Garantias do Consumo

Possibilidade de tutela de urgência na ação de repactuação de dívidas

Autor

  • Leonardo Garcia

    é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

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18 de setembro de 2024, 8h00

O superendividamento é um problema crescente na sociedade contemporânea, levando o legislador brasileiro a criar mecanismos para proteger o consumidor em situação de vulnerabilidade, como a Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento.

Essa lei introduziu no Código de Defesa do Consumidor (CDC) o artigo 104-A, que trata da repactuação de dívidas, um procedimento especial que visa a renegociar as dívidas do consumidor superendividado, com o objetivo de garantir a sua dignidade e o mínimo existencial.

Diante da urgência que a situação de superendividamento impõe, surge o questionamento sobre a possibilidade de concessão de tutela de urgência no âmbito da ação de repactuação de dívidas. A tutela de urgência, prevista no Código de Processo Civil (CPC), visa a garantir a efetividade da jurisdição, permitindo ao juiz conceder medidas que protejam o direito da parte autora antes mesmo da prolação da sentença.

Algumas decisões judiciais têm se posicionado contrariamente à possibilidade de concessão de tutela de urgência na ação de repactuação de dívidas, argumentando que não seria cabível a liminar na fase inicial do procedimento de repactuação. Só seria possível a apreciação da medida após a audiência conciliatória. [1]

Contudo, a análise do microssistema jurídico processual do CDC e do CPC, em especial do artigo 300 do CPC, demonstra que não há impedimento legal para a concessão da tutela de urgência na ação de repactuação de dívidas, desde que preenchidos os requisitos legais, quais sejam, a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

Urgência diante da vulnerabilidade do consumidor

A urgência, na situação de superendividamento, decorre da própria natureza da vulnerabilidade do consumidor, que se vê impossibilitado de arcar com suas dívidas e manter o mínimo existencial. O risco de dano se materializa na possibilidade de constrição de bens e salários, inefetividade do plano de pagamento a ser celebrado (principalmente nos casos em que o salário está quase todo comprometido para pagamento das dívidas), dentre outras medidas que agravam ainda mais a situação de fragilidade do consumidor.

A lei, ao prever a conciliação e a repactuação das dívidas, busca justamente soluções céleres e eficazes para o problema do superendividamento, o que se coaduna com a finalidade da tutela de urgência. Assim, a tutela de urgência, nos casos em que a preservação da dignidade do consumidor está comprometida, garante a proteção do superendividado até que se encontre uma solução definitiva para o caso.

Nesse sentido, a recente decisão do TJ-DFT da lavra do desembargador Leonardo Bessa, no Agravo de Instrumento TJ-DF 07138102920238070000 (8.ago.2023), reconhece a possibilidade da concessão da tutela de urgência antes mesmo da audiência de conciliação.

O caso envolveu uma consumidora que estava em situação de superendividamento, tendo realizado diversos empréstimos junto ao Bradesco, comprometendo sua única fonte de renda: a pensão alimentícia de seus três filhos. O banco, desconsiderando a situação de vulnerabilidade da consumidora, realizava descontos diretamente em sua conta corrente, impactando diretamente a subsistência da família.

O julgado destacou a importância e a possibilidade da tutela de urgência em alguns casos de superendividamento, mesmo durante a fase conciliatória do processo. Segundo o desembargador, os contratos não devem impedir que as partes garantam suas necessidades básicas.

Função social é resguardada

Quando um contrato impede o acesso a essas necessidades, ele viola sua função social, prejudicando não apenas o devedor, mas também aqueles que dependem dele economicamente. Ademais, foi ressaltado a responsabilidade das instituições financeiras na concessão de crédito, uma vez que a instituição financeira agiu em desacordo com a boa-fé objetiva ao conceder empréstimos à consumidora, mesmo ciente de sua situação financeira fragilizada.

No mesmo sentido do julgado do TJ-DF, vários tribunais também vêm aplicando a tutela de urgência, independentemente do momento processual, se presente os requisitos. [2]

O Enunciado nº 41 do Fonamec também reconhece a possibilidade da concessão da tutela de urgência deste a fase inicial do procedimento:

“Caso o consumidor ingresse diretamente em juízo, sem o cumprimento da fase obrigatória do art. 104-A do Código de Defesa do Consumidor, após a análise de eventual tutela de urgência, o juiz poderá suspender o andamento do feito e remeter os autos ao CEJUSC para a realização da audiência autocompositiva prevista no referido dispositivo legal.”

Diante do exposto, conclui-se que a tutela de urgência é uma ferramenta fundamental para garantir a efetividade da ação de repactuação de dívidas, assegurando a proteção do consumidor superendividado e a realização dos princípios basilares do Código de Defesa do Consumidor.

A possibilidade de concessão da tutela de urgência, desde que preenchidos os requisitos legais e observados os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, garante a efetividade do processo e a justiça no caso concreto, impedindo que a demora na solução do litígio cause danos irreparáveis ou de difícil reparação ao consumidor.

 


[1] TJ-MG – AI: 10000211949383007 MG, Relator: Claret de Moraes, Data de Julgamento: 07/06/2022, Câmaras Cíveis / 10ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 08/06/2022. No mesmo sentido: TJDFT, Acórdão 1399664, Relator: Getúlio de Moraes Oliveira, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 9/2/2022, publicado no DJE: 24/2/2022.

[2] TJ-GO – Agravo de Instrumento: 5100040-21.2024.8.09.0006 GOIÂNIA, Relator: Des(a). Roberta Nasser Leone, 10ª Câmara Cível; TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2342713-77.2023.8.26.0000 Olímpia, Relator: Júlio César Franco, Data de Julgamento: 10/06/2024, 22ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/06/2024; TJ-DF 07200339520238070000 1747158, Relator: Leonardo Roscoe Bessa, Data de Julgamento: 16/08/2023, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: 01/09/2023.

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, diretor do Brasilcon, membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ e autor de várias obras jurídicas relacionadas ao Direito do Consumidor e Superendividamento.

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