Opinião

Entre o remédio e o veneno: é preciso impor limites aos processos estruturais

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  • Felipe Viégas

    é advogado da União na AGU mestre em Direito pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) especialista em Direito Constitucional Administrativo e Tributário pela Esmape (Escola de Magistratura de Pernambuco). Membro do Tribunal de Prerrogativas da OAB/DF. Professor e autor de obras jurídicas.

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18 de setembro de 2024, 9h24

Até pouco tempo, a expressão “processos estruturais” soava quase como um enigma, conhecida apenas por alguns acadêmicos e processualistas que se dedicam ao estudo do Direito Comparado. E não sem razão, afinal, não existe uma legislação que forneça uma definição clara ou estabeleça os contornos precisos para a aplicação desse instituto [1].

O professor Edilson Vitorelli traz a seguinte definição do instituto: “o processo estrutural é um processo coletivo no qual se pretende, pela atuação jurisdicional, a reorganização de uma estrutura burocrática, pública ou privada, que causa, fomenta ou viabiliza a ocorrência de uma violação pelo modo como funciona, originando um litígio estrutural” [2].

Em termos práticos, o processo é considerado estrutural porque a solução do problema apresentado ao Poder Judiciário não é simples. Se o fosse, se resolveria pelo modelo tradicional bipolar e adversarial, com uma simples decisão judicial condenatória ou mandamental [3]. Mas não é o caso. E esse é o nosso primeiro ponto de partida.

Isso porque, quando um juiz reconhece, em qualquer grau de jurisdição, que o litígio ali versado é estrutural e suscita a utilização das técnicas inerentes ao processo estrutural, ele sinaliza aos demais atores processuais que a resolução adequada daquele caso complexo e conflituoso pressupõe uma instrução processual diferenciada, pautada na cooperação e na consensualidade de todos os atores.

Qual a lógica por trás dos processos estruturais?

Imagine o desafio quase hercúleo de um juiz, sozinho em seu gabinete, diante de litígios coletivos irradiados que envolvem temas tão complexos e conflituosos como saúde, segurança pública, meio ambiente, educação e previdência [4].

É possível acreditar que uma decisão isolada, tomada de maneira solitária e afastada das realidades concretas, tenha o poder de resolver, de forma adequada e definitiva, problemas crônicos? Seria como esperar que uma única sentença pudesse transformar a realidade com a mesma facilidade com que é assinada.

E foi exatamente a partir da busca por esse modelo de tutela jurisdicional mais adequada para resolver casos complexos que os processos estruturais surgiram nos Estados Unidos. Embora a escravidão tenha sido oficialmente abolida em 1865, com a aprovação da 13ª Emenda Constitucional, a segregação racial continuou a marcar profundamente a sociedade norte-americana por muitas décadas.

Em 1896, no caso Plessy v. Ferguson, a Suprema Corte dos EUA decidiu que a separação de passageiros brancos e negros em vagões de trem distintos não configurava discriminação racial, e, portanto, não violava a 14ª Emenda, que assegura a igualdade perante a lei.

Décadas depois, com o caso Brown v. Board of Education of Topeka, em 1954 (Brown I), a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas norte-americanas. Essa decisão revogou o caso Plessy v. Ferguson porque foi a partir dela que a tese dos “separados mas iguais” foi julgada inconstitucional.

Ocorre que, na prática, a ordem judicial de “não se pode segregar” foi insuficiente, não resolveu o problema. O Judiciário determinou, mas os estados do sul, em sua maioria, não cumpriram. Assim, a Corte Suprema dos Estados Unidos se viu diante de um problema estrutural, não solucionável por um simples comando da Corte.

A solução encontrada veio no caso Brown II, em 1965. A Suprema Corte reconheceu nesse julgado que a segregação só seria efetivamente resolvida nos Estados Unidos se o Judiciário tomasse medidas estruturantes posteriores ao julgado.

Assim, por meio de medidas adicionais, a Suprema Corte delegou aos tribunais federais e estaduais a possibilidade de implementar medidas estruturantes (structural injunctions ou structual reforms) [5] para efetivar a desagregação racial nas escolas, como a quebra de paredes dos colégios, a alteração dos sanitários e das paradas de ônibus e a forma de prestar o serviço de transporte escolar [6].

No Brasil, os juízes de primeira instância têm recorrido há décadas aos processos estruturais como ferramenta para resolver litígios coletivos. No âmbito da jurisdição constitucional, os ministros do Supremo passaram a utilizar essa técnica decisória como um “remédio jurídico” inovador para reorganizar instituições disfuncionais.

Contudo, esse remédio parece estar se transformando em veneno em alguns casos, especialmente na condução de certas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) julgadas pelo STF nos últimos anos [7].

Artigo 139, IV, do CPC confere ao juiz poder ilimitado?

“Busca-se desatar totalmente as mãos do Estado brasileiro.” Estas foram as palavras do ministro Flávio Dino no dispositivo da decisão monocrática proferida em 15/9/2024 [8]. E é a partir de novas e inesperadas obrigações, impostas unilateralmente em decisões não consensuais, que o Ministro realiza o heterodoxo cumprimento da  sentença transitada em julgado no bojo da ADPF 743. Essa decisão impôs uma série de medidas, incluindo a convocação de bombeiros estaduais para atuar no combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia. O ministro Dino também autorizou a abertura de créditos extraordinários, dispensando a aplicação do § 7º do artigo 4º da LRF.

Spacca

Além disso, ministro suspendeu, até o final de 2024, os prazos contidos na Lei nº 7.957/89, para permitir a recontratação temporária de brigadistas sem necessidade de novas contratações formais. Isso foi parte de um conjunto de ações que visam garantir o cumprimento do acórdão do STF proferido em março do mesmo ano. O ministro também destacou que qualquer omissão do Executivo será monitorada e sujeita a novas intervenções judiciais. Por fim, a decisão determinou a aplicação de recursos do Funapol para combater crimes ambientais na região amazônica, ampliando ainda mais o escopo de atuação do Judiciário sobre a gestão pública ambiental.

Neste particular, a interpretação dada ao artigo 139, IV, do CPC pelo ministro Flávio Dino merece destaque. Concebido como uma “cláusula geral de efetivação”, o dispositivo permite ao juiz aplicar medidas coercitivas para garantir o cumprimento das decisões judiciais. Contudo, na visão do ministro, parece que o artigo dá carta branca para intervenções sem limites no campo das políticas públicas. Agora, o CPC parece ter se transformado em um manual de gestão pública, onde os juízes não apenas julgam, mas também governam. Resta saber se o Judiciário também irá se responsabilizar pelos erros que possam surgir dessa atuação ativista.

Isso nos leva ao segundo ponto: a flexibilidade criativa com que se tratam as regras processuais nos processos estruturais. Na ADPF 743, a cada nova decisão, o STF sobrecarrega o Poder Executivo com uma avalanche de novas obrigações. O trânsito em julgado, que deveria marcar o fim de qualquer nova imposição, parece ter se tornado uma mera formalidade processual. Não podemos confundir a salutar flexibilidade inerente aos remédios estruturais com uma completa ausência de autocontenção.

Por que limitar o processo quando se pode continuar inovando? Causa de pedir, pedido, decisões surpresa? estabilização da coisa julgada? Detalhes técnico-processuais. Fato é que, sem uma legislação específica sobre processos estruturais, o CPC vira quase um manual de conveniências para o Judiciário: usa-se seletivamente o que interessa para justificar expansões de poder e interferência indevida em políticas públicas, enquanto as normas que deveriam conter abusos são oportunamente ignoradas.

Crédito extraordinário: a “solução mágica” para todos os problemas?

A abertura de crédito extraordinário, embora permitida em situações de imprevisibilidade e urgência (artigo 167, § 3º, CF), deve necessariamente respeitar os limites impostos pela legislação fiscal vigente.

O § 7º do artigo 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) não pode excluir despesas primárias da apuração da meta de resultado primário, abarcando, portanto, os créditos extraordinários.

A LRF, assim, impõe critérios claros e rigorosos para a utilização desses créditos, que só devem ser acionados em cenários de verdadeira excepcionalidade, onde a urgência e a imprevisibilidade justificam sua aplicação.

Na decisão de 15.09.24, o ministro Flávio Dino autorizou “a critério do Poder Executivo”, a abertura de créditos extraordinários, sem a aplicação do contido no § 7º do artigo 4º da LRF, introduzido pela Lei Complementar nº 200/2023, isto é, sem cômputos para tetos ou metas fiscais, exclusivamente para fazer frente à grave “pandemia” de Incêndios e Secas na Amazônia e no Pantanal.

Há de se registrar que o ministro Flávio Dino apenas seguiu o exemplo do atual presidente do STF, o ministro Luís Roberto Barroso, que já havia determinado a abertura de crédito extraordinário na ADPF 709, como se fosse rotina orçamentária do Judiciário. Quando Barroso liberou verbas para a causa indígena, ele não só abriu caminho, mas pavimentou uma estrada para que outros ministros adotassem o mesmo expediente. Não há trava orçamentária capaz de resistir aos processos estruturais.

É como se o Judiciário tivesse finalmente descoberto a “chave de ouro” do orçamento público: basta declarar a existência de um estado de coisas inconstitucional ou reconhecer a qualidade de processo estrutural. A partir daí, praticamente tudo é permitido.

Quando adicionadas ao mágico artigo 139, IV, do CPC, essas qualificações transformam qualquer decisão judicial em um passe livre, quer seja para ampliar os pedidos do autor, ignorar os limites da coisa julgada ou, claro, determinar a abertura de créditos extraordinários pelo Executivo. Decidir e pagar – tudo sem o incômodo de se submeter ao crivo do Legislativo.

Mas o que talvez seja mais preocupante é o impacto macroeconômico dessa prática. A cada crédito extraordinário liberado, as despesas públicas se acumulam, impactando diretamente o resultado primário do exercício.

Embora esses créditos sejam excepcionados dos limites de despesas, como bem sabemos, eles continuam a contar no cálculo do resultado primário — o famoso esforço fiscal para manter as contas em ordem. Se continuarmos nesse ritmo, com o Judiciário “criando” recursos a cada nova decisão, é difícil imaginar como o país conseguirá manter qualquer traço de equilíbrio fiscal.

Dessa forma, o Supremo vai consolidando um perigoso precedente: sempre que uma decisão estrutural é proferida, o Executivo é pressionado a abrir seus cofres sem maiores questionamentos, o que inevitavelmente levará à proliferação de ADPFs no tribunal.

Planejamento, consulta ou a preocupação com o equilíbrio fiscal tornam-se meros obstáculos, sacrificados em nome de uma intervenção judicial que ultrapassa os limites da prudência orçamentária, da separação dos poderes e do próprio Estado Democrático de Direito.

Conclusão

Em alguns processos em curso no Supremo, o escopo dos processos estruturais tem se expandido perigosamente, impondo um tensionamento na relação com o Executivo, que passa a enxergar nos processos estruturais um risco iminente e infinito de decisões-surpresa, à revelia do disposto no artigo 10 do CPC.

Nesse contexto, o trânsito em julgado, que deveria encerrar de maneira definitiva a controvérsia, transforma-se em uma mera formalidade, enquanto novas demandas estruturais continuam a emergir. O processo estrutural, idealizado como um remédio jurídico excepcional, corre o risco de comprometer a própria estabilidade jurídica e processual, caso seja mal utilizado.

As ADPFs, concebidas para correções pontuais, têm se tornado instrumentos de intervenções monocráticas constantes, desafiando os limites da separação dos poderes e colocando em risco o equilíbrio institucional.

Como já se dizia, “nem tudo que reluz é ouro” — e o processo estrutural certamente não é exceção. Embora movido pelas melhores intenções, o uso incorreto dessa técnica decisória pode transformar um remédio necessário em uma receita desastrosa. Quando somado à criação indiscriminada de créditos extraordinários e à pressão sobre o Executivo para abrir seus cofres sem limites, o impacto não é apenas jurídico, mas também fiscal.

Talvez o anteprojeto de lei em curso no Senado seja a oportunidade ideal para que a Comissão de Juristas estabeleça os devidos limites ao uso dos processos estruturais, antes que, como já advertiu Alexis de Tocqueville, “a justiça sem limites pode se transformar em uma forma de despotismo” [9]. Afinal, na busca por sanear as mazelas do Estado, o Judiciário não pode ignorar o perigo de ampliar ainda mais os problemas que pretende resolver.

 


[1] O Ato nº 3, de 12 de abril de 2024, editado pelo Presidente do Senado Federal, instituiu a Comissão de Juristas responsável pela elaboração do anteprojeto de Lei de Processo Estrutural no Brasil. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2664/.

[2] VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo. São Paulo: Thomson Reuters, outubro/2018, vol. 284, p. 333-369

[3] SANTANA, Felipe Viegas. Processos estruturais no Brasil: a atuação do Poder Judiciário na tomada de decisões em litígios policêntricos. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 96, n.1, 2024.

[4] VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[5] TUSHNET, Mark. Responding to David Landau, The Reality of Social Rights Enforcement. Harvard international law journal. April, 2012, vol. 53, pág.161.

[6] Após o julgamento do caso Brown II, os processos estruturais, enquanto técnica decisória adequada para solucionar litígios coletivos de elevada complexidade e conflituosidade foram utilizados nos Estados Unidos para a resolução de outros problemas estruturais, como na reforma de prisões e instituições de saúde mental. In: CASIMIRO, Matheus. Processo estrutural democrático: participação, publicidade e justificação. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 39.

[7] A título de exemplo, a ADPF 709 discute a saúde e subsistência dos povos indígenas; a ADPF 743 trata da gestão ambiental; ADPF 760 aborda o desmatamento ilegal da Floresta Amazônica; a ADPF 635 contesta a Política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro; a ADPF 973 trata do combate ao racismo estrutural e institucional; e a ADPF 976 aborda as condições desumanas de vida da população em situação de rua no Brasil.

[8] STF. ADPF 743. Disponível em: chrome extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15370052564&ext=.pdf

[9] TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Autores

  • é advogado da União na Advocacia-Geral da União (AGU), mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Direito Constitucional, Administrativo e Tributário pela Escola de Magistratura de Pernambuco (Esmape), membro do Tribunal de Prerrogativas da OAB-DF, triênio 2022-2024, membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC), atualmente lotado na Coordenação-Geral de Proativo e Processos Estruturais da Secretaria-Geral de Contencioso da AGU, que atua perante o Supremo Tribunal Federal, professor na Escola de Prerrogativas da OAB-DF e autor de obras jurídicas.

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