Prisão no júri: percepção pessoal do julgador vale mais do que a CF?
19 de setembro de 2024, 8h00
Abstract: O título é deliberadamente provocativo, uma vez que se disse, no julgamento do STF, que a decisão tinha razões de “constrangimento pessoal”: “essa história que toda a vida me constrangeu imensamente que é ao final do júri o condenado pelo homicídio sair ao lado da família da vítima”, disse o ministro.
Há um backlash contra presunção da inocência?
De há muito afirmo a necessidade de olharmos o novo com os olhos do novo e de (re)afirmamos o processo penal à luz da Constituição. De todas as lutas que travei em minha trajetória acadêmica e jurídica, essa luta foi uma das mais difíceis — e segue sendo. Falo da ADC 44.
Acontece que a sanha punitivista mantém um dos aspectos do senso comum teórico dos juristas mais duros de combater. Está em todos os lugares: está no seio da sociedade e contamina o Direito. O primeiro mito ou lenda é a de que a presunção da inocência proíbe prender antes do trânsito em julgado.
Gastei rios de tinta e muita saliva para explicar isso. Mas não adianta. O ministro Gilmar tentou de novo na semana passada explicar isso. Mas malhou em ferro frio. O que vale é a lenda. O mito. O que são fatos quando só há interpretações? Quem se importa?
Luto há décadas pela presunção de inocência como instituto basilar do Estado democrático de Direito. Escrevi quiçá mais de uma centena de textos, entre colunas, pareceres e livros sobre o tema, inclusive a sustentação oral perante o Pleno do STF em favor das ADCs 43, 44 e 54, da qual fui um dos subscritores.
Caso julgado pelo STF e automatização da prisão no júri: de como a nova tese equivale a uma lei abstrata e geral
Pois bem. Sempre digo que sou um conservador do Direito e, portanto, um defensor da Constituição e de suas garantias, mas a vida de um garantista é feita de sobressaltos. Dá-se um passo à frente para depois dar dois para trás. No julgamento do RE 1.253.340 (Tema 1.068) deu-se, infelizmente, alguns passos para trás na garantia processual mais fundamental que temos: a presunção de inocência. Os ministros decidiram, por maioria, aprovar a seguinte regra geral e abstrata:
“a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução da condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada.”
Nem o legislador faria uma lei “tão seca” e de tamanha generalidade. Sim, isso tem de ser dito. Os tribunais superiores vêm legislando cada dia mais. É a cultura dos precedentes pela qual precedentes são regras feitas para cuidar do futuro.
No caso, a Suprema Corte seguiu o entendimento do relator, o ministro-presidente Luís Roberto Barroso, ampliando o marco penal de 15 anos, que havia sido criado pelo chamado “pacote anticrime”. Agora, para todos os condenados pelo Tribunal do Júri, seja qual for a pena, está autorizado o cumprimento da pena, independentemente do total aplicado pelo júri. Um evidente retrocesso em relação ao que foi decidido nas ADCs que declararam a constitucionalidade do artigo 283 do CPP.
Papel da crítica doutrinária no entremeio da hegemônica criação jurisprudencial do direito
Como sempre faço, quero destrinchar o julgado a partir dos votos e manifestações dos ministros na sessão (e, também, falas ditas à imprensa fora dela), sempre me colocando como um amicus da Corte. Afinal o papel da doutrina é mesmo esse, o de realizar o devido constrangimento epistemológico, conceito científico que trata do papel da doutrina.
As ADCs 43, 44 e 54 foram um avanço na luta a favor da presunção de inocência, mas levemos em conta que não se buscava nada revolucionário com as ações. Apenas uma mera declaração de um dispositivo que repetia o que a própria CF já de há muito prevê: a necessidade de trânsito em julgado para que se cumpra uma prisão-pena.
Note-se que nunca se falou em vedar a possibilidade de prisões provisórias. Nada disso. As prisões preventivas estão em vigor e podem ser decretadas quando cumpridos seus requisitos pela lei processual. Mas parece que o ministro Barroso, por exemplo, ao falar do drama da saída do réu do plenário do júri ao lado da família da vítima, ignora esse detalhe jurídico.
O simbolismo da prisão atrai. Já tratei disso há mais de 30 anos quando escrevi o livro “Tribunal do Júri — Símbolos e Rituais”, citado pelo Ministro Gilmar Mendes em seu voto neste caso. Da mesma forma, Guy Debord já dizia que um espetáculo é uma relação social mediatizada por imagens. E são precisamente imagens como a de um réu saindo algemado é que atraem.
Para que isso seja possível, são buscadas hipóteses de condenações imediatas que de quando em vez reaparecem em nosso ordenamento e, ao que parece, agora vieram para ficar. Pela caneta suprema.
Questão do limite de 15 anos: caso de inconstitucionalidade ‘reversa’ ou ‘inconstitucionalidade in malam partem’
Neste caso, estamos falando do dispositivo que foi inserido pelo “pacote anticrime”, Lei 13.964/19, que instituiu a possibilidade de uma pena imediata para condenações feitas pelo Tribunal do Júri a penas acima de 15 anos.
A discussão acerca do dispositivo que alterou o artigo 492 do CPP foi levantada incidentalmente, chegando ao Supremo por meio de recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público de Santa Catarina.
No caso, o Superior Tribunal de Justiça havia aplicado a jurisprudência sobre a ilegalidade da prisão fundada apenas na premissa de que a decisão condenatória proferida pelo Tribunal do Júri deve ser executada prontamente, sem qualquer elemento do caso concreto para justificar a custódia cautelar sem a confirmação da condenação por colegiado de segundo grau ou o esgotamento das possibilidades de recursos.
Correta, pois, foi a decisão do STJ. Mas aí veio o RE e o Supremo teve de se manifestar sobre o controverso tema. Seria caso de inconstitucionalidade? A meu ver, sim, se levássemos a sério o precedente das ADCs, frise-se, vinculante. No entanto, ao que se vê, o STF viu uma “inconstitucionalidade reversa” no caso. E estendeu-a, retirando o limite de 15 anos. Que era inconstitucional. Mas não pelas razões reversas apresentadas pelo STF.
Registre-se: nem mesmo o recurso pretendia fazer essa tabula rasa. O recurso do MP queria apenas que o limite de 15 anos fosse cumprido. Só que o STF foi bem mais longe. Passou a régua e achou muito tímido o limite de 15 anos posto pelo legislador. E construiu uma regra nova, que nem o legislador havia pensado em fazer.
Para tanto, repito, o STF deixou de lado o precedente (vinculante) das ADCs 43, 44 e 54. Veja-se que a vinculação dos precedentes que o Ministro Barroso defendeu, dias antes, em simpósio sobre precedentes, como sendo “a única alternativa” para a “efetividade, isonomia, segurança jurídica e eficiência do Poder Judiciário” (ver aqui), não são tão vinculantes assim. No referido seminário, o Ministro foi enfático quanto ao cumprimento de precedentes. A questão é saber se o próprio STF está vinculado a si mesmo.
De como repercussão geral não pode ser caminho para o STF legislar para além mesmo dos limites dos limites recursais ou ‘de como o STF extinguiu a presunção da inocência para o júri’, tornando-o um instituto imune às garantias constitucionais
Parece evidente, levando em conta o que diz a tradição dogmática estudada nas faculdades e espraiada em livros (que importância tem a doutrina, afinal e quem quer saber o que diz?), que o tema deveria ter sido afastado prontamente pelo Supremo, já que existia precedente vinculante (ADCs 43, 44 e 54). Não caberia repercussão geral.
Caberia, sim, pelo inverso: para discutir se o limite de 15 anos não contrariava o precedente vinculante em controle concentrado. Afinal, resguardas as hipóteses de prisão cautelar, o STF havia decidido que não há execução antecipada. Só após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Porém, a Corte fez o contrário. Fez um controle de constitucionalidade às avessas (reversa) e ampliou a incidência da norma. A partir de agora, não há previsão de possibilidade de execução imediata de pena de prisão para condenação pelo Tribunal do Júri (nem mesmo) para penas superiores a 15 anos. Agora qualquer pena enseja prisão imediata. O leitor(a) percebe a dimensão dessa decisão?
Eis o busílis: não estaria a Corte legislando em matéria penal? Não criou o STF uma norma nova para além daquela que havia sido aprovada no pacote anticrime? Vê-se que fomos de um problema – inconstitucionalidade de execução de pena para crimes com mais de 15 anos de pena — para um maior ainda, a possibilidade de execução imediata de qualquer condenação.
O Supremo criou a hipótese de prisão obrigatória em face da decisão condenatória do júri, eliminando a presunção da inocência. Sendo mais simples: o STF extinguiu a presunção da inocência para o Júri.
Notem o imbróglio: quais fundamentos sustentam tal decisão? Há suporte na Constituição para essa decisão? Como fica o precedente estabelecido pelas ADCs?
Votos e fundamentos dos ministros e porque a identificação do que é ratio decidendi de um precedente não pode ser construída a partir de um voto que foi derrotado no precedente vinculante
Como de praxe, se mostra necessário analisar os fundamentos de uma decisão tão relevante. O voto vencedor do relator, ministro Barroso, mais uma vez trouxe à tona o debate sobre a ponderação. Na visão do presidente da Corte, “a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes” (grifos meus).
Segue o ministro:
No caso específico da condenação pelo Tribunal do Júri, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Conselho de Sentença, e o Tribunal de segundo grau não pode substituir-se à deliberação dos jurados (CF/1988, art. 5º, XXXVIII, “c”), o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos a que ela visa resguardar (CF/1988, arts. 5º, caput e LXXVIII, e 144), notadamente a vida humana (grifos meus).
Percebe-se que a ponderação feita é eivada de subjetividade na medida que a decisão, por ser soberana, não significa que o constituinte intencionou uma sobreposição às demais garantias, muito menos a mais cara ao devido processo legal, a da presunção de inocência dos réus. Tanto é que no mesmo artigo assegura o trânsito em julgado a esses mesmos réus.
Nada se fala na Constituição em prisões automáticas. Pelo contrário, se fala em respeito ao devido processo e ao duplo grau de jurisdição. Mas o ministro Barroso enveredou pelo caminho da ponderação.
Mais que isso, já referi diversas vezes que a ponderação proposta por Alexy não se opera desta maneira absolutamente discricionária que se defende em julgados diversos do Supremo (e tribunais inferiores), em que, em face de uma (suposta) colidência de dois princípios cabe ao juiz escolher qual deve ser usado com maior intensidade e qual deve ser usado com menor intensidade.
Não sou um entusiasta das propostas de Alexy por considerá-las incompatíveis com o dever de coerência e integridade, bem como da existência de respostas corretas (adequadas à Constituição) no Direito.
Todavia, muito se atribui a Alexy coisas que ele não disse; mais do que isso, para que se use adequadamente as suas proposições, há uma fórmula peso muito específica que nunca é aplicada nesses julgamentos. O espaço é reduzido e remeto os leitores para este texto: A prisão no júri e o voto equivocado do ministro Barroso.
Quem tiver a paciência de ler esse texto, poderá constatar que, utilizando-se a fórmula-peso de Alexy (a fórmula está ali delineada) a resposta seria, indubitavelmente, em sentido contrário.
Em outra parte de seu voto, o ministro Barroso diz que não há incompatibilidade entre o que foi decidido nas ADCs e o seu voto, para possibilitar a execução imediata da pena aplicada pelo júri. E faz isso amparado em um voto que restou vencido quando do julgamento das ADCs.
É o que venho há muito falando: um precedente não nasce precedente, torna-se. E torna-se a partir da reconstrução interpretativa efetuada a partir da holding estabelecida ao analisar o caso concreto. Se no common law uma das principais questões ainda hoje é identificação do que é ratio decidendi de um precedente, uma certeza há: ela não pode ser construída a partir de um voto que foi derrotado, porque ele não constitui passo necessário para solução do caso concreto.
Isso deveria ser evidente. Alguém dirá: “ah, mas os votos dissidentes de Holmes”… E eu respondo: por favor, não é por esse caminho… O que querem fazer aqui é automatizar a dissidência de Holmes como precedente.
Velho problema da voz das ruas versus ronco da Constituição
Esse assunto é recorrente. Na ‘lava jato’ vimos muito disso. A opinião pública exige… Nossa resposta: a Constituição é o remédio contra a voz das ruas. Contra as Eríneas, da peça de Ésquilo. Contra as sereias, da epopeia de Ulisses. Por isso, soberania dos veredictos é garantia para ser brandida contra eventual clamor popular em face de absolvição. E não o contrário.
No caso desse recurso extraordinário, o ministro Barroso aponta que a Constituição estabelece a soberania dos veredictos e que a decisão de mérito não pode ser modificada pelo Tribunal de Justiça, substituindo a decisão dos jurados pela do tribunal. Está correto. O ponto reside em que a soberania dos veredictos é garantia do cidadão. Esse é o ponto.
Afinal, se é admitido que o júri decide por íntima convicção — já escrevi muito sobre as minhas críticas a isso, deveria haver uma fundamentação mínima — deve-se admitir a possibilidade de que, por íntima convicção, o júri absolva o réu. Inclusive por clemência.
No entanto, quando se trata da possibilidade de defesa do réu, dentro dos limites do jogo processual, use tudo que tem a disposição em sua defesa, o Supremo tem buscado limitar as teses passíveis de serem levantadas em plenário, vide ADPF 779. Há livre convicção ou não há, então? O júri correto é apenas aquele que condena?
Nessa senda, a ministra Carmen Lúcia trouxe o drama dos feminicídios (o caso concreto se trata de um caso de feminicídio). Como não se compadecer com esse discurso? Quem seria contra? Mas lembremos: não podemos cair na armadilha emotivista (lembro da palavra tecnicamente, como escreve A. MacItyre).
Falei sobre o assunto recentemente sobre o caso Silvio Almeida (ver aqui). Não se pode cair na armadilha de se defender prisões automáticas (prisões penas) sob o manto da perspectiva de gênero. Como disse o ministro Gilmar Mendes, “não estamos na Alemanha“. Pois bem. Quantos júris no Brasil já foram anulados por nulidades insanáveis? São incontáveis. As garantias devem prevalecer. Mais ainda: de um é (feminicídios) não se tira um deve (prender automaticamente). Violação flagrante da Lei de Hume. De novo: quem se importa com a doutrina?
Muitos ministros seguiram a tese da “impunidade” do júri “que deve ser combatida”. Discursos assim são perigosos, pois ameaçam outro valor que também é muito caro em uma democracia: a liberdade do indivíduo.
O réu submetido ao Tribunal do Júri pode ser culpado, mas muitas vezes não o é. E o que se faz com uma condenação equivocada? Reforma-se. Para isso serve o recurso de apelação previsto no CPP para sentença do júri, ainda que com hipóteses limitadas.
Em seu voto o ministro Barroso diz que em torno de 2% dos veredictos do júri são modificados, tomando por base os dados do TJ-SP. Ocorre que, verdadeiro os dados, nesse rol estão os que condenam e os que absolvem.
O problema é mandar alguém ao sistema prisional quando não presentes os requisitos da prisão cautelar antes do trânsito em julgado. Esse é o ponto. Sistema penitenciário este que já foi declarado em “estado de coisas inconstitucional” pelo Supremo. Desse precedente o Supremo costuma esquece.
Por que o STF decide desse modo? Possível resposta: talvez porque os tribunais insistam na tese equivocada de que têm o poder de “fazer” precedentes pro futuro
Para mim, as razões para decisões tão fortemente criadoras de Direito (aqui remeto os leitores para obras como A Revolução Secreta [ou Silenciosa] — Die heimliche Revolution, de Bernd Rüthers, que venho trabalhando em vários textos e livros; remeto também para meu recente “Ensino Jurídico em Crise – Ensaio Contra a Simplificação do Direito”, em especial os capítulos que tratam de realismo, epistemologia e precedentes) possam estar na recepção equivocada da tese de que o direito é indeterminado, professada pelos processualistas de filiação cética-realista (precedentalistas). Uma espécie de autorictas non veritas facit precedentes, repetindo a máxima positivista de Hobbes e Austin.
Por essa tese — veja-se a palestra do ministro Barroso acima referida — processualistas defendem que “precedentes” devem ser feitos/elaborados pro futuro (como regras gerais e abstratas — veja-se o resultado do julgamento do tema sob comento que trata da prisão do júri) e aplicados de maneira textualista (subsuntiva).
Com isso, o tribunal (no caso, o STF) pode até mesmo deixar de aplicar o que foi decidido em um precedente qualificado/vinculante, a partir de uma construção interpretativa daquilo que NÃO foi decidido no caso concreto que gerou o precedente. Sempre construindo Direito novo, como denuncia Rüthers (para falar apenas desse autor).
Percepção pessoal do julgador (visão pessoal de ministros sobre júri) como fonte de Direito
Ainda mais intrigante ou surpreendente é a manifestação do Ministro Barroso, Presidente do Supremo, dada no dia seguinte (leia aqui), em que disse que a decisão em questão:
“acaba com essa história que toda a vida me constrangeu imensamente que é ao final do júri o condenado pelo homicídio sair ao lado da família da vítima que estava presente.”
Embora a doutrina brasileira pouco doutrine (ou faça essa tarefa cada vez com menos intensidade), ouso afirmar e remar no contra fluxo: o constrangimento pessoal do ministro sobre um tema não pode ser fundamento para que, a partir de agora, sejam mandados indevidamente para presídios, centenas de pessoas por ano.
Se apenas uma pessoa fosse mandada injustamente para cumprir uma pena, já estaríamos diante de flagrante inconstitucionalidade. Insisto: as opiniões pessoas de um magistrado não podem se sobrepor à lei. Caso contrário, o direito será o que o juiz pensa.
Fiquemos, pois, com a divergência do ministro Gilmar Mendes, em seu bem fundamentado voto, que lembrou que a soberania do Tribunal do Júri não é absoluta. O remédio para exceções e riscos da liberdade do réu está na prisão preventiva, que, aliás, nunca foi proibida. Permito-me repetir isso, que, aliás, repeti dezenas de vezes durante a batalha da presunção, que durou três anos.
O que sobra para a doutrina?
Aos ministros que compuseram a maioria vencedora, sinto-me obrigado a invocar, além do princípio da caridade epistêmica de que tanto falo (Blackburn e Davidson), também o “Fator Júlia Roberts” — sobre o qual escrevi pela primeira vez há mais de 20 anos e que hoje é verbete do Dicionário Senso Incomum — e dizer: a Suprema Corte errou.
Explico: no filme O Dossiê Pelicano (clique aqui para assistir Direito e Literatura — O Dossiê Pelicano) há uma cena na qual o professor de Harvard relata para seus alunos que no estado da Geórgia fora aprovada uma lei alçando a sodomia à categoria de crime (pena de 1 a 20 anos) e que a US Supreme Court, instada a decidir acerca da inconstitucionalidade da lei em vista da violação à privacidade dos cidadãos, decidiu, por 5 a 4, que “não é inconstitucional que o estado classifique determinadas condutas — entre elas, a sodomia — como criminosas” (case Bowers v. Hardwick, 30/6/1986).
“Este é o precedente”, anuncia o professor no filme, passando já ao próximo assunto. Neste exato momento, uma aluna, interpretada por Julia Roberts, interpela o mestre para dizer “The Supreme Court is wrong” (a Suprema Corte está errada).
O STF errou porque criou um “precedente” de repercussão geral que vai contra outro precedente, que é (ou melhor, seria) vinculante. Eis na prática aquilo que venho referindo doutrinariamente: não temos precedentes no Brasil. O Brasil é um país sem precedentes (nas duas acepções do enunciado). De há muito quero discutir isso. Mas os tribunais não estão dispostos (ver aqui).
Vale relembrar a guilhotina de Hume (ou a Lei de Hume): não se deve tirar “um deve” (criar prisão automática para todos os acusados de crime contra a vida) de um “ser” (questão do alto número de homicídios e feminicídios no Brasil). A questão é: não importa o que cada um pense sobre a justiça (ou sobre os constrangimentos pessoais) ou injustiça de prisões antecipadas. Importa é o que diz a Constituição.
Post scriptum 1:
a) nem mesmo o ministro Barroso afirma que a soberania dos Júris é absoluta. Ele fala em seu voto em “quase absoluta”;
b) o que faremos com precedentes vinculantes em controle de constitucionalidade abstrato no Brasil? Vinculam ou não?
c) podem ser derrubados pelo controle difuso?
d) Como disse Geraldo Prado: conferir a quatro jurados que decidem sem motivação — lembrem da íntima convicção! — o poder de encarcerar alguém sem o trânsito em julgado da condenação é contrariar a própria ideia de júri como garantia da soberania popular.
e) O júri é soberano para que? Para quem? Para o Estado? Ou para o réu?
f) O tribunal popular corre, assim, sérios riscos de se converter em um Tribunal da repressão. Lembrem-se de Bourdieu e seu conceito de violência simbólica. É disso que se trata.
Post scriptum 2:
Estendi-me. Estendo-me. (Quem se interessa?) quando já não se lê três linhas. Textão, dirão os especialistas em cultura manualesca. Sabem o que é pior? Tudo isso para dizer o óbvio. Sem maiores pretensões do que isso. Pelo menos na percepção de um certo olhar sobre as obviedades. Naquilo que Darcy Ribeiro dizia em seu Tratado sobre Obviedades. Falava ele que Deus era muito treteiro. Que fazia as coisas tão recônditas e sofisticadas… que sempre ainda precisamos dessa classe de gente — essa que escreve “textões”, para desvelar as obviedades desse ladino óbvio. [1]
Na verdade, o que está em jogo é exatamente o que não se coloca em jogo num direito democrático: os princípios de fundo sem os quais o direito é outra coisa.
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[1] Fiz uma pequena adaptação ao que disse o professor.
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