Emergência climática, saúde pública e saúde única (one health)
20 de setembro de 2024, 18h09
O ano de 2024 já entrou para a nossa história recente como o ano dos maiores desastres climáticos verificados no Brasil. Para piorar, segundo o último relatório (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, esse será o novo normal climático, com episódios climáticos extremos cada vez mais intensos e frequentes. Estamos vivenciando um “estado de emergência climática”, como reconhecido em decisões do STF (Supremo Tribunal Federal).
A título de exemplo, o ministro Luiz Edson Fachin consignou expressamente no voto-vogal proferido na ADPF 708/DF (Caso Fundo Clima) que: “como se pode haurir da experiência internacional, também o Poder Judiciário deve responder à emergência climática. É uma questão crucial, diante da qual todas as outras perdem importância, porque sem mitigar os danos ambientais, produto do aquecimento global provocado pela emissão de combustíveis fósseis, não há possibilidade de vida humana no planeta” [1].
Mais recentemente, o ministro Flávio Dino igualmente enfatizou o estado de emergência climática vivenciado no Brasil por conta da disseminação de incêndios nas últimas semanas (segundo ele, enfrentamos uma “pandemia de incêndios”) na decisão proferida nas ADPFs 743/DF, 746/DF e 857/DF, as quais têm como objeto a elaboração de um plano governamental para a proteção da Amazônia e do Pantanal contra incêndios nos referidos biomas [2].
Reflexos nos direitos fundamentais
Entre enchentes, secas e incêndios, os episódios climáticos extremos bateram todos os recordes históricos em 2024 e impuseram-se como nunca na vida cotidiana dos brasileiros, impactando direitos fundamentais e fragilizando, ainda mais e de forma desproporcional, grupos sociais vulneráveis.
A título de exemplo, nas enchentes de maio deste ano no Rio Grande do Sul, verificou-se, conforme dados oficiais da Defesa Civil [3], a formação de um contingente de mais de meio milhão de deslocados climáticos. Nas últimas semanas, ao invés dos rios voadores, nuvens de fumaça tóxica das queimadas na Amazônia, no Pantanal e em várias outras regiões ganharam o céu do Brasil de Norte a Sul.
A emergência climática tornou-se também uma emergência de saúde pública. Por conta disso, a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) ingressou com petição (Petição n. 13.013) junto à ADPF 743/DF requerendo medidas contra a grave violação ao direito fundamental à saúde e à saúde pública no contexto do atual cenário de emergência climática e, em particular, das queimadas verificadas nas últimas semanas, como, por exemplo, impactos no curto, médio e longo prazo na saúde respiratória, cardiovascular, mental, neurológica, entre outras áreas.
Ademais, a petição pontuou a gravidade do cenário e impacto desproporcional em relação à saúde de populações vulneráveis, incluindo idosos, crianças, indivíduos com condições de saúde preexistentes e comunidades de baixa renda, as quais são mais vulneráveis aos impactos da fumaça de incêndios florestais, o que aumenta ainda mais outras complicações de saúde preexistentes ou relativas ao grupo vulnerável.
Zonas de sacrifício
Diversas cidades brasileiras, como São Paulo, Porto Velho, Rio Branco e (a nossa capital) Brasília, figuraram, nesse período, entre as cidades com a pior qualidade do ar no mundo [4]. Nem o Sul do Brasil escapou, com algumas cidades dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina registrando o fenômeno (inédito) da “chuva negra”, resultante do encontro de uma frente fria com a fumaça tóxica e fuligem das queimadas.
Cenário, aliás, que nos fez lembrar de Cubatão (SP), a qual identificada na década de 1970 como a cidade mais poluída do mundo e cuja região foi denominada de “vale da morte” à época, inclusive servindo de exemplo para a teoria da “sociedade de risco” elaborada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck [5].
Naquela época, no entanto, não existia ainda o Direito Ambiental no Brasil, cuja gênese verificou-se com a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981). Tampouco tínhamos a Constituição de 1988 e a constitucionalização da proteção ecológica (artigo 225) e do direito à saúde (artigo 6º, caput, e 196). E menos ainda um Direito Climático [6].
Hoje o cenário jurídico é substancialmente outro. E a resposta do sistema de Justiça e, em particular, do Poder Judiciário, deve ser compatível com esse panorama normativo (convencional, constitucional e infraconstitucional).
Os cenários mais graves de poluição atmosférica provocados pelas queimadas nas últimas semanas transformaram determinadas localidades em verdadeiras “zonas de sacrifício climático”, para nos valer aqui da expressão “zonas de sacrifício — e adaptá-la a uma versão climática — utilizada recentemente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) na sentença proferida no Caso Habitantes de La Oroya vs. Peru (2023).
As “zonas de sacrifício” referem-se a cenários fáticos de poluição extrema e violação sistemática e massiva de direitos fundamentais (e humanos), somado a um contexto de omissão ou atuação insuficiente do Estado e impactando, de forma desproporcional, grupos sociais vulneráveis. A poluição atmosférica decorrente das queimadas associadas a extremos climáticos revelou a interdependência e correlação direta entre saúde pública e emergência climática.
One Health
A vida e a saúde humana — ou como refere o caput do artigo 225 da CF/1988, conjugando tais valores, a “sadia qualidade de vida” — só são efetivamente protegidas dentro dos padrões ecológicos e climáticos mínimos, ou seja, num meio ambiente natural (e artificial ou construído) ecologicamente equilibrado e que assegure qualidade (e segurança) da água que se bebe, dos alimentos que se comem, do solo onde se planta, do ar que se respira, da paisagem que se vê, do patrimônio histórico e cultural que se contempla, do som que se escuta, entre outras manifestações da dimensão ecológica. A natureza é determinante nas questões mais vitais e elementares da condição humana, além de ser essencial à sobrevivência do ser humano como espécie natural (Homo sapiens).
A poluição atmosférica associado às mudanças climáticas vivenciada no Brasil nas últimas semanas, tal como reportado anteriormente, implica violação grave ao regime constitucional de proteção da vida e dignidade humanas, bem como, em particular, ao direito fundamental à saúde, tanto pela ótica individual quanto coletiva ou difusa, em descompasso com a previsão dos artigo 6º, caput, e 196 da CF/1988.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece como parâmetro para determinar uma vida saudável “um completo bem-estar físico, mental e social”, de modo a contemplar a qualidade ambiental (nela incluída a qualidade climática) como elemento fundamental para o “completo bem-estar” caracterizador de uma vida saudável.
Seguindo tal diretriz, a Lei 8.080/90 — Lei do Sistema Único de Saúde (SUS) — incorpora tal conceito no ordenamento jurídico brasileiro (artigo 3º, parágrafo único), bem como consagra o meio ambiente como fator determinante e condicionante à saúde (artigo 3º, caput) [7].
Mais recentemente, diversas entidades e organizações científicas e sanitárias internacionais, como é o caso da OMS e da Organização Mundial da Saúde Animal (OIE) [8], têm defendido o conceito de One Health — traduzindo para o português, “saúde única ou integral” [9]. A respeito da questão, destacam-se os “Princípios de Berlim sobre Saúde Única de 2019” (The Berlin Principles on One Health) [10].
Na sua essência, tal conceito busca a proteção da saúde de forma integral do ponto de vista ecológico — e até mesmo planetário —, contemplando três dimensões básicas: humana, animal e ecológica ou ecossistêmica. O conceito de One Health diálogo com o conceito de “meio ambiente” estabelecido pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), no seu artigo 3º, o qual reconhece a interdependência e a complementariedade que rege a vida em todas as suas formas [11].
A pandemia do Covid-19, em que pese a discussão do conceito de One Health ser anterior a ela, exemplifica de forma trágica a importância de tal compreensão ecológica do conceito de saúde, a qual impactou a civilização humana em todos os cantos do planeta no início do ano de 2020 e provocou, até o momento, mais de 7,0 milhões de mortes no mundo todo. No Brasil, ultrapassou-se a marca trágica de 700 mil mortes.
Na sua origem, a pandemia Covid-19 está associada à transmissão de patógenos de animais silvestres ao ser humano, o que decorre, entre outras causas e práticas que acarretam desequilíbrio ecológico, da destruição de habitats provocada pela intervenção humana na Natureza, conforme apontado pelo Pnuma em relatório divulgado em 2020 [12].
É evidente, nesse sentido, a correlação entre perda da biodiversidade e pandemias, conforme apontado pelo Relatório sobre Biodiversidade e Pandemias (2020) do Painel Intergovernamental da ONU sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (Ipbes) [13].
A maior fragilidade da vida animal e da Natureza de um modo geral levada a efeito pela degradação dos sistemas naturais e climáticos implica inevitavelmente também maior vulnerabilidade existencial para o ser humano, em contraposição a uma compreensão reducionista e limitada da saúde humana. Afinal de contas, como pontua Lorenzzeti ao tratar do conceito de saúde única, “una adecuada respuesta para la salud humana implica mejorar la salud del planeta” [14].
Igual compreensão aplica-se ao contexto das mudanças climáticas, como testemunhamos de forma dramática no Brasil em 2024, tanto nas enchentes do Rio Grande do Sul, quanto, em particular, na seca e queimadas das últimas semanas. A terceira dimensão — ecológica ou sistêmica — do conceito de One Health contempla a integridade e segurança do sistema climático.
A qualidade do ar, por exemplo, é um elemento-chave na salvaguarda da saúde humana, demandando, por parte do Estado e da sociedade, tanto medidas de mitigação quanto de adaptação climática, as quais se revelam, neste último caso, por meio da prevenção e da resposta adequada em relação a episódios climáticos extremos.
Saúde única como plano de Estado
A Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei 12.187/2009) incorpora a abordagem holística delineada pelo conceito de One Health, ao prever, no seu artigo 4º, I, como objetivo da PNMC, a “proteção do sistema climático”, bem como ao destacar, no seu artigo 3º, I, que “todos têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático”.
Ao estabelecer o conceito de impacto no seu artigo 2º, VI, a Lei 12.187/2009 assinala ser esse “os efeitos da mudança do clima nos sistemas humanos e naturais”. Igualmente, o artigo 5º, III, do diploma climático estabelece como diretriz da Política Nacional sobre Mudança do Clima “as medidas de adaptação para reduzir os efeitos adversos da mudança do clima e a vulnerabilidade dos sistemas ambiental, social e econômico”.
Como se pode identificar facilmente no conteúdo dos dispositivos citados, a compreensão do regime climático como um “sistema (natural)” permeia todo o diploma, reforçando o entendimento científico consolidado pela ciência climática, tal como consagrado nos sucessivos do IPCC da ONU, bem como a correlação entre a emergência climática e seus impactos negativos na sociedade e, em particular, na saúde pública.
Como se pode notar, o ordenamento jurídico adotou o conceito de saúde única como um plano de Estado, não apenas de governo. Há uma obrigação contínua a ser realizada para proteger e recuperar a saúde, e que deve considerar e atuar no contexto da mudança e emergência climáticas. E, sendo desafios novos e contínuos, que estão afetando de forma sem precedentes, há urgência que o Brasil estabeleça seu plano de atuação.
Por fim, não há como olvidar que o direito (e dever) humano e fundamental a um meio ambiente saudável e equilibrado, incluindo aqui o direito a um clima estável e íntegro, já passou a merecer o qualificativo de um direito a ter direitos efetivos, dada a sua relevância para a fruição de todos os direitos humanos e fundamentais de todas as dimensões.
[1] STF, ADPF 708/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Barroso, j. 01.07.2022.
[2] STF, ADPFs 743/DF, 746/DF e 857/DF, decisão monocrática, Rel. Ministro Flávio Dino, j. 15.09.2024.
[3] Disponível em: https://estado.rs.gov.br/defesa-civil-atualiza-balanco-das-enchentes-no-rs-14-5-12h.
[4] A poluição atmosférica em tempo real é monitorada por imagens de satélite pelo IQAir e disponibilizadas no seguinte endereço eletrônico: https://www.iqair.com/.
[5] BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. p. 50.
[6] SARLET, Ingo W.; WEDY, Gabriel; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito climático. São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2023.
[7] “Art. 3º Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. (Redação dada pela Lei nº 12.864/2013) Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social”.
[8] Disponível em: https://www.oie.int/en/for-the-media/onehealth/. A título de exemplo, a Lei 17.972/2024 do Estado de São Paulo, sobre a proteção, a saúde e o bem-estar na criação e na comercialização de cães e gatos, inovou na temática e reconheceu expressamente, no seu art. 3º, “os princípios do bem-estar animal e da saúde única” (II), bem como estabeleceu o conceito de saúde única no seu art. 2º: “Art. 2º (…) IX – saúde única: representa uma visão integrada da saúde humana, saúde animal e saúde ambiental, que reconhece o vínculo estreito entre o meio ambiente, as doenças dos animais e a saúde da população humana, empregada como base de políticas, normas e programas, que contribuam com a eficácia das ações em saúde pública e proteção do meio ambiente.” (grifos nossos)
[9] Disponível em: https://www.who.int/news-room/q-a-detail/one-health.
[10] Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0048969720364494 e https://www.wcs.org/one-planet-one-health-one-future.
[11] “Art. 3º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I – meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. O conceito de One Health foi reconhecido em decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia com fundamento no conceito (biocêntrico ou holístico) de meio ambiente estabelecido pela Lei 6.938/81 (art. 3º, I): TJRO, Proc. 0801568-29.2023.8.22.0000 (ADI), Tribunal Pleno, Rel. Des. Miguel Monico Neto, j. 06.05.2024.
[12] UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission. Nairobi, UNEP, 2020. Íntegra do relatório disponível em: https://www.unenvironment.org/pt-br/resources/report/preventing-future-zoonotic-disease-outbreaks-protecting-environment-animals-and.
[13] Disponível em: https://ipbes.net/pandemics.
[14] LORENZETTI, Ricardo. El nuevo inimigo: el colapso ambiental. 3.ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2022, p. 63.
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