Diário de Classe

O mau exemplo da metafilosofia — e como evitá-lo na teoria do direito

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21 de setembro de 2024, 8h00

Desde o último século, nota-se um crescente debate sobre o chamado “estatuto filosófico” da história da filosofia. A controvérsia gira basicamente em torno de duas “abordagens” possíveis ao problema da história na filosofia.

A primeira vertente, chamada de apropriacionista, vai dizer que textos filosóficos são autônomos e podem conter “ideias atemporais”, que podem — ou melhor, devem — ser debatidas, podendo o seu conteúdo ser apropriado, independentemente de uma contextualização. Já a segunda corrente, contextualista, defende justamente o oposto, isto é, fala da importância de contextualizar, de como não existem ideias “abstratas” e “atemporais”, sendo que cada pensamento se dá em um determinado contexto, cujo teor merece ser investigado e tem valor, inclusive filosófico [1].

Ao fim e ao cabo, a querela filosófica esconde um tema antigo, que é tão antigo quanto a própria filosofia: o problema do método e de como a história se confunde com a filosofia. Tais reflexões passaram a gerar interesse entre os autores envolvidos no debate. Afinal, quais seriam os limites da própria investigação filosófica? E o quão histórica deveria ser essa investigação? Foram questões assim que passaram a conduzir os trabalhos de um campo que passava a problematizar a própria concepção de filosofia: algo como “filosofar a filosofia”, isto é, metafilosofia [2].

Mas tal querela também esconde um problema que vem sendo levantado recentemente por outros campos, como a própria história. Historiadores e teóricos, cujos trabalhos se encontram no limite da transdisciplinaridade, criticam a “descoberta recente” da filosofia de um problema metodológico de há muito discutido em outros campos, entre eles o da história intelectual [3].

Com efeito, a questão sobre a (in)existência de “ideias perenes” na filosofia é algo debatido há décadas por cientistas e teóricos políticos [4], mas parece ter sido um debate “esquecido” pelos filósofos até pouco tempo atrás, quando a controvérsia contextualistas-apropriacionistas veio à tona com mais força [5]. Desde então, o tema vem sendo objeto de intensos debates entre as duas correntes, mas isso é algo recente. Como, então, um tema tão importante — os limites metodológicos entre filosofia e história — foi deixado de lado por tanto tempo pelos filósofos? A resposta, irônica ou não ironicamente, tem de ser dada pela própria historiografia.

Virada analítica e o ‘historical turn’

Autores como Ray Monk e Nikhil Krishnan vêm ultimamente resgatando a história recente da filosofia analítica [6]. A partir desses textos, é possível constatar que a virada analítica na filosofia anglófona foi, em grande parte, responsável por excluir qualquer possibilidade de se “historicizar” a prática filosófica. Um dos “pais” do movimento analítico em Oxford, Gilbert Ryle, ainda que posteriormente tenha se afastado do maniqueísta mantra “ou ciência, ou nonsense” associado ao Círculo de Viena, afirmava que a filosofia deveria almejar a cientificidade, se afastando da metafísica [7]. Ryle formou gerações de filósofos em Oxford e, por mais que tivesse seus críticos, sua influência na filosofia britânica entre a primeira metade do século 20 é inquestionável.

Dessa forma, autores que questionavam a historicidade na filosofia foram, ao menos entre o início do século 20 e o final dos anos 1960, muito pouco estudados pelos analíticos. Foi o caso de Ludwig Wittgenstein (o segundo, das Investigações Filosóficas) e R. G. Collingwood, autores que tinham outra visão sobre a importância da história para a filosofia, mas cujas teses foram marginalizadas pelos analíticos de então [8]. O cenário mudou a partir do final dos anos 1960 e anos 1970, quando enfim ocorreu o chamado “historical turn” da filosofia analítica, a partir de autores como Peter Strawson, Wilfrid Sellars e, mais recentemente, Robert Brandom [9].

O que o chamado giro histórico-analítico introduziu foi um debate metafilósofico que já havia sido antecipado pelos questionamentos da Escola de Cambridge, dentre os quais se destacou Quentin Skinner [10]. Compreensível, portanto, as críticas que tal postura merece, justamente por isolar a filosofia dos demais campos, uma acusação que é feita especialmente aos analíticos [11].

Com efeito, a crítica que se faz ao debate metafilosófico (contextualistas-apropriacionistas) é a de que esse debate apenas faria sentido caso ele se desse dentro da ótica analítica. Mas por meio das lentes continentais, isto é, a partir da matriz fenomenológico-hermenêutica, a história nunca foi “deixada de lado”. Pelo contrário: ela é constitutiva da filosofia e, portanto, ao menos neste aspecto, a querela apropriacionista-contextualista tampouco faria sentido, pois a interpretação sempre se faz dentro de um círculo hermenêutico, com a “pré-compreensão” fazendo as vezes da apropriação, que nunca pode ser desvinculada de seu contexto [12].

História e Direito

Mas, afinal, o que tudo isso tem a ver com o Direito? Para começar, como as demais humanidades, o Direito parte de problemas metodológicos que o levam inevitavelmente a debater o problema de sua historicidade e de como trabalhar os seus conceitos. Nesse sentido, o jurista tem algumas alternativas metodológicas a adotar. A história, afinal, importa para o Direito? O problema, passa, portanto, assim como na filosofia, por uma pergunta, de onde se tira uma resposta [13]. Não poderia ser diferente, pois o Direito é, em grande parte, filosofia.

Sendo assim, os riscos a que os filósofos estão expostos se aproximam dos riscos que os juristas correm ao lidarem com o Direito na sua prática cotidiana — que não se afasta da teoria, tendo em vista que não há práxis sem teoria. Dessa forma, percebe-se que teóricos do direito podem — ou não — subscrever teses analíticas. Algumas delas se fazem autoevidentes. Por exemplo: é conhecida a influência que a filosofia analítica teve no positivismo jurídico de H. L. A. Hart e seus sucessores. Uma objeção poderia ser feita quando se diz que Dworkin, mesmo se opondo ao positivismo, ainda estava inserido dentro da tradição filosófica analítica. Tratar-se-ia, então, de questões distintas: por um lado teríamos o positivismo jurídico e as consequências que a analítica trouxe ao seu descritivismo metodológico, por outro a tradição analítica em sentido mais amplo.

Precedentalismo à brasileira

Mas o risco ao qual me refiro neste texto é de ordem pragmático-discursiva. Tomo como exemplo a questão dos precedentes. Ao optar por expor um conceito de precedente sem contextualizá-lo trouxe para a dogmática jurídica brasileira inúmeros problemas. Além do risco de vulgarizar o tema, assumimos o risco de adotar conceitos como se fossem “próteses para fantasmas”, nas palavras do professor Lenio Streck. Quando deixamos de estudar a história de um conceito, instrumentalizando-o analiticamente, corremos o risco da má-compreensão.

Sendo o mais objetivo possível, temos hoje no Brasil o que se convencionou chamar de “sistema de precedentes”. Mas indago: há de fato no país tal “sistema”? Se contextualizarmos e buscarmos as origens do stare decisis na common law, veremos o instituto do precedente como uma holding, um paradigma pelo qual casos futuros julgam a partir do que se decidiu no passado. No Brasil o precedente serve contemporaneamente como uma espécie de política judiciária, com implementação de teses para o futuro, como nas Cortes de Vértice, desvirtuando a acepção original dos precedentes da common law [14].

Neste caso, para levar a historicidade do direito a sério, teríamos, portanto, que contextualizar a teorização do direito, freando assim a vulgarização dos conceitos. O precedentalismo à brasileira é um exemplo de “importação tardia” que, tal qual ocorreu com a metafilosofia, vulgarizou um conceito e um debate muito mais antigo e complexo. Exemplos de importações como essa, infelizmente, são pródigos na dogmática jurídica. O mesmo ocorre com a importação ad hoc de teses sem a observação de suas premissas e metodologias, como é o caso da ponderação de princípios de Robert Alexy — a qual, inclusive, ganhou novo capítulo dramático, tendo sido utilizada para fundamentar o voto vencedor no julgamento recente do STF, que declarou constitucional o cumprimento automático de pena para qualquer condenação por Tribunal do Júri no Brasil [15].

Como disse John L. Austin, “se faz coisas com palavras” [16]. Os conceitos não ocorrem em um “vazio interpretativo”, estão eivados de pré-compreensão. Mas pré-compreensão não pode significar instrumentalização, muito menos vulgarização de conceitos complexos. Se na filosofia analítica ainda hoje se cai na armadilha de ignorar debates que ocorreram fora do seu (um tanto quanto estreito) perímetro, na teoria do direito — em especial a dogmática —, influenciada pelo positivismo como é, tem-se de tomar especial cuidado para não cair no mau exemplo da metafilosofia: o de se considerar autossuficiente e não olhar para os debates que giram no “entorno marginalizado”, como é o caso da historiografia. Tais campos “à margem” podem nos revelar novos sentidos.

 


[1] Sobre a querela, cf. SILVA, Gabriel Ferreira da. The Historian of Philosophy as a “Portraitmaller”: A Brentanian   Look   on   Contextualism-Appropriationism   debate. Síntese: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v.  49, n. 155, p. 559, set/dez., 2022. Disponível em: https://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/5125/4984. Acesso em: 19 set. 2024.

[2] Cf. WILLIAMSOM, Thimothy. The Philosophy of Philosophy. 2nd ed. New York: Wiley, 2023.

[3] Essa crítica foi formulada em artigo recente publicado em parceria com Luã Jung, que pode ser conferido em REBELO, Victor B.; NOGUEIRA JUNG, Luã. Partindo (dos) caminhos: O contextualismo linguístico de Quentin Skinner como desafio ao Conceito de “Parting of ways” da filosofia contemporânea. Geltung, revista de estudos das origens da filosofia contemporânea[S. l.], v. 2, n. 2, p. e66500, 2024. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/geltung/article/view/66500. Acesso em: 19 set. 2024.

[4] Cf. BEVIR, Mark. Are There Perennial Problems in Political Theory? Political Studies, v. XLII, p. 662-675, 1992.

[5] O embate entre as duas correntes tomou corpo a partir dos seguintes artigos: DELLA ROCCA, Michael. Interpreting Spinoza: The Real is the Rational. Journal of the History of Philosophy, v. 53 n. 3, p. 523-535, 2015; GARBER, Daniel. Superheroes in the History of Philosophy: Spinoza, Super-rationalist. Journal of the History of Philosophy, v. 53, n. 3, p. 507-521, 2015, entre outras replicas e tréplicas entre ambos os filósofos.

[6] MONK, Ray. How the untimely death of RG Collingwood changed the course of philosophy forever. Prospect, 5 set. 2019. Disponível em: https://www.prospectmagazine.co.uk/ideas/philosophy/39183/how-the-untimely-death-of-rg-collingwood-changed-the-course-of-philosophy-forever. Acesso em 19 set. 2024; KRISHNAN, Nikhil. A Terribly Serious Adventure: Philosophy at Oxford (1900-60). London: Profile Books, 2023.

[7] Cf. RYLE, Gilbert. Autobiographical. In: WOOD, Oscar P.; PITCHER, George. (ed.). Ryle. London: Macmillan, 1970. p. 1-15.

[8] Cf. KRISHNAN, Nikhil. A Terribly Serious Adventure. op cit.

[9] Cf., por todos, STRAWSON, P. F. The Bounds of Sense. London: Methuen, 1966; SELLARS, Wilfrid. Essays in Philosophy and Its History. D. Reidel: Dordrecht, 1975; e BRANDOM, Robert. Tales of the Mighty Dead: historical essays in metaphysics of intentionality. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

[10] SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and Theory, v. 8, n. 3, p. 3-53, 1969.

[11] Para uma discussão mais completa sobre o giro histórico na filosofia analítica, ver RECK, Erich H.  (ed.). The Historical Turn in Analytic Philosophy. Basingstoke, Hampshire New York, NY: Palgrave Macmillan, 2013.

[12] É preciso observar que autores como Quentin Skinner nunca pretenderam levar totalmente a sério a dicotomia “analíticos/continentais”. A proposta do contextualismo linguístico, inclusive, pode ser lida como um desafio a essa dicotomia, justamente pelo seu aporte de autores dos dois campos, como John L. Austin (considerado ‘analítico’) e Collingwood e Wittgenstein, autores cujos trabalhos desafiam qualquer rótulo. Por isso, em artigo em coautoria com Luã Jung, afirmamos a necessidade de diferenciar os contextualistas metafilósoficos do contextualismo linguístico de Quentin Skinner, justamente pelo desafio que o contextualismo linguístico faz à essa dicotomia do chamado “parting of ways” da filosofia.

[13] Lembremos do aforisma collingwoodiano da filosofia como um jogo de perguntas e respostas.

[14] O problema é trabalhado exaustivamente por Lenio Streck. Por todos, cito seu livro especializado sobre o tema em STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: JusPodivm, 2024.

[15] Sobre a ponderação (não tanto) alexyana no voto do Ministro Barroso, ver STRECK, Lenio Luiz. O STF, a prisão no júri e o voto equivocado do Ministro Barroso. Revista Consultor Jurídico, 3 jul. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jul-03/lenio-streck-stf-prisao-juri-voto-equivocado-ministro-barroso/. Acesso em: 19 set. 2024.

[16] AUSTIN, John L. How to do things with Words. Oxford: Oxford University Press, 1962.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito Público, summa cum laude, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), como bolsista Proex/Capes, membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos, professor da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e advogado.

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