O problema do plágio: Menard, Cervantes e Borges
22 de setembro de 2024, 12h00
O conceito de plágio remonta ao Direito Romano. Originalmente referia-se à venda de escravos mediante fraude. Hoje, plágio é entendido como um furto literário. É a reprodução total ou parcial de uma obra alheia sem o consentimento do autor ou sem a devida indicação da fonte. A questão fica ainda mais complicada com a divulgação de textos, mensagens e ideias na rede mundial de computadores.
Há também situações em que a atribuição de autoria se torna impossível. Exemplifico com a adaptação de obras literárias: versões cinematográficas de obras conhecidas. O espectador/leitor fica dividido: o que acabou melhor: o livro ou o filme?
Há casos nos quais a omissão da fonte faz parte da intenção artística do autor, como ocorre em pastiches e paródias. Exemplifico com O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Inclusive, nesse caso, há livro e filme também. A paródia pode ser vista como um exercício de liberdade de expressão, amparado pelo conceito de fair use.
Jorge Luís Borges, no conto Pierre Menard, autor do Quixote, aborda de forma espirituosa e bizarra a questão do plágio. Borges narra a história de Menard, que pretendia reescrever Dom Quixote. Mas não queria uma nova versão. Queria uma reprodução exata, palavra por palavra do texto original de Cervantes. Essa tarefa, quase impossível, é apresentada por Borges com uma ironia única, sugerindo que a obra de Menard seria idêntica, mas também algo mais do que o original. E ainda melhor.
Borges introduz Pierre Menard no contexto hermenêutico do leitor, descrevendo, por exemplo, o arquivo particular dessa figura curiosa. O arquivo de Menard, tal como inventariado por Borges, revela uma mente aberta, mas obsessiva por todos os temas culturais, com pouco significado prático. Um exemplo é a obra Os problemas de um problema, em que Menard enfrentava a ordem cronológica das soluções do famoso problema de Aquiles e a tartaruga, um assunto recorrente entre os sofistas gregos.
No projeto de Menard para recriar Dom Quixote, Borges demonstra que o autor jamais pretendeu copiar mecanicamente o original de Cervantes, mas sim recriá-lo, considerando as experiências de Menard e não as de Cervantes. Esse propósito era assombroso e impossível, mas, segundo Borges, Menard se aproximou desse ideal.
Menard não queria ser Cervantes, mas pretendia, através de sua própria experiência, chegar a Dom Quixote. Borges argumenta que, apesar de os textos de Menard e Cervantes serem idênticos, o contexto em que foram criados confere ao texto de Menard uma riqueza quase infinita, mesmo que seus detratores não enxerguem dessa forma.
Borges também sugere que o Dom Quixote de Menard, por ser produzido em um contexto diferente, acaba por ser superior ao de Cervantes, ainda que as palavras sejam as mesmas. Esse contraste de estilos, para Borges, enriquece a obra de Menard, embora seja uma técnica de leitura anacrônica e errônea.
O leitor pode se perguntar por que Menard não seguiu o caminho mais fácil de simplesmente copiar o Dom Quixote. É justamente nessa questão que se encontra a definição de plágio.
O plagiador age com dolo, buscando se beneficiar do trabalho intelectual de outro. Menard, por outro lado, queria escrever o Dom Quixote de Cervantes, mas à sua própria maneira, por isso, estudou espanhol do início da era moderna, visitou a região da Mancha, leu todos os livros que Cervantes teria lido.
Em nossa cultura midiática contemporânea, em que nos citamos e referimos constantemente, muitas vezes perdemos a noção do que é original e do que é culturalmente compartilhado. Nesse sentido, todos somos um pouco como Pierre Menard, admirando Borges, e Cervantes também, mesmo que não tenhamos tempo para ler as volumosas aventuras do inesquecível cavaleiro da triste figura.
De qualquer modo, continuamos lutando contra nossos próprios moinhos de vento na defesa da honra de nossas imaginárias Dulcinéias.
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