Cresce número de ações contra jornalistas por extorsão
20 de setembro de 2024, 9h45
Aplicasse a si própria o rigor que aplica aos outros, a imprensa poderia recuperar um pouco da sua credibilidade. Mas como isso não ocorre, o Judiciário está subindo o tom com jornalistas acusados de produzir falsas imputações para extorquir suas vítimas.
A jurisprudência que protege jornais e jornalistas, associada a chicanas, que a imprensa costuma condenar em casos alheios, contudo, normalmente deixa as condenações pelo caminho.
Recentemente, o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin suspendeu uma das condenações a prisão do jornalista pernambucano Ricardo Antunes — que coleciona acusações por chantagens. Faz 12 anos que Antunes foi preso em flagrante, quando extorquia um empresário em Recife, mas até hoje dribla a condenação, que já transitou em julgado, com uma sucessão de artifícios.
Este mês, o vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomão, mostrou ao ministro Fachin que as alegações de Antunes usadas para conseguir um Habeas Corpus eram falsas. Portanto, a sentença de 6 anos de prisão contra Antunes transitou em julgado sem irregularidades, informou o STJ. Para escapar à pena, o condenado alegou cerceamento de defesa, falta de oportunidade para contraditório e alegações semelhantes.
Mas o caso ainda pende de decisão da 2ª Turma do STF da qual fazem parte os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Nunes Marques, André Mendonça, além do relator, Edson Fachin.
Brecha do sistema
No fim de agosto, Fachin concedeu liminar em Habeas Corpus para suspender a condenação e o mandado de prisão contra o jornalista (HC 245.088). O ministro do STF entendeu ser verossímil a tese da defesa deduzida de que a “indisponibilidade” dos sistemas informatizados do STJ, em data próxima ao julgamento em que pretendia sustentar oralmente, comprometeu o adequado exercício do contraditório e ampla defesa e pode ter impactado o desfecho recursal.
Em resposta à solicitação de informações feita por Fachin, Salomão apontou que o agravo regimental de Antunes contra decisão da 6ª Turma que negou recurso extraordinário foi incluído na pauta de julgamento virtual da Corte Especial de 20 a 26 de março de 2024, mas retirado de pauta pelo então vice-presidente, Og Fernandes (AREsp 2.232.635).
O jornalista opôs embargos de declaração, que foram igualmente rejeitados. Em mais uma tentativa, interpôs agravo em recurso extraordinário, com requerimento de remessa ao STF. Porém, esse recurso não é cabível, como destacou Salomão.
“Diante da manifesta inadmissibilidade do agravo previsto no artigo 1.042 do Código de Processo Civil para impugnar acórdão que confirma a negativa de seguimento a recurso extraordinário com fundamento na repercussão geral, e decorrido o prazo para interposição de embargos de declaração, único recurso que poderia ser admitido, foi proferido o decisum de fls. 2.453-2.454, no qual foi determinada a certificação do trânsito em julgado e baixa dos autos, providência cumprida nos exatos termos da certidão de fl. 2.466 e termo de remessa de fl. 2.469”, informou o ministro a Fachin.
Pequenas empresas, grandes negócios
Não é estranho que, no contexto de judicialização da vida brasileira, também a imprensa passeie pelos bancos dos réus. E não só por dano moral tradicional.
Avolumam-se casos comprovados de extorsão e chantagem revelados documentalmente em notícias e reportagens encomendadas. Pelo volume de processos, dizem as vítimas, o que se conclui é que esse tipo de negócio é rentável, já que o valor das indenizações não chega a assustar. Mas a novidade é que a relação de 9 causas cíveis para 1 criminal está mudando. Os ofendidos estão dando preferência a processos criminais.
Dois expoentes dessa “indústria” são os jornalistas Ricardo Antunes e Mino Pedrosa. Os dois acumulam condenações por ofender a honra de pessoas em troca de benefícios. Ao STF e ao STJ já chegaram cinco processos contra Antunes e 14 contra Pedrosa. Busca no site Jusbrasil mostra que Antunes responde a 133 ações, e Pedrosa, a 198, em instâncias inferiores em todo o Brasil.
Não é de hoje que os dois são acusados de chantagear pessoas. Em 2013, o deputado distrital Chico Vigilante (PT) afirmou, no Plenário da casa legislativa do Distrito Federal, que Mino Pedrosa vive de “achincalhar as pessoas” e com uma “especial atenção” para com ele. Já na época o jornalista respondia a 26 ações só no Tribunal de Justiça do DF, tendo sido condenado em diversas delas por injúria e difamação, inclusive contra o ex-governador Agnelo Queiroz. “A honra e a dignidade das pessoas não podem ser atacadas dessa maneira. Isso é uma canalhice, coisa de bandido”, disse Vigilante na ocasião.
Ricardo Antunes
O caso em que foi condenado por extorquir um empresário exemplifica o modus operandi de Ricardo Antunes. Em 2012, Antunes criou o blog Leitura Crítica e convidou um empresário para ser sócio ou patrocinador do veículo. Como ele negou, o jornalista começou a publicar textos em que o atacava. Inicialmente semanal, a frequência das postagens passou a ser quase diária.
O empresário contatou Antunes, e ele pediu R$ 2 milhões para tirar os textos do ar. Se não recebesse o dinheiro, iria expandir as postagens, ameaçou. O empresário procurou a Polícia Civil de Pernambuco e foi orientado a dar continuidade às negociações. Ele combinou de pagar R$ 1,5 milhão. Certo dia, o jornalista foi ao escritório do empresário receber a primeira parcela, de R$ 50 mil. Na saída, foi preso. Ele foi condenado a 6 anos de prisão. Não cabem mais recursos.
Em maio, a ministra do STJ Isabel Gallotti manteve decisão que condenou Antunes a pagar R$ 10 mil de indenização por danos morais a três pessoas (AREsp 2.489.457). Em acórdão, o Tribunal de Justiça de Pernambuco apontou que Antunes “exorbitou do direito de informar, descambando para o campo das ofensas” em textos que acusavam os três de promover “golpe” e “roubo descarado” para se apropriar de um restaurante no Recife, do pai de uma das vítimas.
Há um mês, Antunes foi novamente condenado. A 12ª Vara Criminal de Recife o sentenciou a 7 anos de detenção por calúnia, injúria e difamação contra um deputado federal (Processo 0071028-88.2023.8.17.2001). O jornalista acusou uma empresa do parlamentar de diversas práticas ilícitas, como a compra de espaço público e a prática de lobby perante políticos de São João do Caruaru (PE) e autoridades judiciais.
Mino Pedrosa
Os numerosos casos que envolvem Mino Pedrosa, dono do blog Fatos Online, seguem modelo semelhante ao de Antunes. Tanto na abordagem dos seus alvos quanto às acusações feitas pelas vítimas e, depois, nos dribles judiciais.
Pedrosa teve condenação por calúnia mantida em abril pelo ministro do STF Nunes Marques (ARE 1.483.502). O jornalista violou a honra objetiva de um político ao afirmar que ele recebeu propina via caixa dois.
Dois meses depois, a 4ª Turma do STJ negou recurso de Pedrosa e manteve indenização de R$ 20 mil a um político do Distrito Federal (AREsp 2.402.891). Para a corte, o jornalista extrapolou os limites da liberdade de expressão ao afirmar, sem provas, que a vítima foi flagrada em escutas telefônicas em contato com políticos e empresários para conceder licenças de maneira irregular (até mesmo “à custa de propina”).
A 1ª Turma do STF julgará reclamação de Pedrosa contra decisão da 30ª Vara Cível de Recife que mandou o jornalista tirar do ar ataques a um empresário (Rcl 70.438). Ele foi alvo de textos nos quais Pedrosa o acusa de usar algumas agências para participar de licitações. O empresário afirma não ter participação nas empresas.
Em ofício ao Supremo, a juíza Helena Cristina Madi de Medeiros, da 30ª Vara Cível de Recife, desmonta a alegação de Pedrosa de que sua defesa são teve acesso aos autos. A julgadora destaca que o advogado foi habilitado, apresentou contestação e não apontou nenhuma dificuldade de acessar o processo.
A juíza ainda enfatiza que intimou Pedrosa a esclarecer as imputações feitas ao empresário, mas ele não se manifestou. “Em simples apuração na rede mundial de computadores, foi constatado que a matéria utilizou de textos de notícias publicadas há vários anos e retiradas de contexto, pelo que também foi determinada sua exclusão, uma vez que evidenciada a ocorrência de fake news”, explicou a juíza ao Supremo, afirmando que não houve censura nem desrespeito do entendimento firmado na ADPF 130.
Imprensa lavajatista
O grande case da indústria de chantagem jornalística foi a finada “lava jato”. Os grandes veículos, que apoiaram a investigação desde o começo, perderam 68% dos leitores em 6 anos. Os jornais, sem rodeios, tentaram influenciar o resultado das urnas.
Um exemplo foi a capa da revista Veja do dia 23 de outubro de 2014, três dias antes da eleição presidencial daquele ano. O segundo turno caiu num domingo. Na véspera, a notícia bombástica, espalhada em outdoors erguidos em todo o país, informava que “o doleiro Alberto Youssef, caixa do esquema de corrupção na Petrobras, revelou à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal que Lula e Dilma Rousseff tinham conhecimento das tenebrosas transações na estatal”. “Eles sabiam de tudo”, explodia a manchete.
Aparentemente, a imprensa não aprendeu nada com a “lava jato”. Em 2023, o mote da força-tarefa clandestina foi criminalizar a aproximação dos juízes brasileiros com colegas e autoridades internacionais em encontros promovidos na Europa — durante os quais, frise-se, os magistrados continuam participando normalmente das sessões de julgamento por teleconferência.
E os veículos de massa compraram as teses bolsonaristas para emparedar o STF. Na época em que se discutia quem seria o novo procurador-geral da República, a Folha de S.Paulo publicou uma série de reportagens para atacar Paulo Gonet, que posteriormente assumiu o cargo. A receita é a mesma do processo que levou Jair Bolsonaro ao poder: criar uma grande onda com o objetivo de emparedar o STF.
Questão milionária
Dados dos sistemas do STJ indicam ao menos 1.308 acórdãos em recursos para discutir o mérito de condenações de jornalistas e veículos de mídia por danos, abalos e prejuízos causados por suas publicações.
Um recorte de 328 deles oferece uma visão do tamanho do problema: as indenizações fixadas alcançam R$ 17,4 milhões, com média de R$ 53,1 mil por processo.
As principais situações a gerar condenação são publicação de informação falsa, associação indevida a crimes, exposição da vida privada e divulgação de informações sem a devida apuração.
Os valores de indenização variam, já que seu cálculo é subjetivo: o juiz define a partir das particularidades de cada caso, considerando a gravidade da ofensa, a repercussão da notícia, a condição econômica das partes e a necessidade de desestimular esse tipo de comportamento.
Em sua maioria, esses recursos são resolvidos por aplicação da Súmula 7 do STJ, que impede que a corte reanalise fatos e provas. A indenização só é revista se os ministros se convencerem que seu valor é irrisório ou exorbitante.
Nos casos criminais, também é possível obter dano moral. A reparação da vítima é uma possibilidade. Segundo a jurisprudência do STJ, é preciso pedido expresso na petição acusatória e indicação do valor mínimo pretendido para reparação.
Os excessos jornalísticos permitiram a formação de uma jurisprudência ampla sobre o tema e abriram as portas para o STJ definir a tese do direito ao esquecimento, que acabou declarada inconstitucional pelo STF em 2021.
Isso fez os casos voltarem ao STJ para reapreciação. Curiosamente, as condenações foram mantidas. Uma delas, por um programa que relembrou o episódio da Chacina da Candelária. A outra trata de um caso de crimes sexuais contra crianças.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!