Alíquota reduzida para plano de saúde de pets é surto coletivo institucionalizado
18 de setembro de 2024, 7h06
O projeto da regulamentação da reforma tributária aprovado na Câmara dos Deputados incluiu uma alíquota reduzida para plano de saúde de animais domésticos. Há, ainda, emendas do setor, na tramitação do PLP nº 68, de 2024, no Senado, para acrescentar ração animal na cesta básica nacional de alimentos, entre outras benesses.
O caso me lembrou as narrativas de reis enlouquecidos que doavam o patrimônio do povo para seus animais domésticos. A história se repete. Ora, não há nenhuma diferença entre conceder incentivos tributários aos animais domésticos (leia-se: por meio de recursos públicos) e considerar legítimo um rei doar grande parte do patrimônio do povo ao seu cachorro.
É a loucura, antes limitada à excentricidade da coroa, ampliada para o surto coletivo de uma geração, a qual, impotente em gerar um filho, recorre ao animal doméstico como um simulacro do verdadeiro amor.
Princípio da isonomia
Voltemos ao mundo jurídico. A concessão de um tratamento tributário diferenciado dessintoniza o princípio da isonomia ou da igualdade. Isso resulta em que a adoção de uma benesse fiscal deve ser baseada em critérios claros e pressupostos consistentes. Nessa medida, a doutrina, sob a lavra de Humberto Ávila [1], traça parâmetros importantes para a legítima diferenciação como, por exemplo, uma determinação constitucional; uma justificação entendida como demonstração de existência de correção para a distinção; uma não excessividade; uma finalidade adequada, entre outros.
Diante disso, observa-se que conceder desoneração massiva do plano de saúde prestado aos animais doméstico é medida inconstitucional por violação flagrante ao princípio da isonomia. Ora, primeiramente, não há nenhum amparo constitucional para justificar essa distinção. A propósito, a Constituição prestigia um sólido vetor voltado à proteção da vida humana e não de animais doméstico.
Em segundo lugar, a finalidade pretendida é a de propiciar acesso facilitado para os animais domésticos aos serviços de saúde. Esquecem, todavia, que 33 milhões de brasileiros [2] não têm acesso à água no nosso país e que 90 milhões de pessoas não têm acesso à coleta de esgoto.
Perda de receita
Por oportuno, dados colhidos na internet de apenas um grupo que fornece esse tipo de serviço, indicam uma receita bruta de R$ 50 milhões no 1º trimestre de 2023. E a projeção desse plano de saúde de animais doméstico é faturar R$ 650 milhões em 2025. [1]
Ora, em uma conta simples [2], se a alíquota de CBS e IBS, no valor cheio [3] e estimada em 28%, incidir sobre a receita bruta, de R$ 650 milhões, o montante arrecado apenas desse grupo empresarial seria algo em torno de R$ 182 milhões.
Com a redução de 30%, aprovada pela Câmara dos Deputados, o valor cairia para R$ 127 milhões, uma diferença de aproximadamente R$ 55 milhões. Caso ainda ocorra um aumento na redução para 60% da alíquota por pressão do setor, esse valor não arrecado subiria para R$ 110 milhões.
Para fins de comparação, estudos do Instituto Trata Brasil [6] demonstram que o Brasil investe em saneamento básico o equivalente a R$ 231,09 por habitante. Ou seja, a tributação, sem qualquer redução de alíquota, de apenas uma empresa deste grupo, resultaria na concretização de saneamento básico a 787 mil brasileiros.
Com a redução de 30%, deixa-se de atender aproximadamente 237 mil brasileiros. Se a redução for de 60%, deixa-se de atender 474 mil brasileiros. Isso considerando dados de apenas uma empresa.
Benefício fiscal ilegítimo
Desse modo, sob a régua comparativa, a finalidade propiciada por esse benefício fiscal é ilegítima e irrazoável. Frisa-se que renunciar a centenas de milhões de receita tributária em prol de cachorros e gatos é algo que atenta não só contra a igualdade tributária, como também contra a dignidade da pessoa humana, a qual terá recursos escassos previstos para concretização de direitos básicos canalizados para a manutenção de pets.
Outrossim, assevera-se que a diminuição da arrecadação oriunda da desoneração aos pets ainda propiciará majoração da alíquota referencial, o que atingirá duplamente todos os contribuintes “humanos” [7].
Por fim, se os tributos são o preço da liberdade, tudo leva a crer que os cachorros e gatos não são nossos filhos, e sim nossos senhores. Enquanto os computadores ficam cada vez mais artificialmente inteligentes, tornamo-nos dia após dia naturalmente escravos de seres despidos do sopro da vida.
[1] ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. Editora JusPODIVM e Editora Malheiros. São Paulo. 4ª Ed. 2021. Pgs. 202 e seguintes.
[2] Portal Agência Brasil. Falta de acesso à água potável atinge 33 milhões de pessoas no Brasil.
Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-03/falta-de-acesso-agua-potavel-atinge-33-milhoes-de-pessoas-no-brasil#:~:text=O%20documento%20foi%20elaborado%20a,pot%C3%A1vel%E2%80%9D%2C%20destaca%20Luana%20Pretto. Acesso em 13 de setembro de 2024.
[3] Revista Veja. Empresa de planos de saúde para animais de estimação fatura alto no país. Disponível em https://veja.abril.com.br/coluna/radar/empresa-de-planos-de-saude-para-animais-de-estimacao-fatura-alto-no-pais. Acesso em 13 de setembro de 2024.
[4] Nesse ponto, para fins de simplificação do cálculo, desconsidera-se reduções na base de cálculo.
[5] Destaca-se que, se o texto aprovado na Câmara dos Deputados não for alterado, os planos de saúde de animais domésticos ainda terão uma redução de alíquota de 30%.
[6] Instituto Trata Brasil. 16ª edição do Ranking do Saneamento com o foco nos 100 municípios mais populosos do Brasil. Disponível em https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2024/04/Release-Ranking-do-Saneamento-de-2024-TRATA-BRASIL-GO-ASSOCIADOS-V2.pdf. Acesso em 14 de setembro de 2024.
[7] Destaca-se que, no PLP nº 68, os serviços prestados por médicos veterinários já possuem alíquota reduzida de 30%, pois se enquadram como atividade intelectual, assim como ocorre com advogados. A crítica aqui exasperada é em relação a grupos bilionários que exploram atividades voltadas aos Pets.
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