Constitucionalismo digital, democracia difusa e esfera pública
18 de setembro de 2024, 12h16
“A constância é contrária à natureza, contrária à vida. As únicas pessoas completamente constantes são os mortos.”
Aldous Huxley
O avanço das novas tecnologias da informação (TIC) e da inteligência artificial (IA) traz desafios inéditos para a compreensão do atual constitucionalismo democrático. Esfera pública virtual, constitucionalismo digital, ciberdemocracia, netizens, direitos digitais, sociedade digital de direitos fundamentais, governança cibernética etc. são termos cada vez mais comuns quando das discussões sobre o futuro do direito constitucional e da própria democracia. Há um assombro com a construção cognitiva das IAs cada vez mais assemelhadas às naturais e com a possibilidade de redução de nosso desenvolvimento cognitivo enquanto seres humanos [1], retroalimentada com aquilo que é divulgado por essa inteligência algorítmica. As fake news são um exemplo disso, comprometendo a real formação de uma vontade política democrática não manipulada, já que mesmo opiniões podem ser fake opinions [2], pois fundamentadas em uma falsa realidade, confundindo-se o direito à própria opinião com uma espécie de “direito aos próprios fatos”.
O constitucionalismo, tal como a democracia, é uma conquista da sociedade civilizada. E nesse novo ciclo digital, o direito constitucional enquanto conhecimento precisa ser um diagnóstico do que acontece com o fenômeno constitucional nesse contexto (teoria empírica), ao mesmo tempo em que tenta influenciar nessas transformações (teoria normativa), tendo como horizonte a defesa da democracia, dos direitos humanos e do Estado de direito.
É lugar-comum na teoria da constituição que o constitucionalismo e a democracia são fenômenos cujo início se dá na antiga Atenas. A experiência ateniense, por sua vez, influencia Roma, mas também as experiências modernas sendo o constitucionalismo britânico o primeiro a beber dessa fonte com seu modelo constitucional material não estrutural, até que viessem no século 18 as experiências constitucionais estadunidense e francesa com a grande novidade de estabelecerem em um documento codificado aquilo que chamam de constituição, algo até então disperso em normas de fontes variadas, ainda que o Reino Unido tenha trazido como novidade as suas célebres cartas de direitos fundamentais, a exemplo do Bill of Rights (1689).
No constitucionalismo liberal se consagra a democracia liberal clássica, calcada na legitimação do poder político através da democracia representativa, na estruturação racional desse poder com o sistema de freios e contrapesos, inspirado em Montesquieu, Locke, Hamilton e outros, e a previsão normativa de direitos e garantias fundamentais, correspondendo inicialmente aos direitos de primeira geração (individuais, civis e políticos).
Tudo isso é seguido no século 20 pelo constitucionalismo social do Welfare State. Aqui há mudanças paradigmáticas profundas, principalmente após a 2ª Guerra Mundial. Sem abandonar o ideário da democracia liberal clássica quanto ao aspecto político-estrutural, o constitucionalismo social reconfigura esta, fazendo com que o Welfare State estabeleça a inclusão dos direitos sociais, econômicos e culturais (segunda geração), a maior intervenção regulatória e proativa do Estado na economia para promoção de justiça social e o modelo de constituição prospectiva dirigente [3].
Já na segunda década do século atual, ao lado da expansão das TICs e da IA, dá-se também o advento de novos extremismos a partir de inúmeros paradoxos de uma democracia mais difusa e fragmentada.
Esfera pública clássica e narrativas de um constitucionalismo digital: autoridade humana x autoridade dos algoritmos do Big Data?
A noção articulada de esfera pública tem a ver com o debate das obras do filósofo alemão Jürgen Habermas que, em sua teoria da ação comunicativa explora a democracia deliberativa e suas condições de realização [4]. Porém, aqui adoto a definição de que esfera pública é o ambiente político no qual se dá o diálogo sobre os relevantes temas de interesse comum da sociedade civil. Em tal ambiente de discussão, ideias, ideologias, pessoas, informações etc. se apresentam em interação social, a partir de uma condição prévia de possibilidade que a democracia deliberativa permite, para que desta interação comunicativa tenhamos em tese as melhores decisões sobre o bem comum. Apresentam-se aí jogos de interesses, lobbies, negociações etc. que precisam ser procedimentalmente regulados para a busca de consensos básicos como condição de procedibilidade da democracia deliberativa a partir do debate público aberto.
Nesse contexto, a autoridade máxima em termos de legitimidade é a soberania do povo (autoridade humana, portanto), calcada essencialmente na democracia representativa, havendo, não obstante, concessões a formas de democracia direta/semidireta, a exemplo da previsão de plebiscitos/referendos e de participação popular.
Esse arquétipo construído ao longo de quase dois séculos e meio de constitucionalismo moderno passa por questionamentos teóricos em termos de funcionalidade ante novos discursos sobre democracia e exercício da soberania popular e a construção de concepções calcadas não em uma esfera pública com condições comunicativas plenas para a formação de uma vontade política legítima, mas em uma cujas distorções de acesso à informação provocadas pelos algoritmos do Big Data provoca a corrosão de consensos fundamentais ao funcionamento da democracia, em especial aqueles referentes às regras do jogo democrático e institucional e aos direitos humanos básicos.
Em verdade, essas distorções na esfera pública não são um fenômeno totalmente novo. Desde o fim do século passado, o desenvolvimento intenso de uma variedade de TICs e do aprimoramento da IA propicia mudanças em série na configuração da esfera pública. Em boa medida, esta se torna uma esfera pública virtual com uma cidadania desenvolvida mais digitalmente, com as deliberações online em vez de presenciais e com riscos de autoritarismos cibernéticos ante a permanente possibilidade de controles panópticos pelas TICs e IAs.
Ainda no início deste século, Cass Sunstein antevê como atua o netizen (que substitui o citizen, cidadã/o em sentido clássico) basicamente como alguém distanciado do mundo real palatável e imerso em um ciberespaço no qual escolhe o que quer ver em termos de notícias e informações, filtrando basicamente o que corresponde às suas próprias preferências, opiniões, ideologias etc., sem qualquer exposição a reflexões de outros tipos, o que na esfera pública clássica possibilita o diálogo e a deliberação genuinamente democráticos. Há uma personificação e individualização da vida para o netizen, que reduz a existência externa ao seu mundo virtual, sem a obrigação de conviver com as demais pessoas e sua inerente diversidade [5].
Sunstein foi profético lá trás, porém, não antecipou que a democracia se tornou difusa a um ponto em que mesmo as escolhas do netizen tendem a não ser livres ante o avanço das corporações privadas dominando as TICs e IAs de tal modo que torna secundário o objetivo de fazer do ciberespaço uma esfera pública virtual genuína e o deixa como uma multiplicidade de esferas baseadas em uma formação de vontade com (des)informações algoritmicamente pré-selecionadas, sem exposição ao contraditório e ao chamado “livre mercado de ideias”. Estados e empresas coletam e analisam dados sobre as pessoas com finalidades as mais diversas e com frequência pouco republicanas ou transparentes, por vezes ancorada no que Ilton Robl Filho chamou de “uso insincero do instrumental dos direitos fundamentais”, notadamente a liberdade de expressão [6].
Estar em “bolhas” deixa de ser algo voluntário e passa a ser um produto da potencial manipulação dessas tecnologias pelas grandes corporações, criando um ciberespaço direcionado aos interesses próprios delas em vez de se constituir como uma genuína esfera pública em rede digital. É a criação do “filtro-bolha”, que consiste na criação de um espaço de experiência virtual pasteurizada no qual são reduzidas as possibilidades do netizen ser exposto a perspectivas e análises que divirjam de sua própria percepção pré-estabelecida do mundo e da vida. O netizen não seria mais aquele descrito por Sunstein que ainda preservava alguma liberdade de escolha. Netizens da atualidade seriam desprovidos dessa liberdade, não obstante terem a ilusão de que ainda a possuem. E isso se faz possível pela personalização extrema viabilizada pelas técnicas de data-mining e big data, ou o uso dos famosos algoritmos [7].
A democracia tem na visibilidade, transparência e accountability, elementos essenciais à sua existência, tanto que os regimes autoritários trabalham com a ocultação de informações e a irresponsabilidade política dos mandatários. No entanto, com essas novas TICs e IAs, a ciberesfera tem se tornado um ambiente antidemocrático precisamente pelas relações assimétricas de poder, ausência de transparência e de controles por accountability, reforçando essas mesmas relações com a concentração delas nas mãos dos entes privados responsáveis pelo gerenciamento dos diversos sistemas operacionais de código fonte fechado, redes sociais e emails utilizados pela maioria dos indivíduos e corporações. As TICs e IAs têm sido, portanto, mais utilizadas como mecanismos de manipulação política e econômica do que como instrumentos de emancipação democrática.
Em verdade, apesar do panorama contemporâneo ser extremamente preocupante, não é uma completa novidade que novas tecnologias sejam motivo inicial de assombro pela sociedade logo quando são postas em circulação e até que as pessoas saibam utilizá-la adequadamente. Enquanto ferramentas, as TICs e IAs em si mesmas são neutras. Apesar de poderem ser utilizadas para aumentar o poder político e econômico daqueles que as controlam, podem por outro lado oferecer muito à democracia, como no caso dos portais da transparência ou de tecnologias que permitem aprofundar o conhecimento sobre a saúde da população e sua situação econômica. Do mesmo modo, a defesa de causas democráticas e dos direitos humanos também ganha uma nova dimensão no ciberespaço, já que permite a conexão global de ativistas digitais e a articulação na mesma dimensão de suas lutas e reivindicações [8].
Nesse contexto, o direito constitucional tem o enorme desafio de analisar essa realidade, tentando teorizar sobre essas novas perspectivas.
Constitucionalismo digital: temas e teorização
No estudo teórico do constitucionalismo digital, considero fundamentais algumas indagações:
1) É possível falar-se na existência de um constitucionalismo digital distinto efetivamente do constitucionalismo moderno “analógico” [9]?
2) Direitos e liberdades digitais seriam fundamentalmente diferentes daqueles em sentido clássico? Isso também pode ser dito em relação aos direitos de segunda e terceira gerações?
3) Os direitos digitais seriam uma nova categoria/geração de direitos fundamentais?
4) O direito ao acesso à educação digital não mais seria, como o direito à educação em geral, um direito de segunda geração por perpassar as gerações de direitos fundamentais sem pertencer a nenhuma delas de modo específico?
5) É possível afirmar que as constituições ainda protegem a privacidade ante essa vigilância orwelliana que as IAs e TICs viabilizam a governos e aos entes privados delas detentores?
6) Como falar em sistema de freios e contrapesos e limites ao poder político quando não somente o Estado, mas principalmente grandes corporações privadas (um novo “público não estatal”) possuem dados sobre os cidadãos e cidadãs numa proporção capaz de promover manipulações de suas vontades para fins não republicanos?
7) Até que ponto as decisões políticas e judiciais têm sido norteadas pelos desvirtuamentos causados pelas IAs e TICs quando alimentadas e programadas sem transparência para condicionar essas deliberações aos objetivos dessas mesmas corporações e daqueles que estas de algum modo dão sustentação, em uma retroalimentação de interesses sem filtros democráticos efetivos?
8) Quais os caminhos para uma governança pública e participação civil na internet ante os limites dados pelas empresas que armazenam tais dados e orientam as IAs para finalidades pouco transparentes e sem accountablity?
Há diversos estudos de direito constitucional já atentos a responder a essas e outras questões. Destaco o pioneiro trabalho de Lex Gill, Dennis Redeker e Urs Gasser, cuja primeira publicação foi em 2015. Segundo ele, seriam sete as categorias temáticas do constitucionalismo digital:
1) Direitos e liberdades fundamentais
2) Limites gerais ao poder do Estado
3) Participação civil e governança da internet
4) Direitos de privacidade e vigilância
5) Acesso à internet e educação digital
6) Abertura e estabilidade na rede
7) Direitos econômicos e responsabilidades
As categorias temáticas estabelecidas nos itens 3, 5 e 6 dizem respeito de modo direto ao constitucionalismo digital. A governança da esfera virtual precisa ser multissetorial com a participação ativa da sociedade civil, já que diz respeito ao compartilhamento de uma rede essencialmente pública, embora não estatal. O acesso à internet precisa ser amplo na perspectiva de inclusão digital, mas envolve também um processo educacional para que os cidadãos e cidadãs possam saber usar adequadamente os mecanismos dessas TICs. A segurança na rede para todas as pessoas que nela estejam também envolveria direitos digitais específicos, como a neutralidade da rede, a não discriminação e não fragmentação em razão do local ou da identidade pessoal, a interoperabilidade e transparência nos padrões cibernéticos a serem utilizados [10].
Há outras contribuições relevantes que pelo espaço do texto não conseguirei abordar. Mas é importante ter no horizonte que como teoria, o direito constitucional tem o papel de apontar com seu arcabouço conceitual possibilidades e limites jurídicos das relações entre essas fascinantes tecnologias e a construção histórica da democracia constitucional que nos permitiu avanços civilizatórios como sociedades civis organizadas. E, claro, na ideia também de preservar o fundamental da cultura constitucional evitando que TICs e IAs possibilitem a criação de totalitarismos digitais.
É nessa perspectiva que se insere a teorização do incipiente constitucionalismo digital.
[1] O neurocientista francês Michel Desmurget, diretor do Instituto Nacional de Saúde da França, apresenta preocupante pesquisa em relação à diminuição do desenvolvimento neural de crianças e jovens dessa “geração digital”, o que poderia ocasionar pela primeira vez em novas gerações com QI inferior ao das anteriores. Cf. https://www.bbc.com/portuguese/geral-54736513, acesso: 21/07/2023.
[2] Termo cunhado pelo jornalista Reinaldo Azevedo. Cf. https://reinaldoazevedo.blogosfera.uol.com.br/2019/04/23/lula-o-julgamento-2-fake-opinion-e-irma-gemea-e-critica-da-fake-news/, acesso: 08/08/2023.
[3] GALINDO, Bruno. Teoria intercultural da constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 48-58, 2006.
[4] NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, p. 114-115, 2006.
[5] SUNSTEIN, Cass. Republic.com. New Jersey: Princeton University Press, p. 3 et seq, 2001.
[6] https://www.conjur.com.br/2023-jul-08/observatorio-constitucional-direitos-fundamentais-democracia-constitucionalismo-digital/, acesso: 17/9/2024.
[7] MENEZES NETO, Elias Jacob; MORAIS, José Luís Bolzan de; ALVES, Fabrício Germano & GOMES, Igor da Silva. Accountability, transparência e assimetria das relações de visibilidade virtuais: análise dos aspectos antidemocráticos das novas tecnologias da informação e comunicação a partir da ideia de filtro bolha. In: Direito, Estado e Sociedade, nº 53. Rio de Janeiro: PUC/RJ, p. 63, 64,71, 2018.
[8] DANTAS, Miguel Calmon & CONI JR., Vicente. Constitucionalismo digital e a liberdade de reunião virtual: protesto e emancipação na sociedade da informação. In: Revista de Direito, Governança e Novas Tecnologias, v. 3, nº 1. Brasília/Florianópolis: CONPEDI, p. 55, 2017.
[9] https://www.conjur.com.br/2024-fev-09/algumas-aproximacoes-entre-constitucionalismo-digital-e-direitos-fundamentais/, acesso: 17/09/2024.
[10] GILL, Lex; REDEKER, Dennis & GASSER, Urs. Towards digital constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights. Berkman Klein Center for Internet & Society Research Publication, 2015.
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