Incêndios florestais: desafios jurídicos, ambientais e soluções integradas
21 de setembro de 2024, 8h00
Os incêndios florestais no Brasil se apresentam como um desafio significativo. Destaca-se, nesse ano de 2024, uma certa perplexidade de governos e da sociedade civil diante do número monumental de focos de incêndios e áreas queimadas que ganham proporções continentais, afetando vários biomas e estados brasileiros. Os impactos são vastos, afetando o meio ambiente, a economia, a sociedade e a biodiversidade.
Isso resulta em perdas reais de produtividade e produção, comprometendo o desenvolvimento nacional e os esforços de conservação de florestas e restauração ambiental. Além disso, há perdas significativas para a fauna e flora, degradação dos solos e uma enorme contribuição para o aumento das emissões de gases de efeito estufa.
Esse cenário exige a necessidade de um amplo diálogo nacional para a construção de soluções, inclusive jurídicas, diante desse novo paradigma ambiental que a sociedade enfrenta, intensificado pelos efeitos das mudanças climáticas já que esse cenário têm aumentado a frequência e a severidade dos incêndios florestais. O aumento das temperaturas, a redução das chuvas e a alteração do regime de pluviosidade criam condições propícias para a propagação do fogo, que geralmente decorre de ação humana, seja por negligência ou por ação criminosa.
A legislação brasileira, por meio do Código Florestal, regulamenta e estabelece diretrizes específicas para o uso do fogo na vegetação, com o intuito de proteger o meio ambiente e evitar incêndios descontrolados. De maneira geral, o uso do fogo é proibido, exceto em situações bem definidas. Primeiramente, é permitido em práticas agropastoris ou florestais em locais onde as características regionais o justifiquem.
Para isso, é necessária a aprovação prévia do órgão ambiental estadual competente. Esse órgão determinará os critérios de monitoramento e controle para cada imóvel rural ou de forma regionalizada. Além disso, é exigido que os estudos para o licenciamento dessas atividades incluam um planejamento específico para o uso e controle do fogo.
O uso controlado do fogo também é permitido em unidades de conservação, desde que esteja em conformidade com o plano de manejo da unidade e seja aprovado pelo órgão gestor responsável. Essa prática visa o manejo conservacionista de vegetações cuja ecologia está associada ao fogo.
Além disso, atividades de pesquisa científica que envolvam o uso do fogo podem ser realizadas, desde que façam parte de projetos aprovados por órgãos competentes e sejam conduzidas por instituições de pesquisa reconhecidas. Exceções à proibição geral incluem práticas de prevenção e combate a incêndios, bem como a agricultura de subsistência realizada por populações tradicionais e indígenas.
Gestão e controle
Na perspectiva da gestão e controle ambiental, o Código Florestal, em seu artigo 39, determina que os órgãos ambientais do Sisnama, além de outros responsáveis pela gestão de áreas com vegetação nativa ou florestas plantadas, são obrigados a elaborar, atualizar e implementar planos de contingência e manejo integrado do fogo.
Esses planos devem incluir diretrizes para o uso da aviação agrícola no combate a incêndios e garantir que as aeronaves e pilotos atendam às normas técnicas e qualificações exigidas. Ainda, conforme determina o artigo 40 da Lei 12.651/12, impõe como obrigação do Governo Federal estabelecer uma Política Nacional de Manejo e Controle de Queimadas e Combate aos Incêndios Florestais.
Essa política deve promover a articulação institucional para substituir o uso do fogo no meio rural, controlar queimadas, prevenir e combater incêndios florestais e manejar o fogo em áreas naturais protegidas. Também deve considerar os impactos das queimadas nas mudanças climáticas, saúde pública e conservação dos ecossistemas, subsidiando planos estratégicos de prevenção de incêndios florestais.
Manejo integrado
Como decorrência, foi editada em julho de 2024 a Lei Federal nº 14.944, que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, com o objetivo de disciplinar e promover a coordenação interinstitucional para o manejo do fogo no Brasil. A política busca reduzir a incidência e os danos dos incêndios florestais, reconhecendo o papel ecológico do fogo em certos ecossistemas, enquanto respeita os saberes tradicionais de uso do fogo por comunidades indígenas e tradicionais.
A lei define conceitos como incêndio florestal, queima controlada e prescrita, e uso tradicional do fogo, estabelecendo diretrizes para o manejo integrado do fogo. Este manejo envolve a cooperação entre União, Estados, Municípios, sociedade civil e entidades privadas para implementar práticas que reduzam emissões de gases de efeito estufa, conservem a biodiversidade e minimizem a severidade dos incêndios.
Os princípios da política incluem a responsabilidade compartilhada entre os entes federativos, a promoção da sustentabilidade, a proteção da biodiversidade e o respeito às práticas culturais tradicionais. As diretrizes enfatizam a gestão integrada e participativa, priorizando investimentos em pesquisas e tecnologias para substituir gradativamente o uso do fogo por práticas sustentáveis.
A lei também cria o Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que coordenará ações e proporá normas para a implementação da política. Instrumentos como planos de manejo, programas de brigadas florestais e o Sistema Nacional de Informações sobre Fogo (Sisfogo) são estabelecidos para apoiar a gestão do fogo. Além disso, a lei incentiva a substituição do uso do fogo por tecnologias alternativas e prevê a responsabilização administrativa, civil e criminal pelo uso irregular do fogo.
Chama-se atenção para duas das diretrizes apontadas pela nova lei: a integração e coordenação de instituições e a gestão participativa e compartilhada. A diretriz de integração e coordenação visa unir esforços entre instituições públicas e privadas, além da sociedade civil, para promover o manejo integrado do fogo. Este enfoque busca criar uma rede colaborativa que maximize recursos, conhecimentos e capacidades para enfrentar os desafios dos incêndios florestais.
Coordenação
A coordenação entre diferentes níveis de governo e setores é crucial para garantir que as políticas públicas e privadas sejam alinhadas, evitando duplicidade de esforços e promovendo sinergias. Essa integração facilita a implementação de estratégias abrangentes, que incluem desde a prevenção até o combate e a recuperação de áreas afetadas. Além disso, permite a troca de informações e experiências, essencial para o desenvolvimento de práticas inovadoras e eficazes.
A gestão participativa e compartilhada destaca a importância de envolver todos os atores relevantes no processo de manejo do fogo, incluindo entes federativos, sociedade civil organizada, povos indígenas, comunidades quilombolas, outras comunidades tradicionais e a iniciativa privada.
Esta abordagem assegura que as diversas perspectivas e necessidades sejam consideradas, promovendo decisões mais inclusivas e eficazes. A participação ativa das comunidades locais e tradicionais é especialmente importante, pois elas possuem conhecimentos ancestrais sobre o uso do fogo que podem contribuir significativamente para práticas de manejo sustentáveis.
Além disso, a gestão compartilhada fortalece o compromisso e a responsabilidade coletiva, aumentando a eficácia das ações implementadas. A colaboração entre diferentes grupos também pode facilitar a resolução de conflitos e a construção de consensos, essenciais para o sucesso a longo prazo das políticas de manejo do fogo.
Essas diretrizes refletem uma abordagem moderna e integrada para a gestão de recursos naturais, reconhecendo a complexidade dos desafios ambientais e a necessidade de soluções colaborativas e inclusivas.
Chama atenção ainda que, dentre os 52 artigos, distribuídos em incisos e parágrafos, da Lei nº 14.944, de 31 de julho de 2024, apenas dois se dedicam à responsabilização pelo uso irregular do fogo, dispondo basicamente que o uso irregular do fogo será passível de responsabilização administrativa, civil e criminal e que cabe ao responsável pelo imóvel rural implementar ações de prevenção e de combate aos incêndios florestais em sua propriedade.
Sobre a responsabilidade administrativa, está inserida no Decreto nº 6.514/2008, que regulamenta as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente no Brasil, regulamentando a Lei de Crimes e Infrações Ambientais (Lei nº 9.605/1998).
No que diz respeito a incêndios e queimadas, o decreto não vincula uma infração administrativa específica relativa a “provocar incêndios”, mas estabelece punições pelo dano ambiental específico, atinente a causar danos a florestas ou qualquer tipo de vegetação nativa ou impedir ou dificultar a regeneração natural, com agravamento da pena — aumentadas pela metade — quando essas infrações forem praticadas mediante uso de fogo.
Chama atenção o fato de que a Lei 12.541/12, o chamado Código Florestal, em seu artigo 38, §3º, estabelece uma regra específica para a apuração de infrações relacionadas ao uso de fogo que exige que “na apuração da responsabilidade pelo uso irregular do fogo em terras públicas ou particulares, a autoridade competente para fiscalização e autuação deverá comprovar o nexo de causalidade entre a ação do proprietário ou qualquer preposto e o dano efetivamente causado”.
No contexto jurídico, a comprovação do nexo de causalidade envolve um ônus para o ente público, que é comprovar, antes de impor a sanção, as ações que demonstrem a ligação direta entre a conduta do agente e o resultado danoso.
Essa demonstração cabal de que o comportamento do proprietário ou de seu representante tenha sido a causa direta ou indireta do incêndio que resultou em degradação ambiental, requer a coleta de evidências concretas, como perícias técnicas e testemunhos, que possam corroborar a ligação entre a ação humana e o prejuízo ambiental, garantindo assim que a responsabilidade seja atribuída de maneira justa e fundamentada.
Ônus da prova
No caso de incêndios, portanto, a legislação impõe que o ônus da prova seja do ente público que está apurando a infração ambiental. O legislador pressupõe que a autoria quanto aos incêndios não pode ser atribuída ao proprietário do imóvel rural, por presunção. É necessário buscar provas de que houve culpa ou dolo no uso do fogo e sua conexão com o dano ambiental decorrente.
Essa intenção legal manifesta uma realidade inexorável: o fogo não respeita limites jurídicos de propriedades privadas ou públicas. Um fogo que começa numa propriedade ultrapassa essas fronteiras, não sendo justo nem razoável punir quem não deu causa, só porque detém a propriedade do imóvel. Além disso, há que se considerar que incêndios podem ser provocados por terceiros com intenções criminosas, ante motivações das mais variadas, deixando o proprietário do imóvel também como vítima dessas ações nefastas.
No que diz respeito aos aspectos criminais, os incêndios florestais, quando intencionais ou resultantes de negligência, configuram crime ambiental definido na Lei nº 9.605/1998, caracterizados quando se provoca incêndio em floresta ou em demais formas de vegetação, com previsão de pena de reclusão de dois a quatro anos e multa.
No Código Penal, o incêndio pode se relacionar a crimes como homicídio qualificado (quando o fogo resulta em morte), lesões corporais (simples e graves), e perigo para a vida ou saúde de outros. Além disso, o dano ao patrimônio é comum, dado que incêndios podem destruir propriedades. O art. 250 tipifica o crime de incêndio, incluindo incêndios em lavouras, pastagens, matas ou florestas, destacando a gravidade dessas ações. Outros crimes relacionados incluem a subtração ou inutilização de material de salvamento e a poluição de água potável.
Na Lei de Crimes Ambientais, o artigo 29 aborda a proteção à fauna, que pode ser severamente impactada por incêndios. O artigo 32 trata de maus-tratos a animais, ocorrendo frequentemente durante incêndios florestais. O artigo 41 tipifica o incêndio em vegetação, e o artigo 54 aborda a poluição, exacerbada pela fumaça e gases tóxicos liberados.
Identificar os responsáveis por incêndios é crucial para a aplicação da justiça. No entanto, a vastidão das áreas afetadas por si só constitui uma dificuldade imensa nas investigações e, portanto, na adoção das medidas de responsabilização. Além disso, embora a punição seja essencial, não é suficiente para resolver o problema dos incêndios florestais.
Somam-se ainda questões que o Brasil precisa resolver relativas ao uso do fogo como ferramenta de grilagem e ocupação ilegal de terras. Em áreas sem regularização fundiária, o fogo é usado para limpar terrenos e reivindicar posse de imóveis, sobretudo em locais onde a presença do Estado é pequena. Mais recentemente, tem-se verificado também a ação de grupos criminosos na prática de incêndios.
Em reportagem de 9/9/24, o jornal Valor Econômico publicou a seguinte manchete: “Polícia Federal já abriu 52 inquéritos sobre incêndios pelo Brasil: a PF apura o cometimento de crimes ambientais e a participação de organizações criminosas nos episódios e práticas de lavagem de dinheiro.”
Implementação prática
A conclusão sobre o arcabouço normativo brasileiro no tema dos incêndios florestais destaca a existência de uma estrutura legal abrangente e detalhada, que envolve o Código Penal, a Lei de Crimes Ambientais, o Código Florestal e a recém editada Lei da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo. No entanto, a eficácia dessas normas depende crucialmente de sua implementação prática.
Para que a legislação alcance seu potencial completo, é essencial que haja uma coordenação eficiente entre todos os atores envolvidos. Isso inclui órgãos governamentais, forças de segurança, autoridades ambientais, comunidades locais e organizações não governamentais. Uma abordagem integradora deve ser adotada, na qual informações e recursos sejam compartilhados de maneira eficaz para prevenir, detectar e responder a incêndios florestais.
Além disso, é necessário investir em tecnologia e capacitação. Ferramentas como monitoramento por satélite, drones e sistemas de alerta precoce podem melhorar a detecção e a resposta a incêndios. A capacitação de agentes de fiscalização e a conscientização das comunidades locais também são fundamentais para a prevenção e o combate eficazes.
A implementação bem-sucedida da legislação também requer um compromisso contínuo com a educação ambiental e o incentivo a práticas sustentáveis. Promover o uso responsável da terra e a conservação dos recursos naturais pode reduzir a incidência de incêndios e seus impactos devastadores.
Portanto, enquanto o arcabouço normativo é robusto, a chave para resultados mais eficazes reside na colaboração e na ação coordenada entre todos os envolvidos, garantindo que as leis não apenas existam no papel, mas sejam vivenciadas na prática.
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