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O Tema 1.046 STF e a prevalência das negociações sindicais

21 de setembro de 2024, 17h16

Por Desirée Evangelista

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Desde a sua criação, a legislação trabalhista no Brasil foi marcada por um robusto protecionismo em relação ao trabalhador, característica originada com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), instituída em 1943. Contudo, com a evolução das relações de trabalho e a necessidade de modernização das normas laborais, surgiu a reforma trabalhista, que propôs uma flexibilização e maior adaptabilidade às necessidades contemporâneas tanto das empresas quanto dos trabalhadores.

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Do ponto de vista normativo brasileiro, a Constituição assegura, em seu artigo 7º, inciso XXVI, a autonomia privada coletiva, conferindo validade às normas provenientes de convenções e acordos coletivos. No âmbito internacional, as Convenções nº 98 e nº 154 da Organização Internacional do Trabalho garantem o direito e incentivam a negociação coletiva.

A Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, também conhecida como reforma trabalhista, tem como um de seus objetivos principais o fortalecimento da autonomia e da legitimidade das negociações coletivas.

A justificativa para tal afirmação se reflete na vontade do legislador ao incluir o artigo 611-A na CLT, o qual estabelece um rol exemplificativo de situações em que a legislação pode ser flexibilizada por meio de convenções coletivas ou acordos coletivos celebrados entre sindicatos e empregadores.

Direitos trabalhistas irrenunciáveis

Em contrapartida, o artigo 611-B define um rol taxativo de direitos que são irrenunciáveis e, portanto, não passíveis de negociação, delimitando com clareza os direitos protegidos pela lei.

O doutrinador e ministro do Superior Tribunal do Trabalho, Mauricio Godinho Delgado, dispõe acerca do assunto que:

Note-se que o art. 611-A, caput, da CLT, conforme redação promovida pela Lei n. 13.467/2017, autoriza a ampla prevalência das regras coletivas negociadas em contraposição às normas jusindividuais imperativas estatais existentes. À exceção apenas do rol de direitos previsto no art. 611-B da CLT (também por redação imposta pela nova lei), o que se estabelece é uma drástica ruptura com o padrão de direitos e de proteção ao trabalho firmados pela ordem jurídica heterônoma estatal do País, em seu tripé estruturante, ou seja, Constituição da República, normas internacionais vigorantes no Brasil e legislação federal trabalhista.

Há, por consequência, na nova lei clara rejeição ao princípio da adequação setorial negociada, que estabelece a prevalência das normas autônomas juscoletivas sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista fixado, desde que respeitados os seguintes critérios: “a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta)

Nesse cenário, em 2 de junho de 2022, o STF (Supremo Tribunal Federal), ao julgar o ARE 1.121.633, decidiu que as normas estabelecidas em acordos e convenções coletivas podem limitar ou restringir direitos trabalhistas, salvo nas hipóteses em que tais direitos estejam assegurados pela Constituição. Fixando a tese de repercussão geral no Tema 1046:

“São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.”

Autonomia dos trabalhadores

A decisão do STF sobre este tema possui implicações significativas. De um lado, ela valida a importância da autonomia coletiva e a capacidade dos sindicatos de negociar de forma efetiva em nome dos trabalhadores. De outro, estabelece limites claros para assegurar que os direitos fundamentais dos trabalhadores não sejam comprometidos.

Veja-se que, ao reconhecer a repercussão geral do ARE 1.121.633, o STF reafirmou a constitucionalidade dos acordos e convenções coletivas que versam sobre direitos trabalhistas. Essa decisão consolida de vez a autonomia e a legitimidade das negociações coletivas, promovendo um ambiente de mais segurança jurídica para as empresas.

Spacca

Consubstanciado a isso, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) tem corroborado as negociações sindicais através da reforma de decisões de tribunais regionais que afastam ou anulam cláusulas de negociação coletiva após a fixação do Tema 1.046. Isso se deve ao fato da forte influência dos princípios da proteção, da norma mais favorável e da vedação à alteração contratual lesiva.

Assim, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis, o negociado prevalece sobre o legislado, corroborando que uma das finalidades centrais da reforma trabalhista foi validada pela Suprema Corte.

Sindicatos perdem força

Frisa-se que, embora a Lei nº 13.467/2017 tenha conferido maior poder às negociações coletivas, também houve um enfraquecimento dos sindicatos e um efetivo desmonte da organização sindical. Isso ocorreu, em grande parte, devido à institucionalização do caráter facultativo da contribuição sindical, o que tornou a negociação coletiva, em certa medida, desbalanceada.

Em conclusão, o Tema 1.046 do STF constitui um marco relevante no ordenamento jurídico, ao reafirmar a constitucionalidade da prevalência do negociado sobre o legislado em inúmeros aspectos das relações trabalhistas.

Tal decisão reforça a autonomia privada coletiva e a importância da negociação coletiva como instrumento de adequação das condições laborais às especificidades de cada categoria profissional, dentro dos limites estabelecidos pela Constituição.

Entretanto, a flexibilização decorrente dessas negociações não pode transgredir direitos fundamentais indisponíveis, como aqueles relativos à saúde, segurança e dignidade do trabalhador.

Por fim, o entendimento consubstanciado no Tema 1.046 revela-se um ponto de equilíbrio entre a necessária modernização das relações de trabalho e a inafastável proteção dos direitos mínimos assegurados pela legislação trabalhista, resguardando o ordenamento jurídico.

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Referências

CALCINI, MORAES. RICARDO, LEANDRO BOCCHI. A prevalência do negociado sobre o legislado sob a ótica do STF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-09/pratica-trabalhista-prevalencia-negociado legislado/#:~:text=A%20conven%C3%A7%C3%A3o%20coletiva%20e%20o%20acordo%20coletivo%20de%20trabalho%20t%C3%AAm,de%20trinta%20minutos%20para%20jornadas. Acesso em: 27 ago. 2024

DELGADO, MAURICIO GODINHO. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017 / Mauricio Godinho Delgado, Gabriela Neves Delgado. – São Paulo : LTr, 2017.

ROCHA. ARMANDO GOMES. O impacto das decisões do TST nas negociações sindicais. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/o-impacto-das-decisoes-do-tst-nas-negociacoes-sindicais. Acesso em: 27 ago. 2024.