Opinião

Confusão entre incapacidade civil e digital sob a ótica da LGPD

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23 de setembro de 2024, 12h23

No tocante à proteção legal de dados de crianças e adolescentes, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, com vigência desde setembro de 2020, dispõe sobre a matéria. Desse modo, as regras tipificadas para o tratamento de dados de crianças e adolescentes são encontradas no dispositivo na seção III da LGPD, mais especificamente no artigo 14, que possui seis parágrafos, e vem gerando muitos debates acerca de sua interpretação, seja ela feita por atores públicos ou privados.

Art. 14. O tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente (grifo nosso)
§ 1º O tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal.
§ 2º No tratamento de dados de que trata o § 1º deste artigo, os controladores deverão manter pública a informação sobre os tipos de dados coletados, a forma de sua utilização e os procedimentos para o exercício dos direitos a que se refere o art. 18 desta Lei.
§ 3º Poderão ser coletados dados pessoais de crianças sem o consentimento a que se refere o § 1º deste artigo quando a coleta for necessária para contatar os pais ou o responsável legal, utilizados uma única vez e sem armazenamento, ou para sua proteção, e em nenhum caso poderão ser repassados a terceiro sem o consentimento de que trata o § 1º deste artigo.
§ 4º Os controladores não deverão condicionar a participação dos titulares de que trata o § 1º deste artigo em jogos, aplicações de internet ou outras atividades ao fornecimento de informações pessoais além das estritamente necessárias à atividade.
§ 5º O controlador deve realizar todos os esforços razoáveis para verificar que o consentimento a que se refere o § 1º deste artigo foi dado pelo responsável pela criança, consideradas as tecnologias disponíveis.
§ 6º As informações sobre o tratamento de dados referidas neste artigo deverão ser fornecidas de maneira simples, clara e acessível, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, com uso de recursos audiovisuais quando adequado, de forma a proporcionar a informação necessária aos pais ou ao responsável legal e adequada ao entendimento da criança.

Conforme observado acima, no caput do artigo 14, é possível verificar  o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente que deve prevalecer e reger o assunto. Seguindo essa linha de raciocínio, o §1º do mesmo artigo dispõe que: “o tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal”.

Dessa maneira, apenas as crianças, isto é, pessoas que possuem até 12 anos incompletos [1] seriam protegidas pela lei, precisando do consentimento dos pais para que seus dados fossem tratados.

Dúvida na legislação

Nesse contexto, abriu-se margem à dúvida: teria o legislador declarado que adolescentes podem consentir sobre seus próprios direitos digitais, ou teria ele apenas optado por não abordar o assunto, uma vez que já existe legislação sobre as capacidades no Código Civil?

Essa inexatidão na lei é extremamente prejudicial, uma vez que atores públicos e privados não sabem se esses menores podem ter seus dados coletados ou não, e, portanto, agem de acordo com sua conveniência. Assim, pais e responsáveis não sabem se os dados de seus filhos menores estão sendo coletados, tampouco do que deles está sendo feito.

A maioria da doutrina acredita que a lei determina que os adolescentes podem consentir sobre seus dados digitais. Nessa hipótese, o artigo da LGPD entra em embate com o Código Civil. Isso ocorre pois, conforme previsto no ECA, são crianças os indivíduos menores de 12 anos, e adolescentes os indivíduos dos 12 aos 18 anos incompletos. Porém, de acordo com o Código Civil, são absolutamente incapazes os indivíduos menores de 16 anos [2] e relativamente incapazes aqueles entre os 16 e 18 anos incompletos [3].

Questionamento entre adolescentes incapazes

Nesse sentido, nota-se que há uma faixa etária entre 12 aos 15 anos que seriam os adolescentes absolutamente incapazes, os quais questionavelmente, de acordo com a LGPD, poderiam consentir sobre o tratamento de seus dados digitais. Diante deste cenário, surgem diversos questionamentos acerca da razoabilidade desses jovens considerados absolutamente incapazes no âmbito civil e plenamente capazes no âmbito digital estarem qualificados para consentirem sozinhos sobre seus dados digitais.

Desse modo, observa-se que existe uma nítida confusão entre incapacidade civil e capacidade plena no âmbito digital, o que é legítimo, e entre os doutrinadores, muitos compreendem ser necessário o consentimento parental para o tratamento de dados de adolescentes.

Spacca

De acordo com o professor Filipe José Medon Affonso, a LGPD inova, trazendo um caso de capacidade especial [4]; isso, pois permite aos adolescentes o consentimento sobre seus dados digitais, ainda que, numa ótica civilista, sejam tidos como absolutamente incapazes os menores de 16 e relativamente incapazes os maiores de 16 e menores de 18.

Não obstante, devem os pais, ainda que seus filhos sejam adolescentes, monitorar sua vida online, como exposto no artigo 229 da Constituição. Ou seja, “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.

Além disso, aduz o professor que os dados digitais e pessoais das crianças e adolescentes tanto podem ser dados comuns, sendo regidos pelo artigo 7°, quanto podem ser dados sensíveis, sendo regidos pelo artigo 11, ambos da LGDP, sempre condizente com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, disposto no caput do supracitado artigo 14, caput, da LGPD.

LGPD omissa em vários pontos

Nesse sentido, apesar de haver legislação dispondo sobre a matéria da proteção de dados de crianças e adolescentes no Brasil, na prática pouco do que é disposto na lei de fato é aplicado. No tocante à matéria, a LGPD é omissa e não é clara em diversos pontos, resultando em debates com a própria doutrina.

Assim, caso nada seja feito para alterar essa realidade, aumentam -se os riscos que a vida online desacompanhada de monitoramento pode oferecer à crianças e adolescentes brasileiros, como a possibilidade de invasão de hacker, exposição ao cyberbullying, pedofilia, entre outros.

No que tange ao direito comparado, como observado ao longo do estudo, diversos países europeus estão mais preocupados com a questão da proteção dos direitos relacionados à  personalidade  humana. Nesse viés,  a proteção de dados de crianças e adolescentes no ordenamento jurídico europeu acontece mediante a General Data Protection Regulation (GDPR) [5].

O chamado Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia, que tem vigência desde maio de 2018, é um regulamento comunitário, designado para os países da União Europeia, ainda que estes tenham tradições e sistemas jurídicos diferentes.

A GDPR, por ser mais antiga, influenciou fortemente a LGPD. Porém, o regulamento europeu tratou a matéria de maneira mais aprofundada, dispondo de 99 artigos que abordam os diferentes pormenores do tratamento de dados, enquanto a lei brasileira conta com apenas 65 artigos.

Regulamento europeu é mais abrangente

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Já comparado com a proteção de dados de crianças e adolescentes feita pelo ordenamento jurídico norte americano, é nítido que o viés libertário expressa como principal diferença o fato da lei estadunidense se dedicar apenas aos dados dos menores, enquanto a GDPR se dedica aos dados de todos os cidadãos europeus, incluídas as crianças e adolescentes, o que demonstra uma maior abrangência protetiva.

Diante das prerrogativas analisadas, percebe-se que os países da União Europeia vêm tendo uma preocupação maior com a proteção dos dados de crianças e adolescentes, uma vez que os ordenamentos jurídicos vem refletindo essa mudança de cenário social cada vez mais informatizado na era digital.

O embate segue para um campo ainda mais profundo, uma vez que os genitores são detentores do direito de imagem dos filhos, quando na realidade deveriam ser os protetores. É nítido que o papel dos pais mudou muito com o advento das vias digitais. Compartilhar é algo inerente à atividade humana contemporânea.

Portanto, ainda que seja melhor prevenir quais dados publicar na plataforma digital, diante da celeridade das mídias e dos aparelhos informacionais, isso nem sempre é possível. Diante das mudanças cronológicas e tecnológicas, em 2024, uma comissão de juristas vem traçando novos paradigmas para consolidar institutos relativos à LGPD.

Diante da incorporação das novas tecnologias, que fazem parte do dia a dia dos indivíduos, inspirações internacionais europeias são importantes para refletirmos acerca dos efeitos cruéis dessa divulgação de imagens fruto desse impulso parental.

 


 [1] Art. 2º do ECA: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.” BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> . Acesso em: 13 de maio. de 2024.

[2] Art. 3º do CC: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm> Acesso em: 13 de maio. de 2024.

[3] Art. 4º do CC: “São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;”. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>Acesso em: 13 de maio. de 2024.

[4]AFFONSO, Filipe José Meddon. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil. Autonomia, Riscos e Solidariedade. 2 ed. Editora Juspodivm, 2022.

[5]  https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32016R0679

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