Caráter universal dos direitos humanos: admissibilidade de amici curiae estrangeiro
22 de setembro de 2024, 6h07
No último dia 8 de agosto foram feitas as sustentações orais nos julgamentos do Recurso Especial no 1.212.272-AL e 979.742-AM que discutem, respectivamente, a possibilidade de recusa de transfusões de sangue no âmbito do Sistema Único de Saúde por pacientes Testemunhas de Jeová e se a União deve custear tratamentos alternativos no SUS.
Em ambos os casos, o elemento central da discussão tratou de dois direitos importantes: o direito à saúde e ao reconhecimento da liberdade religiosa, o que implica também a possibilidade de recusa ao tratamento e a eventual alteração do protocolo dos hospitais do SUS em relação aos pacientes.
Em um momento dos debates que foram transmitidos ao vivo, os ministros do Supremo Tribunal Federal discutiram a possibilidade de a associação que representa as Testemunhas de Jeová mundialmente, a Watch Tower Public and Tract Society of Pennsylvania, uma entidade constituída nos Estados Unidos, atuar como amicus curiae no STF.
O nosso argumento aqui é o de que a participação de entidades estrangeiras como amicus curiae no STF não pode ser limitada, pois a própria estrutura de direitos fundamentais e o reconhecimento do caráter universal dos direitos humanos na Constituição permitem que entidades internacionais, sejam elas governamentais ou não, possam contribuir e enriquecer o debate em ações na mais alta corte do país, sobretudo em matéria de direitos humanos.
Previsão legal
A possibilidade de atuação de amicus curiae no STF é reconhecida pelo artigo 7º, parágrafo 2º, da Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999, que disciplina as ações declaratória de constitucionalidade (ADC) e direta de inconstitucionalidade (ADI).
Referido dispositivo prevê que o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades.
O artigo 138 do Código de Processo Civil amplia a possibilidade de admissão do amicus curiae em outros processos judiciais ao prever que o juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 dias de sua intimação.
Contribuições do ‘amigo da corte’
Qual é o objetivo do amicus curiae? A expressão latina “amicus curiae”, que é traduzida por “amigo da corte”, tem por objetivo não somente contribuir com a pluralidade do debate ou proporcionar um caráter mais democrático às decisões tomadas, como também melhorar a sua qualidade por meio de contribuições que possam ser úteis ao julgamento.
Ademais, estudos confirmam que argumentos apresentados por amici curiae são efetivamente incorporados nos votos no âmbito do STF e que sua atuação contribuiu com a legitimidade e a qualidade do processo decisório.
Nesse sentido, é muito importante que não se limite a entidades brasileiras a capacidade de se atuar como amicus curiae, sobretudo em matérias que tratam da concretização de direitos humanos.
Em parecer emitido por um de nós para a Associação Nacional dos Atingidos por Barragens (Anab), amicus curiae na ADPF 1.178, movida pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que trata sobre a (im)possibilidade de municípios ajuizarem ações de indenização no exterior, foi destacada a centralidade dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro e de que forma essa centralidade impacta a forma como toda a estrutura para a sua concretização, inclusive no âmbito do processo judicial, deve ser moldada:
“[p]or ser inerente a todos os seres humanos e não simplesmente aos integrantes de determinada nacionalidade, etnia ou status libertatis, o postulado de dignidade da pessoa humana tem um caráter universal. Em outras palavras, não se trata de privilégio limitado a cidadãos de determinados Estados ou nações. Tal conceito está refletido no próprio nome da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, pouco mais de 3 (três) anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. O primeiro parágrafo de seu preâmbulo trata do reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. A Constituição, ao refletir a centralidade da dignidade humana na ordem jurídica interna da República Federativa do Brasil em seu Art. 1º, inciso III, reconheceu que a sua soberania como uma sociedade democrática é derivada da ascensão dos direitos humanos ao patamar mais elevado dentro de nosso sistema jurídico, acima até das questões relacionadas à organização estatal. Este foi o aprendizado maior derivado das tragédias da Segunda Guerra Mundial, de que as questões da organização estatal, que eram tão caras ao nacionalismo nazista, não podem ser colocadas acima da proteção universal dos direitos humanos.
[…]
O sistema jurídico sempre deve reconhecer como legítima a luta pela efetivação dos direitos humanos por indivíduos, organizações não governamentais ou entes públicos ainda que por meio de ações ajuizadas perante cortes nacionais ou estrangeiras, quando assim for necessário. O caráter universal dos direitos humanos exige que seja dada interpretação mais ampla possível a: (i) quais seriam os legitimados a promover a sua efetividade e concretização; e a (ii) quais medidas poderiam ser tomadas por tais legitimados. Portanto, negar aos Municípios a possibilidade de ajuizar litígios perante cortes estrangeiras, em razão de graves desastres ambientais envolvendo companhias estrangeiras, com vistas a assegurar a efetividade dos direitos humanos, seria correspondente à negação do caráter universal dos direitos humanos e à desconsideração de todo o processo evolutivo de sua afirmação.”
Conclusão
A possibilidade de admissão de amici curiae internacionais, sobretudo os que representam interesses de grupos minoritários, como nos casos objeto de discussão, pode ser muito significativa ao:
(1) indicar como outras cortes e outros ordenamentos jurídicos têm lidado com questões similares, considerando-se que a influência do direito comparado e a jurisprudência estrangeira nunca foram estranhas à prática jurídica brasileira;
(2) ampliar as possibilidades de diálogo pelo Judiciário brasileiro em matérias relevantes para os direitos humanos;
(3) dar representatividade a grupos da sociedade civil que se sentem representados por tais organizações, o que é um reconhecimento de que os vínculos comunitários do mundo contemporâneo não se limitam a fronteiras estatais, seja em matéria religiosa, seja em qualquer outra; e
(4) contribuir para o prestígio internacional das decisões tomadas pelo Judiciário brasileiro.
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