporcionalidade, e isso no caso de leis, não de decretos.
Não pode o Poder Público criar encargos à atividade empresarial, quando nossa CF assegura ao empresário a liberdade de decidir como administrar seus recursos e custos operacionais.
Acerca do mesmo tema, recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo [2] declarou inconstitucional a Lei nº 3.076/2019 do município de Tambaú, que obrigava o fornecimento gratuito de sacolas, ao reconhecer que a imposição de tal obrigação representava uma interferência desproporcional na iniciativa privada.
Se o governo federal pretende gerar novos empregos, deve fazê-lo cumprindo suas obrigações de redução de despesas, aprimorar suas metas fiscais e reduzir a carga tributária para, em consequência, reaquecer a economia e estimular a retomada e o crescimento da atividade econômica. Impondo mais ônus ao setor privado e transferindo-lhe a obrigação de pagar uma conta que não é sua, o Poder Público irá apenas provocar retração da economia.
Oneração indevida
Precedentes do STF reforçam que a intervenção estatal excessiva, que transfere responsabilidades e custos para o setor privado sem contrapartida, é inconstitucional. A liberdade de iniciativa protege a autonomia dos agentes econômicos e visa a garantir que o Estado atue de forma mínima e proporcional, evitando onerar indevidamente o setor privado.
O modelo de negócio, no qual o consumidor paga menos por não exigir serviços adicionais, como um enorme contingente de novos contratados para serem colocados à sua disposição 24 horas por dia, é uma escolha legítima tanto para o empresário, quanto para o consumidor, que opta por uma experiência de compra mais econômica. eficiência e redução de serviços.
Quando o Poder Público interfere na relação de equilíbrio do ecossistema econômico, os efeitos são imprevisíveis e atrapalham a lógica do negócio, acabando por prejudicar o consumidor, com o fechamento de empresas ou a elevação do preço do produto, derivado dos novos custos operacionais.
O objetivo da proteção da liberdade econômica é justamente evitar esse tipo de intervenção desproporcional, permitindo que os empresários construam e operem seus negócios da forma que melhor lhes convier, de acordo com suas próprias estratégias de mercado. Ao mesmo tempo, a liberdade econômica assegura aos consumidores a possibilidade de optar pelos modelos de negócio que mais os satisfaçam, seja pela conveniência ou pela economia oferecida.
A exigência de atendimento pessoal no SAC por 24 horas diárias suscita uma série de violações aos princípios norteadores do Código de Defesa do Consumidor, sobretudo o referente à transparência nas relações de consumo, ferindo o disposto no artigo 6º, III do CDC, que prevê como direito básico do consumidor o acesso à informação clara e adequada sobre os produtos e serviços, bem como seus efeitos econômicos.
A imposição pretendida cria uma falsa sensação de benefício, uma vez que os custos operacionais acabarão sendo repassados ao consumidor por meio do aumento do preço dos produtos, situação que compromete a clareza e a transparência nas relações consumeristas. Muitos consumidores acabarão pagando por um serviço que não demandaram e outros, por não terem condições de arcar com preços mais elevados.
Essa nova sistemática pretendida, longe de representar um benefício real ao consumidor, acaba impondo um ônus indireto e desproporcional a todos os clientes.
Compartilha deste entendimento o jurista Bruno Bodart, citado pelo ministro Luiz Fux para fundamentar seu voto no RE 839.950/RS:
“Ao experimentar maiores custos com o cumprimento das determinações governamentais, o fornecedor repassará, em alguma medida, aquele valor aos seus clientes. Dessa maneira, apenas haverá ‘benefício líquido’ aos consumidores se, mesmo após o pagamento de preços mais altos, a regra for capaz de melhorar a situação deles como um todo. O que ainda assim é problemático, já que alguns não poderão arcar com os preços mais altos, enquanto outros tantos que possam pagar prefeririam preços reduzidos. Não faz sentido ignorar os efeitos das leis, em nome da justiça, quando esses efeitos promovem a incidência de injustiça por si.” [3]
Por esses motivos, a proposta deve ser precedida de estudo de impacto econômico e aguardar debate mais profundo a respeito do tema, pois seus efeitos podem provocar graves distorções no mercado e vulnerar um dos fundamentos do Estado democrático de Direito, que é o princípio da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV, e 170, caput), além de implicar em aumento do preço final ao consumidor.
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[1] SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de direito constitucional. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 680.
[2] TJ-SP – ADI: 20178044920208260000 SP 2017804-49.2020.8.26.0000, Relator: Ferreira Rodrigues, Data de Julgamento: 10/03/2021, Órgão Especial, Data de Publicação: 12/03/2021.
[3] BODART, Bruno. Uma Analise Econômica do Direito do Consumidor: Como Leis Consumeristas Prejudicam os Mais Pobres Sem Beneficiar Consumidores. In: Economic Analysis of Law Review, v. 8, n. 1, jan.-jun. 2017.
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