Opinião

Acesso a dados de investigados e urgência em modernizar as investigações

Autor

  • é delegado de Polícia do Estado de São Paulo pós-graduado lato sensu em Inteligência Policial e Segurança Pública pela Escola Superior de Direito Policial (ESDP/FCA) diretor de Relações Institucionais da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP) diretor de aposentados da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária (ADPJ) e membro do Conselho de Gestão da Confederação Nacional das Carreiras e Atividades Típicas de Estado (Conacate).

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20 de setembro de 2024, 11h19

Marcelo Casal Jr./Agência Brasil

O julgamento do Supremo Tribunal Federal que ocorreu no último dia 11 de setembro trouxe uma importante decisão a respeito do acesso a dados cadastrais por autoridades policiais e pelo Ministério Público. A corte entendeu, por unanimidade, que é constitucional a norma da Lei de Lavagem de Dinheiro (artigo 17-B da Lei nº 9.613/1998), que permite o acesso a dados pessoais como qualificação, filiação e endereço, sem a necessidade de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito.

A tese de julgamento na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.906) [1] foi fixada nos seguintes termos:

“É constitucional norma que permite o acesso, por autoridades policiais e pelo Ministério Público, a dados cadastrais de pessoas investigadas, independentemente de autorização judicial, excluindo-se do âmbito de incidência da norma a possibilidade de requisição de qualquer outro dado cadastral além daqueles referentes à qualificação pessoal, filiação e endereço (art. 5º, X e LXXIX, da CF).”

Esse entendimento fortalece o poder de requisição dos delegados de polícia e dos promotores de Justiça durante investigações, afastando eventuais interpretações equivocadas por parte das instituições públicas e empresas controladoras que pretendam negar acesso aos dados cadastrais (nome, RG, CPF, nome dos pais e endereço) de pessoas investigadas.

Reserva de jurisdição

No entanto, os ministros limitaram o conceito de dado cadastral à qualificação pessoal, filiação e endereço, excluindo, assim, a possibilidade de requisição sem intervenção judicial de quaisquer outros dados cadastrais que não se enquadrem nessas categorias, refletindo a tendência da absolutização da reserva de jurisdição [2]. É o que podemos inferir da segunda parte da tese fixada: “[…] excluindo-se do âmbito de incidência da norma a possibilidade de requisição de qualquer outro dado cadastral além daqueles referentes à qualificação pessoal, filiação e endereço”.

Spacca

Ao pormenorizar sua decisão, delimitando de forma clara e restritiva quais dados cadastrais podem ser requisitados sem autorização judicial, o STF pode ter criado novas e significativas implicações para a investigação de crimes e a segurança pública.

Isso porque, de acordo com a interpretação da tese a contrario sensu, o acesso a uma gama de dados (que não sejam referentes à qualificação pessoal, filiação e endereço) pode passar a ser excluído das hipóteses de incidência daquela norma, atraindo a obrigatoriedade de autorização judicial.

Essa abordagem indica uma forte ênfase na proteção dos direitos individuais, alinhando-se com garantias constitucionais que buscam resguardar a privacidade e intimidade dos investigados.

Risco de atrasos e outras limitações

Contudo, essa restrição também levanta o debate sobre a eficácia das investigações criminais, uma vez que a exigência de autorização judicial pode atrasar inquéritos e processos e limitar a capacidade das autoridades de agir rapidamente diante de situações que demandam intervenção imediata, trazendo complicações para a agilidade das ações relacionadas à segurança pública, sobretudo aquelas que requerem a coleta de informações fundamentais para a elucidação de crimes.

Exemplos de informações que podem se tornar objeto de novas discussões nesse contexto:

  1. Registros de comunicação: Dados de chamadas, mensagens e registros de acesso à internet que podem ajudar a estabelecer conexões entre suspeitos e atividades criminosas.
  2. Dados de localização: Informações de geolocalização que permitem rastrear a localização de um indivíduo em um determinado momento, sendo fundamentais em investigações de sequestros ou crimes violentos.
  3. Dados sobre dispositivos e conexões: Informações sobre dispositivos utilizados, como endereços IP, que podem ajudar a traçar a ação de criminosos cibernéticos ou em atividades ilícitas.
  4. Dados de redes sociais: Informações obtidas por meio de plataformas de redes sociais que podem auxiliar na identificação de vítimas, testemunhas ou até mesmo na localização de suspeitos.
  5. Dados financeiros: Informações sobre transações bancárias que podem revelar padrões de movimentação de dinheiro, possibilitando a identificação de atividades relacionadas à lavagem de dinheiro ou financiamento do crime.

Possíveis diretrizes

O eventual alargamento interpretativo das restrições ao acesso a essas informações, demandando autorização judicial, pode comprometer a agilidade das investigações, especialmente em situações em que o tempo é um fator crítico para evitar a consumação de crimes ou para a proteção de vidas e do patrimônio das vítimas. Por outro lado, é essencial garantir que a coleta e o uso dessas informações respeitem os direitos individuais à privacidade e à intimidade.

Isso apenas reafirma a relevância da discussão sobre a modernização das investigações no Brasil, especialmente em um cenário onde a criminalidade se torna cada vez mais sofisticada e organizada. A necessidade de alterações legislativas e de medidas efetivas que equilibrem a proteção de dados pessoais com a eficácia no combate ao crime é um desafio que tanto o Congresso Nacional quanto as demais esferas de poder devem enfrentar com urgência [3].

Nesse sentido, indicamos como diretrizes para propostas de modernização das investigações:

  1. Revisão das garantias legais dos investigados: Propor modificações nas legislações existentes que permitam um uso mais racional das garantias constitucionais. Isso inclui a revisão de dispositivos que possam ser usados como escudos para evitar a responsabilização de criminosos, sem que se comprometa a proteção dos cidadãos de bem.
  2. Criação de ferramentas de cooperação entre órgãos: Facilitar a colaboração entre as Polícias Judiciárias, o Ministério Público e outras instituições na troca de informações e dados, otimizando a coleta de provas relacionadas aos investigados, mas assegurando a proteção dos dados das pessoas não vinculadas às investigações.
  3. Capacitação e tecnologia: Promover a capacitação de profissionais de segurança pública nas áreas de tecnologia e cibercrime, equipando-os com ferramentas adequadas para a coleta e análise de evidências digitais.
  4. Estabelecimento de protocolos claros para acesso a dados: Definir protocolos claros e restritos para o acesso a dados cadastrais e outras informações sensíveis por parte das autoridades, garantindo que isso seja feito somente quando necessário e dentro dos limites legais.
  5. Avaliação de riscos e benefícios: Realizar diagnósticos que abordem o impacto das mudanças sociais e culturais, o uso da tecnologia, a expansão dos dados pessoais e propostas sobre a segurança pública, buscando sempre a melhor harmonia entre proteção e efetividade nas ações de enfrentamento ao crime.

Em síntese, é necessário e urgente desenvolver medidas equilibradas para modernizar as investigações sem comprometer os direitos individuais à proteção dos dados pessoais, incluindo os dos investigados. O foco deve ser a redução da impunidade, a melhoria da segurança pública e a proteção das pessoas.

 


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal do Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 4.906. O Tribunal, por maioria, conheceu em parte da ação direta e, nessa extensão, julgou improcedente o pedido formulado pela ABRAFIX – Associação Brasileira de Concessionárias de Serviço Telefônico Fixo Comutado. Relator: Min. Nunes Marques, 11 set. 2024. Disponível em: < https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2024/09/11200722/ADI-4906-acesso-a-dados-cadastrais-pelo-MP-e-policia-rev.-LC-FSP-18h52.pdf>. Acesso em: 14 set. 2024.

[2] “Por absolutização da reserva de jurisdição entendemos ser a aparente tendência contemporânea de parte da legislação e jurisprudência, na exigência de prévia autorização judicial para o acesso de determinadas informações por outros poderes e autoridades do Estado, com alargamento de uma pretensa “proteção”, onde a própria Constituição Federal de 1988 não o fez” MORAIS, Filipe de; JÚNIOR, Arnaldo Rocha. Vivemos a Absolutização da Reserva Jurisdicional?. Empório do Direito, São Paulo, 3 ago. 2019. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/vivemos-a-absolutizacao-da-reserva-jurisdicional>. Acesso em: 13 set. 2024.

[3] Exemplo de alteração legislativa nessa área é o Projeto de Lei nº 4.143/2023 de autoria do deputado federal Delegado Palumbo, que propõe alterações na Lei nº 12.830 de 2013, permitindo que delegados de polícia requisitem dados sem ordem judicial, com o intuito de aprimorar a investigação criminal. Este projeto, desenvolvido em parceria com a Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP), busca garantir maior agilidade nos inquéritos e processos judiciais e sua aprovação poderá aumentar a eficiência das investigações, além de promover uma integração entre as normas penais e as definições sobre dados e documentos. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4.143/2023. Altera a Lei n.º 12.830, de 20 de junho de 2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2023. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2325345&filename=Avulso%20PL%204143/2023>. Acesso em: 14 set. 2024.

Autores

  • é delegado de polícia e presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Adpesp) e especialista em inteligência policial e segurança pública

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