Para proteger liberdades, é preciso limitar mecanismos digitais, diz professor
22 de setembro de 2024, 9h51
As empresas de tecnologia, como Google, Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp) e X (ex-Twitter), chamadas também de big techs, são detentoras de informações cruciais para decidir se haverá ou não processo e responsabilização penal das pessoas.
Em nome da democracia, da liberdade e da proteção da sociedade, é preciso enfrentar o domínio dessas corporações e estabelecer limites às suas ferramentas digitais, como as redes sociais, afirma o advogado e ex-professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro Geraldo Prado, hoje investigador integrado ao Instituto Ratio Legis da Universidade Autônoma de Lisboa e consultor sênior do Justicia Latinoamérica (Chile).
No livro Curso de Processo Penal: Tomo I: Fundamentos e Sistema (Marcial Pons), lançado no primeiro semestre, o advogado aponta que o processo penal deve se atualizar para acompanhar as mudanças que vêm sendo promovidas pela tecnologia e pela hipervigilância. Mas sempre visando proteger as pessoas da violência social e dos arbítrios do poder estatal.
Para analisar o processo penal, Prado usa uma perspectiva decolonial, as raízes da formação da sociedade brasileira e o pluralismo jurídico. Ele coloca os consagrados pensadores do Norte global no mesmo patamar dos seus pares do Sul, de forma a construir uma teoria adequada à realidade do Brasil.
Maior fenômeno do campo penal e processual penal do século XXI no país, a finada “lava jato” partiu de uma base real de irregularidades, opina o professor. Porém, ressalta, nem tudo o que os procuradores e o ex-juiz Sergio Moro definiram como corrupção era corrupção. E esse crime não foi praticado por tantas pessoas como estabelecido pelos lavajatistas.
A “lava jato” teve particularidades, mas não faltam episódios de lawfare na história do Brasil, menciona o processualista. Entre eles, o cerco ao ex-presidente Getúlio Vargas, que culminou com seu suicídio, e todo o conjunto de medidas promovidas pela ditadura militar (1964-1985).
“Agora, para a base da sociedade, os alvos preferenciais do sistema penal, sempre foi assim. Para eles, a ‘lava jato’ sempre esteve presente”, destaca Prado.
Ainda sem previsão de lançamento, o próximo volume do Curso de Processo Penal de Geraldo Prado abordará prova, verdade e realidade.
Leia a entrevista:
ConJur — Por que é problemático que juristas e tribunais brasileiros citem jurisprudências e doutrinas de países do Norte ocidental como argumento de autoridade e importem acriticamente instrumentos jurídicos dessas nações?
Geraldo Prado — Isso faz parte da lógica que, no seu extremo, é definida como “epistemicídio”, segundo Juarez Tavares. É um processo de eliminação de culturas. Há várias maneiras de se praticar epistemicídio. Uma delas é afirmar que uma cultura jurídica é superior às demais. O que diferencia o Direito Penal do processo penal? O Direito Penal é um saber jurídico que estuda um fenômeno de práticas lesivas a interesses vitais das pessoas. Então, o Direito Penal é positivo, legislado, define o certo e o errado. Há particularidades, o Direito Penal é influenciado por variáveis sociais, mas tem uma maior universalidade.
O processo penal, não. O processo penal se caracteriza pelo conjunto de práticas que as diversas sociedades empregam para resolver esses conflitos. A hegemonia cultural no âmbito do processo penal, que veio da Europa para a América Latina, nos colonizou de forma bárbara. Segundo essa versão hegemônica, o processo penal não serve para resolver conflitos — que já teriam ocorrido —, e sim para apurar a verdade. Assim, o processo penal deve fornecer uma verdade que legitima o castigo. Essa ideia está até no Luigi Ferrajoli (jurista italiano e um dos principais teóricos do garantismo).
Porém, ao estudar a história, percebe-se que as várias sociedades organizaram instituições muito diferentes entre si para resolver conflitos. Hoje, nós podemos, com muita tranquilidade, dizer que os conflitos têm como elemento central a notícia do crime, que vai movimentar toda a máquina do processo penal.
Eu tomei a decisão de colocar esses “heróis” do Norte global em seu devido lugar. Não é diminuir a importância deles. É colocá-los em um plano horizontal, no mesmo plano dos pensadores do Sul global. Ou seja, é afirmar que esses autores do Norte têm contribuições muito importantes, mas também têm teorias problemáticas e falhas.
ConJur — O senhor afirma no livro que a jurisdição penal deve assegurar que o devido processo legal viabilize a apuração do fato sem descambar para abusos contra as pessoas envolvidas. Ou seja, limitar o exercício do poder punitivo. Em regra, os atores do Sistema de Justiça Criminal brasileiro compartilham dessa visão?
Geraldo Prado — Não. Não é uma acusação pessoal, é uma deformação sistêmica que vem da forma como o nosso sistema de Justiça foi constituído desde o Brasil colônia, no sentido de ser um sistema muito mais de controle social do que de administração de justiça. Pense em um júri ideal dos EUA. A ideia do júri, de representação da sociedade, de ver se o réu é culpado ou inocente e, com isso, se fazer justiça, faz com que a presunção de inocência faça sentido. Há um autor norte-americano que diz que a presunção de inocência é o que eles fazem; o que os sul-americanos fazem é presunção de culpa.
E é verdade. Se um determinado aparelho é desenhado institucionalmente para funcionar de tal maneira que vá eliminar dissidências, ainda que tenha por pretexto punir infrações penais, isso será um efeito menor, o maior será o de promover o controle social, independentemente da prática de crimes pelas pessoas. O nosso Judiciário foi formado nesse desenho. Por mais que a Constituição e diversos tratados internacionais promovam os direitos humanos, essa tarefa é muito difícil para um Judiciário formado para ser extraordinariamente controlador de dissidências e administrador dessas diferenças.
ConJur — Por isso que o senhor ressalta que o saber processual penal é político.
Geraldo Prado — Exato. A construção racional de determinados enunciados oferece um respaldo para as maiores brutalidades. É possível, pela retórica, justificar o Holocausto. Ou condenar alguém, embora a prova tenha sido obtida por tortura.
ConJur — Como a tecnologia e a hipervigilância vêm mudando e devem continuar a mudar o processo penal?
Geraldo Prado — O Direito Processual Penal é o ramo do saber jurídico que estuda as práticas de arbitramento da responsabilidade penal, em uma perspectiva de fazer prevalecer o Estado de Direito, a dignidade da pessoa humana. Não é um estudo apolítico, é um estudo politicamente comprometido.
A origem da hipervigilância tecnológica de hoje está na Inquisição europeia. A base ideológica da Inquisição passava pelo controle da subjetividade dos povos pelo papa e seu entourage. Posteriormente, os reis mais poderosos se aproveitaram dessa tecnologia, e isso permitiu que poucas pessoas controlassem muitas.
Outro ponto interessante é o papel dos atores privados. Hoje esses atores são Microsoft, Google, Apple, Meta. Antigamente, eram atores semiprivados e privados que seriam os indutores do capitalismo. São os traficantes de escravos, os exploradores de mão-de-obra, os grandes latifundiários, a Companhias das Índias, as grandes companhias de navegação. Essa parceria público-privada sempre esteve presente, com o privado dependendo do arsenal repressivo que o público poderia fornecer.
A humanidade chegou a um estágio em que os atores privados digitais são donos dos recursos que permitem definir as responsabilidades penais. Google, Meta, X (ex-Twitter) são as versões modernas da Companhia das Índias. Isso porque são detentores de informações cruciais para decidir se vai haver processo ou não e qual será a responsabilidade penal das pessoas. É o elemento digital que define as responsabilidades penais.
O processo penal precisa entender que tem responsabilidade na limitação do uso desses mecanismos digitais, dessas redes sociais, porque eles são cerceadores de liberdades. São mecanismos poderosos de dominação, de concentração de poder. É preciso coragem para enfrentar essa realidade, como foi preciso coragem para enfrentar a Inquisição.
ConJur — Como avalia a expansão do processo penal negocial? Quais os seus riscos?
Geraldo Prado — A expressão “processo penal negocial” é genérica e pode abranger práticas extremamente virtuosas e práticas extremamente problemáticas. Práticas de imposição direta de pena, especialmente pena privativa de liberdade, são problemáticas. Por um lado, há um aumento em abstrato das penas atribuídas às infrações penais, para muito além da proporcionalidade, para possibilitar a negociação. Então o agente estatal afirma que a pena pode chegar a 40 anos de prisão, mas, se o acusado negociar, pode ser reduzida. Por outro, o acusado é forçado a abrir mão do direito de defesa, do contraditório, senão pode ser condenado a uma pena altíssima. Também há um viés neoliberal, de reduzir o custo da Justiça Criminal.
Porém, há um viés interessante, de se pensar não no negócio, mas no diálogo, na convergência entre interesses que são antagônicos, em espaços de entendimento. É a justiça restaurativa, a mediação penal. A restauratividade é tão antiga quanto o castigo. Ela sempre esteve presente, de forma velada (para beneficiar determinados grupos econômicos e sociais) ou escancarada. A restauratividade é a possibilidade de restabelecimento de paz social, não como imposição de um grupo ou outro, mas pelo entendimento do próprio funcionamento das coisas. Eu sou um vigoroso defensor da mediação e da restauratividade e um vigoroso crítico das outras formas de negociação.
ConJur — Como avalia o discurso e prática de restringir o contraditório e garantias processuais de acusados em nome da segurança ou do combate à corrupção?
Geraldo Prado — Esse é o velho receituário dos governos autoritários. O professor espanhol Antonio Garcia-Pablos de Molina afirma em um livro que que a única sociedade sem crime é a sociedade dos cemitérios. A única paz absoluta é a paz dos cemitérios. Mussolini buscou impor essa paz por meio da redução de garantias, da limitação do contraditório. Esse era o perfil do Direito e do processo penal fascista naquele período.
Em um comentário ao artigo 1º do Código de Processo Civil de 1939, o jurista Pontes de Miranda afirmou que a função da jurisdição é o estabelecimento da paz social. A jurisdição promovia a paz social em uma sociedade racista, violenta, desigual? A paz era a tranquilidade de um pequeno núcleo dessa sociedade.
ConJur — Qual foi o impacto da “lava jato” no processo penal brasileiro? Ela foi exceção ou é a regra nos tribunais do país?
Geraldo Prado — A “lava jato” não foi uma exceção porque o lawfare é muito antigo. Há vários episódios de lawfare na história do Brasil, desde a expansão do colonialismo no século XVI, passando pelos ataques a Getúlio Vargas que culminaram com o seu suicídio e pela ditadura militar. A “lava jato” só é diferente na forma.
Havia a realidade da corrupção, que é algo presente em todas as sociedades capitalistas. E um cenário de crise econômica mundial, após 2008, com a ascensão do Brasil a potência internacional. Nesse contexto, o que o ex-juiz Sergio Moro fez nos processos envolvendo o presidente Lula — conforme ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal ao declarar a sua suspeição — era importante para frear a ascensão do Brasil. Ele partiu de uma base real, elementos de crimes, isso é incontestável, mas nem tudo o que a “lava jato” definiu como corrupção era corrupção. O principal ponto é que a corrupção não tinha a extensão subjetiva que alguns procuradores e Sergio Moro estabeleceram.
É necessário que haja mecanismos de apuração da corrupção. Mas não se pode permitir que eles sejam influenciados de fora para dentro, como efetivamente aconteceu. A corrupção na Petrobras não justificava o ataque brutal à companhia. A corrupção nas empreiteiras exigia o processamento de seus responsáveis, mas não a destruição das empresas, dos empregos, da tecnologia.
Há diferenças, mas também semelhanças com episódios do passado. Lula não se deu um tiro, como Getúlio, mas foi preso. Os militares não tomaram o poder com tanques na rua, como em 1964, mas chegaram ao poder com um presidente de origem militar (Jair Bolsonaro).
Agora, para a base da sociedade, os alvos preferenciais do sistema penal, sempre foi assim. Para eles, a “lava jato” sempre esteve presente.
ConJur — Como avalia a atuação do STF no inquérito das fake news e seus desdobramentos, inclusive a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, à luz do sistema acusatório?
Geraldo Prado — O Supremo Tribunal Federal foi muito importante para preservar a democracia. Teve uma atuação de defesa da democracia. Foi uma situação absolutamente excepcional, porque houve uma tentativa de golpe de Estado que, pela primeira vez na história brasileira, foi dirigida frontalmente contra a cúpula do Poder Judiciário. Os golpes normalmente eram contra o Executivo, e depois havia o fechamento do Congresso. Então o Supremo reagiu com os mecanismos que tinha à sua disposição para a preservação do Estado de Direito.
Uma vez controlada a situação, é necessário aplicar as regras do devido processo legal, até mesmo para os envolvidos na tentativa de golpe. É preciso respeitar as regras que restringem a competência do STF para ações penais originárias a casos excepcionalíssimos. Não me parece que essas regras estão sendo totalmente respeitadas. Os casos de réus que não têm foro por prerrogativa de função devem ser remetidos às instâncias competentes. Até porque não podemos crer que, no Judiciário, apenas o STF esteja mobilizado para defender a democracia.
Devido às circunstâncias da época, muito da atuação do STF foi provocada pela omissão de outros órgãos, como a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União. Isso gerou uma espécie de liderança do ministro relator (Alexandre de Moraes) na investigação. Mas o sistema acusatório impõe que, se esse ministro continuar a ser fiscal dessas investigações, não pode participar dos julgamentos. Oferecida a denúncia, é necessário sortear um novo relator.
ConJur — Como avalia a jurisprudência em matéria penal e processual penal do STF e STJ nos últimos anos?
Geraldo Prado — O STJ está promovendo uma verdadeira revolução no sentido da concretização das regras constitucionais. E tem feito isso com refinamento técnico e olhar para a vida real — um exemplo é a questão das injustiças epistêmicas. O STJ vem cumprindo uma importante função de orientação para operadores do Direito dos campos penal e processual penal. É o momento mais virtuoso da história do STJ.
Já o STF, em matéria criminal, na verdade são dois tribunais, a 1ª Turma e a 2ª Turma. A 2ª Turma é muito fiel à Constituição. Já a 1ª Turma tem uma concepção muito securitária do sistema de Justiça Criminal, que se afasta da melhor interpretação das regras do processo penal. O problema é que essas decisões acabam funcionando como uma espécie de carta branca para operadores do Direito, especialmente os da segurança pública, ultrapassarem o sinal vermelho.
ConJur — Tramitam no Congresso diversas propostas de reforma do Código de Processo Penal. Que pontos do CPP deveriam ser alterados ou atualizados, em sua opinião?
Geraldo Prado — Essas propostas deveriam ser arquivadas. Seria melhor montar um grupo de trabalho para oferecer um projeto mais enxuto, moderno e completo. É preciso regulamentar o processo penal contra pessoas jurídicas, a cooperação internacional, questões digitais. Não se pode deixar de enfrentar o tema da investigação criminal. Caso a investigação criminal pelo Ministério Público seja aceita, que ela seja regulada pelo Código do Processo Penal, e não por resoluções do MP. E o projeto deve ser elaborado com base nos preceitos da Constituição Federal.
ConJur — Idealmente, como deveria ser o sistema acusatório no Brasil hoje?
Geraldo Prado — Nós não podemos ficar presos a noções de sistemas que foram estabelecidas em contextos muito diferentes dos que temos hoje. Hoje o mundo é digitalizado. A fronteira entre a investigação e a inteligência cada vez se dizima mais, muito por força dos estados e governos, que não têm interesse em submeter seu poder de controle social a algum tipo de fiscalização do Judiciário, do Ministério Público, da sociedade. O potencial invasivo das novas tecnologias é absolutamente extraordinário. É preciso pensar o sistema observando essas características.
O contraditório é fundamental para o processo penal, é algo indiscutível. Mas o contraditório também deve ser garantido na formação técnica das provas, e como fazer isso quando quase todas as provas são digitais? Os elementos do sistema têm que se adaptar a isso. Outra questão: é possível atribuir uma figura processual penal específica a empresas de tecnologia como Google ou Meta, para que seja possível as sujeitar de forma mais eficiente ao sistema de Justiça Criminal?
O sistema que eu idealizo deve, acima de tudo, estar atrelado à Constituição e aos tratados internacionais. Os órgãos decisórios têm que ser imparciais e ter condições concretas de controlar essa miríade de poderes públicos e privados que a investigação da notícia-crime provoca. O sistema também deve assegurar o exercício efetivo do direito de defesa e, se for o caso, ceder espaço às soluções restaurativas. Todas as definições de sistemas de processo penal até hoje deixaram de lado o processo negocial restaurativo.
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