Processo Familiar

Afeto: de valor jurídico à perversão. Eu errei. E muito (parte 3 - final)

Autor

  • José Fernando Simão

    é professor associado do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP livre-docente doutor e mestre em Direito Civil pela mesma faculdade diretor do IBDCONT e vice-presidente do IBDFAMSP.

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22 de setembro de 2024, 12h00

“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu.”
João Guimarães Rosa.

Em duas colunas anteriores tratei do afeto como perversão. Falei da multiparentalidade e das tentativas de “usucapião” de filho alheio por madrastas e padrastos.

A segunda perversão do afeto é a possibilidade de escolha que se dá ao filho: quero meu pai biológico, quero meu pai socioafetivo ou quero os dois? São as chamadas ações argentárias.

Explico. A paternidade como dado biológico depende de uma prova razoavelmente simples: o exame de DNA. A paternidade socioafetiva depende de prova documental, testemunhal e muitas vezes a declaração das partes que pretendem declarar o vínculo.

Em 2012, o STJ assim decidiu:

“É possível o reconhecimento da paternidade biológica e a anulação do registro de nascimento na hipótese em que pleiteados pelo filho adotado conforme prática conhecida como “adoção à brasileira.

paternidade biológica traz em si responsabilidades que lhe são intrínsecas e que, somente em situações excepcionais, previstas em lei, podem ser afastadas. O direito da pessoa ao reconhecimento de sua ancestralidade e origem genética insere-se nos atributos da própria personalidade.

A prática conhecida como “adoção à brasileira”, ao contrário da adoção legal, não tem a aptidão de romper os vínculos civis entre o filho e os pais biológicos, que devem ser restabelecidos sempre que o filho manifestar o seu desejo de desfazer o liame jurídico advindo do registro ilegalmente levado a efeito, restaurando-se, por conseguinte, todos os consectários legais da paternidade biológica, como os registrais, os patrimoniais e os hereditários.

Dessa forma, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos do filho resultantes da filiação biológica, não podendo, nesse sentido, haver equiparação entre a “adoção à brasileira” e a adoção regular. Ademais, embora a “adoção à brasileira”, muitas vezes, não denote torpeza de quem a pratica, pode ela ser instrumental de diversos ilícitos, como os relacionados ao tráfico internacional de crianças, além de poder não refletir o melhor interesse do menor.”

Precedente citado: REsp 833.712-RS, DJ 4/6/2007. REsp 1.167.993-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/12/2012.

A decisão cria uma terceira via, nos moldes de Guimarães Rosa, uma terceira margem do rio. Melhor ouvir o próprio Guimarães:

“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.”

A paternidade deixa de ser um dado biológico ou afetivo, mas passa a ser um ato de decisão do filho. Cabe a ele decidir: i) manter a paternidade socioafetiva; ii) buscar a biológica em substituição à socioafetiva; iii) ficar com ambas as paternidades criando-se assim uma multiparentalidade (Tema 622/STF) [1].

Spacca

Nessa situação de opção, em que a paternidade passa a ser um ato de vontade do filho, temos problemas de diversas naturezas a enfrentar. Se a opção é do filho, como fica a construção afetiva já estabelecida caso este opte pela paternidade biológica? Se a opção é do filho, caso este já tenha recebido herança do pai socioafetivo fará jus também à herança do pai biológico? Se a opção é do filho, pode ele tendo tido um pai afetivo criar, pelo simples DNA, uma segunda paternidade com idênticos efeitos à primeira?

Se a opção é do filho, como fica a construção afetiva já estabelecida caso este opte pela paternidade biológica?

Não fica. Simplesmente o afeto de uma vida passa a ser um detalhe porque no caso de 2012 temos a seguinte motivação: “devem ser restabelecidos sempre que o filho manifestar o seu desejo de desfazer o liame jurídico advindo do registro ilegalmente levado a efeito, restaurando-se, por conseguinte, todos os consectários legais da paternidade biológica”.

O afeto como valor jurídico passa a ser desconsiderado por força da decisão do filho. Aqui a solução somente se justificaria se crime houvesse. É o famoso caso amplamente noticiado da Sra. Vilma e de Pedrinho. Vilma, vestida de enfermeira, sequestrou o menino que tinha apenas 13 horas de vida [2]. Pedro tem o direito, por força do crime de sequestro, de optar pelos pais biológicos em detrimento dos socioafetivos. E foi o que fez.

No caso de abandono pelos pais biológicos, ou da antiga roda dos enjeitados, a criação por meio de afeto não pode ser trocada pelo DNA por força da vontade do filho. Esse tem direito à verdade biológica, não à paternidade biológica. Tem um pai (que o criou) e um ascendente genético (que não é pai). Verdade biológica não se confunde com paternidade.

Já é assim na adoção. O pai não é ascendente genético, mas nem por isso o filho adotivo poderia ter dois pais!! Há um pai (o adotivo) e um ascendente genético (que não é pai).

Se a opção é do filho, caso este já tenha recebido herança do pai socioafetivo fará jus também à herança do pai biológico?

Esse é um grande dilema. A resposta mais fácil é: se tem dois pais, faz jus à dupla herança.

Primeiro que a pessoa pode não ter “dois pais” já que na decisão de 2012, o filho optou por desfazer o vínculo afetivo ao reconhecer o biológico. Assim, devolver a herança recebida é a regra no sistema jurídico. O herdeiro o era aparentemente. E ao reconhecer o pai biológico como único pai, não pode manter a herança recebida do pai socioafetivo.

Segundo, é correto ao sistema jurídico admitir que alguém que já tinha um pai (dado socioafetivo), tenha um segundo apenas para fins de herança? O sistema não admite essa hipótese. Há uma base ética que resta ferida na hipótese em questão.  Não se busca um pai, mas sim uma herança.

Nesse ponto cito a opinião de Flavio Tartuce:

“Com o devido respeito, essa forma de julgar representaria um retrocesso, uma volta ao passado, desprezando a posse de estado de filho fundada na reputação social (reputatio) e no tratamento dos envolvidos (tractatus). Ademais, abre-se a possibilidade de um filho “escolher” o seu pai não pelo ato continuado de afeto, mas por meros interesses patrimoniais, em uma clara demanda frívola — como denomina Anderson Schreiber — ou demanda argentária — como define José Fernando Simão. O mesmo pensamento deve ser aplicado na situação inversa, quanto à demanda do art. 1.604 do Código Civil proposta pelo suposto pai biológico, movida apenas por interesses patrimoniais.

Na hipótese de um pai biológico que pleiteia a paternidade para si de filho já registrado em nome de pai socioafetivo, com fins puramente econômicos, não me parece haver a possibilidade de demanda, ou mesmo legitimidade, para a ação. Em casos tais, interpreto a decisão do STF no sentido de apenas se reconhecer o direito do filho em buscar a verdade biológica, após atingir a maioridade.” [3]

É por isso que tendo existido um pai afetivo, tendo o filho já recebido sua herança (ou mesmo tem a expectativa de receber porque o pai afetivo está vivo), não tem o filho o direito de pleitear a herança do pai biológico que já morreu. É demanda frívola, argentária.

Se a opção é do filho, pode ele tendo tido um pai afetivo criar, pelo simples DNA, uma segunda paternidade com idênticos efeitos à primeira?

A pergunta é mais profunda. A multiparentalidade é regra ou exceção no direito brasileiro?  A resposta tem de ser exceção. Nunca regra. O que isso implica?

A pessoa tem direito (por força do sistema jurídico brasileiro) a apenas um pai e uma mãe. A qualidade não entra no jogo. Se bom ou ruim, isso não interessa. Quem tem um pai e uma mãe não pode pedir mais um pai ou mais duas mães. Isso é nefasto ao sistema pois crianças e adolescentes passam a ser cobaias em teses jurídicas não testadas, não assimiladas socialmente, e potencialmente perigosas.

Se há um pai biológico que exerce suas funções ao lado de uma mãe biológica que também a exerce, não se cabe multiparentalidade, ainda que haja afeto entre a pessoa e sua madrasta ou padrasto.

Quem tem um pai e uma mãe, ou duas mães ou dois pais, nos casais parentais homoafetivos, não tem direito a um terceiro com base em afeto ou DNA.

É por isso que se duas mulheres tem um projeto parental em que um homem entra como doador de sêmen, a criança não terá duas mães e um pai, nem que assim deseje. O doador de sêmen é ascendente genético e não pai.

É por isso, também, que se dois homens tem um projeto parental em que uma mulher entra como doadora de óvulo, a criança não terá dois pais e uma mãe, nem que assim deseje. A doadora de óvulo é ascendente genética e não mãe.

Os casos de multiparentalidade deveriam ser a exceção da exceção. Exemplo disso se dá com a troca de bebês me maternidade. Para quem não viu, recomendo o filme “Le fils de l’autre[4] ou o filme “Pais e filhos” do aclamado diretor Kore-eda [5].

Ainda, em situação excepcional e muito rara na prática, a madrasta assume papel de mãe ou o padrasto de pai. Isso se verifica quando há morte dos pais enquanto o filho é muito jovem. Também, quando há tal afinidade como os parentes por afinidade que cria-se verdadeiramente multiparentalidade.

O direito só deve reconhecer o que já existe na prática. Não pode permitir ao filho “trocar” o pai afetivo pelo biológico, ou já tendo um pai, obter um segundo por força do DNA. Não pode o direito dar mais de um pai ou uma mãe (ou dois pais ou duas mães nos casais homoafetivos) a quem já os tem.

Se a opção é do filho, pode ele tendo tido um pai afetivo criar, pelo simples DNA, uma segunda paternidade com idênticos efeitos à primeira? Não, não pode. Pode ter um ascendente genético, mas não um pai. É o direito de personalidade que permite a ciência das origens genéticas. Para o direito de família (e das sucessões), a pessoa tem apenas um pai.

___________________

[1] A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.

[2] 16 anos longe da família: Caso Pedrinho, o sequestro que chocou o Brasil (aventurasnahistoria.com.br)

[3] https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/286476/da-acao-vindicatoria-

de-filho—analise-diante-da-recente-decisao-do-stf-sobre-a-parentalidade-socioafetiva”

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Le_Fils_de_l%27autre

[5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Soshite_Chichi_ni_Naru

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