Curso jurídico de Olinda e análise da Constituição do império (parte 1)
23 de setembro de 2024, 11h18
A leitura de Otacílio Alecrim [1], em obra que se insere no Panteão dos Clássicos, ao enumerar a bibliografia constitucional conhecida por aqui até 1885, desfez-me a compreensão, que adotava há um bom tempo, de que o livro de Pimenta Bueno, publicado em 1857 sob o título “Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império” [2], fosse o único comentário da Carta de 1824.
Aguçou a curiosidade de Otacílio Alecrim [3], conforme consignado em nota de rodapé, o escrito “Análise da Constituição Política do Império” [4], de autoria de Lourenço José Ribeiro, que veio à luz do público em 1829, na imprensa pernambucana, mas que constou dos Anais da Biblioteca Nacional, a partir da Exposição de 1880.
Por ocasião de conferência que proferiu no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 11 de agosto de 1948, Alfredo Valadão [5] ocupou-se de tal obra, bem como de seu autor, apontando o pioneirismo de Lourenço Ribeiro como o primeiro professor do curso jurídico de Olinda e comentador da nossa primeira constituição [6].
Nascido em São João del Rei em 1796, com formação em 1823 pela Universidade de Coimbra, Lourenço Ribeiro foi nomeado docente e diretor interino do curso jurídico de Olinda pelo imperador dom Pedro 1º [7], sendo designado para lecionar a primeira e única disciplina do ano inicial (Direito natural, público, Análise da Constituição do Império, Direito das gentes e diplomacia), razão pela qual coube-lhe proferir a aula inaugural em 15 de maio de 1828.
Na regência da disciplina, submeteu à Congregação a indicação do compêndio de Fortuna, o qual era recomendado pelo vinculativo Estatuto do Visconde de Cachoeira [8], mas diante da necessidade de harmonizar a sua doutrina ao sistema pátrio, bem assim às luzes do século, lançou-se à tarefa de elaborar um manual próprio.
Essa necessidade, a de fazer o andarilho o próprio caminho, resultou na elaboração de texto, contendo uma introdução e comentários que vão até o artigo 70, encerrando a temática do processo legislativo [9].
O momento político para que se pudesse examinar a Constituição do Império não era dos melhores, principalmente se contando que quatro anos antes, nas terras de Pernambuco, eclodira a Confederação do Equador.
Nacionalidade brasileira
Não obstante, realça Pereira da Costa [10] que, mesmo sendo o texto constitucional olhado com horror tanto por absolutistas ou corcundas, como também pelos liberais e republicanos, as lições de Loureço Ribeiro concorreram para a formação do grande partido constitucional, suplantando todas as dificuldades políticas da nascente nacionalidade brasileira.
Lourenço Ribeiro foi feliz por optar por uma introdução [11], visando fixar conceitos, permissivos e indispensáveis a uma melhor compreensão sobre o texto constitucional. Daí que o Estado ou Nação, tidos como sinônimos, compreenderia o todo político, formado pelo território e pelo corpo político.
Enquanto extensão do Estado, o território “é o solo sobre que se edifica, é o terreno que ocupa o Edifício Social”, o corpo político consistiria na “reunião de todas as partes do corpo social”, compondo-se de quatro elementos, quais sejam o soberano, o governo, o povo, e a constituição [12].
A ideia do soberano, que, na exposição do autor, confunde-se com a do poder constituinte originário, pois, abrangendo todas as vontades individuais, é o organizador da máquina política, ocupando-se em formar as leis constitutivas e fundamentais (Constituição), para, a partir de então, cessar sua atuação. Por sua vez, o governo é um corpo ou magistratura constituído para elaborar as leis administrativas e executá-las [13].
O povo é definido como a fração do corpo social que, tendo concorrido à organização do corpo político, manifestou a sua vontade de reger-se pela constituição que estabeleceu. Já a constituição “é a expressão autêntica e imediata da vontade do soberano”, contendo as regras, bem como as condições pelas quais o povo deve ser governado [14].
Sobre o soberano (poder constituinte), o autor fornece-nos um bom conselho, tendo em vista as experiências tumultuárias vivenciadas pelo constitucionalismo francês, entre 1791 a 1814 [15]. Apontando que a razão para tanto decorreu do fato de que, mesmo elaborada a Constituição de 3 de setembro de 1791, o soberano permaneceu ativo, desprezando a advertência deixada por Sólon aos atenienses, consoante a qual se aquele permanece sempre em ação, tem-se a continuidade do estado de força, de eterna confusão e desordem, anterior à organização social.
Não iremos aqui — até porque não se encontra no escopo e nos limites deste texto – reproduzir inteiramente os comentários feitos por Lourenço Ribeiro, mas apenas avivar algumas ideias que foram sistematizadas por aquele a partir do conteúdo da Constituição Imperial.
Significados
De logo, ressalte-se que a menção de que o Império do Brasil forma uma nação livre e independente (artigo 1º) está a indicar, primeiramente, a liberdade interna, isto é, a de que os brasileiros não se submetem aos caprichos de um governo despótico ou absoluto. Já a palavra independente condiz com a liberdade externa, expressando que a nação brasileira não reconhece outra que lhe seja superior, estando, quanto às demais, no estado de uma perfeita igualdade (soberania).
Quanto à forma de governo, o autor discorre sobre as modalidades monárquicas, quais sejam a eletiva e a hereditária [16], ponderando os seus inconvenientes, para concluir pela boa opção feita quanto à adoção da segunda.
E não só. Anota que o qualificativo constitucional vai muito além da presença de uma lei fundamental, expressando o entendimento de que restam acolhidos “os direitos primitivos do homem, modificados segundo as precisões da sociedade, bem como a divisão de Poderes, que é o meio mais seguro de os conservar e respeitar” [17].
Remeteu, pois, ao que atualmente a doutrina considera como conceito liberal ou clássico de constituição [18] e que restou explicitado pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789 [19].
Já o vocábulo representativo, no dizer do autor, tem a força semântica para declarar que o soberano (poder constituinte) ingressa no governo não imediatamente, mas sim por meio dos seus representantes, “encarregando-os por meio de uma procuração de defender os seus interesses, e de fazer tudo aquilo que a massa geral do povo não pode fazer por si mesma” [20].
Tais representantes — que, nos termos do artigo 11, eram o imperador e a Assembleia Geral — fazem com que se possa visualizar que o ordenamento constitucional acolheu a forma mista de governo, dela participando a monarquia, aristocracia e a democracia, “pela parte indireta que tem no mesmo Governo a classe notável e a popular por meios dos seus representantes nas duas Câmaras de Senadores e Deputados, na forma do artigo 13” [21].
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] ALECRIM, Otacílio Dantas. Ideias e instituições políticas no Império – Influências francesas. Rio de Janeiro: Oficinas do Jornal do Comércio, 1953, p. 80-81.
[2] A obra foi recentemente republicada (Org.: KUGELMAS, Eduardo. José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente – Coleção Formadores do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2002).
[3] ALECRIM, Otacílio Dantas. Ideias e instituições políticas no Império – Influências francesas. Rio de Janeiro: Oficinas do Jornal do Comércio, 1953, p. 80-81.
[4] O livro se encontra republicado em Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 02-153, abril/junho de 1977.
[5] VALADÃO, Alfredo. Lourenço Ribeiro, primeiro diretor e primeiro professor do Curso Jurídico de Olinda e primeiro comentador da Constituição do Império, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 200, p. 105-126, Julho/Setembro de 1948.
[6] Otacílio Alecrim questiona a precedência de Lourenço Ribeiro quanto ao seu comentário à constituição, uma vez, na relação que apresentara, ter apontado caber a prioridade de José Paulo Figueiroa Nabuco de Araújo, com o seu Diálogo constitucional brasiliense, publicado em 1827 pela Imperial Typografia de Plancher, Rio de Janeiro, em formato de perguntas e respostas (ALECRIM, Otacílio Dantas. Ideias e instituições políticas no Império – Influências francesas. Rio de Janeiro: Oficinas do Jornal do Comércio, 1953 p. 81).
[7] Decretos do Governo Imperial de 10 de novembro de 1827 e de 9 de janeiro de 1828 uma vez o titular, Araújo Lima, encontrar-se a ocupar a Presidência da Câmara dos Deputados no Rio de Janeiro.
[8] Assim dispunha a Lei de 11 de agosto de 1827: “Art. 7.º – Os Lentes farão a escolha dos compendios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos, com tanto que as doutrinas estejam de accôrdo com o systema jurado pela nação. Estes compendios, depois de approvados pela Congregação, servirão interinamente; submettendo-se porém á approvação da Assembléa Geral, e o Governo os fará imprimir e fornecer ás escolas, competindo aos seus autores o privilegio exclusivo da obra, por dez annos. (…) Art. 10.º – Os Estatutos do VISCONDE DA CACHOEIRA ficarão regulando por ora naquillo em que forem applicaveis; e se não oppuzerem á presente Lei. A Congregação dos Lentes formará quanto antes uns estatutos completos, que serão submettidos á deliberação da Assembléa Geral” (disponível em: www.planalto.gov.br).
[9] Relata Valadão que o texto disponível está incompleto, uma vez Lourenço Ribeiro haver analisado até o art. 94, relativo às eleições, não tendo sido possível o acesso ao manuscrito que se tem afirmada encontrar-se na Biblioteca Nacional (VALADÃO, Alfredo. Lourenço Ribeiro, primeiro diretor e primeiro professor do Curso Jurídico de Olinda e primeiro comentador da Constituição do Império, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 200, p. 119, Julho/Setembro de 1948).
[10] COSTA, Pereira da. A faculdade de Direito dos Pernambucanos, Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 30, n. 1, p. 48-49, 1922. Este bem sintetiza a polêmica, em torno da nossa primeira constituição, entre os partidários das facções absolutista e liberal: “Os primeiros receavam que pelas suas demasiadas franquias políticas viesse a degenerar em um governo republicano; e os segundos a detestavam por causa do poder moderador, que consideravam hostil às liberdades públicas, um despotismo encoberto, mascarado” (COSTA, Pereira da. A faculdade de Direito dos Pernambucanos, Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 30, n. 1, p. 48-49, 1922).
[11] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 2-6, abril/junho de 1977.
[12] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 2, abril/junho de 1977.
[13] O liame entre o soberano, como poder constituinte, e o governo, representando pelos poderes constituída, resta evidenciada na passagem seguinte do autor: “Vimos que o Governo era um corpo, que tinha seus elementos particulares; ora, estes elementos são a Lei Fundamental, o Poder Legislativo e o Poder Executivo, mas nenhum destes Poderes é o Poder Soberano, que criou a Lei Fundamental. O Legislativo não passa de uma Autoridade instituída pelo Soberano para velar na conservação e prover a administração do corpo político, é uma das partes integrantes do governo, e nele reside o poder de criar Leis administrativas (RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 4, abril/junho de 1977).
[14] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 3, abril/junho de 1977.
[15] Com efeito, nesse intervalo a França teve sete constituições, especificadamente a Constituição de 1791 (monarquia constitucional), seguidas pelas Constituições de 1793, 1795, 1799, 1802, 1804 e 1814, sem contar o Projeto Constitucional dos Girondinos, apresentado sem sucesso à Convenção Nacional em 1793. O fenômeno político francês, no qual se assistiu um povo numa procura incessante de sua constituição, encontrou a seguinte explicação em Duverger: “Esta instabilidade se explica por um desacordo profundo de opinião sobre o fundamento do poder. Há um conflito entre duas legitimidades: entre a teoria da soberania do povo e a do direito divino” (Cette instabilité s’explique par un désaccord profond de l’opinion sur le fondement du pouvoir. Il y a conflit entre deux légitimités: entre la théorie de la souveraineté du peuple et celle du droit divin. DUVERGER, Maurice. Droit Public. Paris: Presses Universitaires de France, 1968, p. 11).
[16] Interessante a constatação de Gláucio Veiga, no sentido de que, na Península Ibérica, a monarquia dos visigodos era eletiva, findando-se em 982, com a última eleição de Bermudo III de Leão. Assim, veio a fincar-se o modelo hereditário nas terras hispânicas, o qual transitou para a monarquia lusitana (VEIGA, José Gláucio. A teoria do poder constituinte em Frei Caneca. Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco,1975, p. 17-18).
[17] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 15, abril/junho de 1977.
[18] MIRANDA, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 33-34.
[19] “Artigo 16º- Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição” (disponível em: https://www.ufsm.br).
[20] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 16, abril/junho de 1977.
[21] RIBEIRO, Lourenço José. Análise da Constituição Política do Império, Arquivos do Ministério da Justiça, ano 34, nº 142, p. 16, abril/junho de 1977.
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