Interesse Público

ADPF 743: o STF formulando políticas públicas?

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  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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19 de setembro de 2024, 8h00

A figura dos litígios estruturais tem sido identificada por muitos como um mecanismo processual hábil ao enfrentamento de problemas de alta complexidade, cuja solução não se viabilize pela simples edição de um comando declaratório, condenatório ou constitutivo, como é próprio à prestação jurisdicional clássica.

A ideia de que se possa buscar, sob a intervenção articuladora do Judiciário, a superação de bloqueios institucionais diversos que expliquem a inefetividade de políticas públicas encanta corações e mentes, que normalmente discutem o desenho em abstrato da novel figura processual. A observação, todavia, de exemplos concretos mais recentes, aponta realidade diversa, com efeitos negativos sobre as políticas públicas em curso — este o tema de hoje.

A ADPF 743 ocupa recentemente o Judiciário, eis que, tendo por objeto a declaração de inconstitucionalidade do estado de coisas relacionado à gestão ambiental brasileira, pretende ainda providências de diversas ordens como medidas de prevenção, monitoramento e controle de incêndios; redução do desmatamento; extensa publicização das ações públicas na matéria etc.

É no bojo desta demanda que o ministro Flávio Dino exarou decisões monocráticas diversas tendo em conta o estado atual de disseminação de incêndios em todo o país. Alguns apontamentos merecem atenção em relação à demanda e às ordens judiciais a ela associadas.

Primeiro ponto diz respeito à temporalidade. A ADPF 743 foi ajuizada em 18/9/2020, distribuída à época ao ministro Marco Aurélio, que entendeu, em 29/9/2020, inexistentes elementos que autorizassem a edição de decisão unipessoal em relação às providências acauteladoras objeto de pedido específico.

Segue-se a arguição de prevenção do ministro Roberto Barroso, relator da ADO 60 e ADPF 708, versando sobre a omissão da União na aplicação de recursos vinculados a fundo orçamentário especial (Fundo Clima) orientados também à proteção ambiental.

A prevenção é afastada pelo ministro Luiz Fux, então presidente, em 18/12/2020, e segue sem qualquer providência jurisdicional específica até 6/12/2023, quanto tem início em Plenário o julgamento, ainda com sustentações orais. Por praticamente três anos, a demanda, vocacionada a superar inércia injustificada de parte da administração, segue sem qualquer determinação judicial que envolvesse providências concretas. Caberia falar em inércia judicial?

Identidade de pedidos

Vale consignar que, em paralelo, tramitavam na corte a ADPF 760 e a ADO 54, ambas sob relatoria da ministra Cármen Lucia e nas quais se requeria a adoção de providências, pela União, no âmbito do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e de outros programas, para reduzir o referido fenômeno. Curiosamente, não se identificou, em juízo preliminar, a relação de conexão ou prevenção antes vislumbrada quanto às ADO 60 e ADPF 708.

Não obstante isso, a relação de dependência lógica existia — tanto que, o voto exarado pelo ministro André Mendonça na ADPF 743 (sucessor do acervo do ministro Marco Aurélio) refere expressamente ao decidido nas ADPF 760 e ADO 54, cuja sessão de julgamento se deu em 14/3/2024.

Já nesse ponto, verifica-se o distanciamento entre a proposta teórica de exercício de jurisdição estruturante e aquilo que se tem passado em concreto no STF. Afinal, ainda que não se identificasse uma identidade plena de pedidos, ou uma inegável relação de conteúdo e continente entre as ADPF 743 e 760, é evidente que uma política pública de alinhamento da gestão ambiental brasileira, como pretendido na primeira demanda, envolverá necessariamente a consideração do desmatamento da Amazônia Legal, objeto do pedido da ADPF 760.

Ramificações

Um dos desafios dos chamados litígios estruturais, é a identificação das ramificações da ação pública reclamada pelo autor da demanda — providência indispensável para que a entrega jurisdicional seja efetivamente hábil a superar bloqueios institucionais, ou harmonizar atores institucionais que precisem operar em relações de cooperação. O mapeamento destas ramificações exige um conhecimento profundo do problema público em discussão.

Spacca

A par disso, o reconhecimento destas relações de conexão entre ações públicas diversas exclui como possibilidade soluções simplistas, cuja aptidão para determinar resultados úteis decorra simplesmente da autoridade de quem a profere – na hipótese, o STF. O resultado é que em relação a um problema complexo, mas único, tem-se duas determinações judiciais distintas, exaradas em processos distintos. O risco imediato é o de redundância de esforços, seja no âmbito da administração, chamada a desenhar providências e expedir informes e relatórios em ambas as demandas; seja no âmbito judicial, que chama para si a tarefa de análise da suficiência e adequação dos planos requeridos em cada qual das demandas.

Retomemos a análise do julgamento da ADPF 743…

A oferta dos votos propriamente se inicia em 29/2/2024 e só se conclui em 21/3/2024, com decisão por maioria e a substituição do relator — agora, o ministro Flávio Dino. A prestação jurisdicional ali desenhada, uma vez mais se distanciando daquilo que seria de se esperar em matéria de litígio estrutural, opta pelo modelo tradicional de sentença lato sensu, entendida como manifestação judicial que “põe fim ao litígio”.

Não se cuidou, portanto, de desenvolver ações de articulação entre os vários níveis federados envolvidos na demanda como medida prévia à determinação de quais seriam as obrigações constitucionais envolvidas. Ao contrário, a preferência se deu pela emissão de ordem judicial clássica com assinalação de prazo para cumprimento — gesto de suposta reafirmação de autoridade da corte, que se viu, todavia, desautorizado pela subsequente convocação de ofício, de audiência de conciliação em 12/8/2024.

A convocação da audiência acima referida evidencia o equívoco na inversão da ordem das providências — eis que dela pode resultar a evidenciação da inviabilidade prática da concretização das ordens já exaradas. Mais ainda, integra a lista de destinatários da convocação o Núcleo de Solução Consensual de Conflitos da Corte — numa curiosa hipótese em que a busca da consensualidade se deu depois da decisão de mérito já expedida.

Uma vez mais tem-se a inversão do que deveria ser a prestação jurisdicional em sede de litígio estrutural. Afinal, a expedição prévia da ordem coloca o Judiciário não como o articulador da solução, mas como a autoridade mandante.

A par disso, tem-se claro que as ordens já expedidas não foram antecedidas do aprofundamento necessário em relação ao problema público em discussão, tampouco da sondagem juntos a cada qual dos atores institucionais envolvidos, de qual sua disposição em concorrer para com a solução da quaestio constitucional.

Dissonância

As perplexidades não cessam. Nos termos do item I da decisão exarada pela corte, determina-se ao governo federal que apresente, no prazo de 90 dias, um “plano de prevenção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, que abarque medidas efetivas e concretas para controlar ou mitigar os incêndios que já estão ocorrendo e para prevenir que outras devastações dessa proporção não sejam mais vistas”.

Tem-se aqui um aparente alinhamento com a tese de repercussão geral enunciada no Tema 698, segundo a qual “a decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado” [1].

Diz-se aparente porque uma leitura mais atenta do decidido evidencia que a avidez por aparentar uma ação judicial resolutiva resulta, uma vez mais, em desarranjo das políticas públicas no segmento.

Primeiro ponto de dissonância, a rigor, entre a tese fixada no Tema 698 e a decisão exarada na ADPF 743 é a ausência de maior densidade na indicação das “finalidades a serem alcançadas”.

Afinal, que um plano de prevenção e combate a incêndios deve resultar em controle ou mitigação destes mesmos eventos, como referido na decisão, é mais do que intuitivo — é verdadeiramente tautológico. E esse tipo de afirmação não oferece parâmetro real para a avaliação dos resultados da ação pública desenvolvida, seja de parte do próprio STF, seja pela sociedade organizada.

Distancia-se em muito a decisão na ADPF 743 do que seja próprio das políticas públicas, nas quais a indicação de metas e sobretudo, de indicadores de desempenho, torna mais objetiva não só a execução em si das medidas como também o monitoramento por qualquer estrutura institucional, de sua efetiva execução e aptidão para dar resposta ao problema público.

Transferência de atividade

Segundo ponto que merece crítica está em que na ADPF 743 determina-se que o plano de ação exigido no item I do decisum é de ser “apresentado ao Conselho Nacional de Justiça, que deverá centralizar as atividades de coordenação e supervisão das ações decorrentes da execução da presente decisão”.

Tem-se então uma espécie de transferência da atividade que seria típica da jurisdição estruturante (coordenar e supervisionar as ações tendentes à solução de um problema público) para o CNJ, que, salvo erro ou omissão, não encontra no desenho constitucional de suas competências esse tipo de atividade.

Mais ainda; soa então redundante a existência do Núcleo de Processos Estruturais e Complexos, criados junto à Presidência do STF, se a coordenação e supervisão das ações tendentes à superação do problema público são assinaladas a outra estrutura institucional, distinta da corte.

Esdrúxulo adendo

Finalizando o presente texto — mas não as perplexidades sugeridas pela decisão na ADPF 743 e providências subsequentes —, tem-se o item V da decisão sob crítica, no qual se determina “medida sugerida pelo Núcleo de Processos Estruturais da Presidência desta Corte” para “[…] que o Poder Executivo, em articulação com os demais entes e entidades competentes, apresente, no prazo de 90 dias, a complementação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal”.

Tenha-se em conta que o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal foi objeto não da ADPF 743, mas daquela antes dela decidida, a saber, a ADPF 760.

Tem-se, nesse esdrúxulo adendo à decisão sob análise, a evidenciação de que, na perspectiva de outorga de jurisdição estruturante no seu verdadeiro sentido, as demandas haveriam de ter sido julgadas em conjunto, e não separadamente. Mais ainda, a medida sugerida pelo Núcleo de Processos Estruturais da Presidência (Nupec) extrapola em muito os limites fixados pelo item 2 da já multi referida tese de repercussão geral fixada no Tema 698.

Afinal, o Nupec propõe, e o colegiado acolhe, a delimitação de aspectos muitos específicos da política pública relacionada à prevenção e controle do desmatamento da Amazônia Legal [2].

Considerações finais

Todo o quadro narrado evidencia que a reivindicação de competência institucional vocalizada e praticada pelo STF para a formulação de políticas públicas é um equívoco a toda prova.

A estratégia política de elevação de problemas públicos complexos à corte pelos instrumentos de controle de constitucionalidade tem seduzido ministros à linha de frente do enfrentamento de desafios que exigem ação articulada, municiada de conhecimento do problema técnico subjacente e dos limites de atuação de cada qual das instituições envolvidas.

O desenho de estratégias de solução é atividade típica do domínio das políticas públicas, e não da jurisdição. Essa cunhagem de respostas exige mais do que espíritos elevados e boas intenções. É preciso conexão permanente com a prática que permeia o problema — afinal, o principal ponto de contato com a realidade é a experiência.

Intervenções judiciais descoordenadas disseminam os esforços da administração pública, e podem conduzir a proposições que, no imperativo de atender a prazos judiciais fixados autoritativamente, não se beneficiem da maturidade que o tempo pode proporcionar ao desenho de uma ação pública.

Na perspectiva do Judiciário, podem resultar em erosão da sua autoridade, à medida em que sucessivas reconsiderações ou extensões de prazo para cumprimento evidenciem a total inviabilidade da ordem judicial originária.

Sob o prisma da utilidade da jurisdição estrutural, tem-se o desvio de um modelo de solução de problemas constitucionais, com um Judiciário resistindo a abdicar do seu espaço de poder de emissor da ordem.

Formular políticas públicas é um exercício de humildade — diante da complexidade do problema, e das limitações das possibilidades de ação. Este é um exercício a que a administração pública está habituada, mas que é estranho ao Judiciário.

O dilema está em verificar-se que o aprendizado da modéstia judicial pode se dar à custa de uma investidura do papel de solucionador de problemas que se revela puramente retórica; retórica essa desmentida todos os dias pela experiência de vida dos cidadãos.

 


[1] A referida tese de repercussão geral cunhada no Tema 698 foi já objeto de comentário anterior nesta coluna, no texto intitulado “O STF ‘lacrou’ o controle de políticas públicas ao julgar o Tema 698?”

[2] Leia-se: “complementação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal, com propostas de medidas concretas, para: a) processar, de acordo com cronograma e planejamento a serem desenhados pelos atores envolvidos, as informações prestadas até a presente data ao Cadastro Ambiental Rural e aprimorar o processamento de informações a serem coletadas no futuro, preferencialmente com o uso de análise dinamizada;” e b) integrar os sistemas de monitoramento do desmatamento, de titularidade da propriedade fundiária e de autorização de supressão de vegetação, ampliando o controle automatizado do desmatamento ilegal e a aplicação de sanções;”

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  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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