STF e a 'pandemia de incêndios e secas na Amazônia e no Pantanal'
17 de setembro de 2024, 9h19
No último domingo (15/9), o ministro Flávio Dino reconheceu haver uma “‘pandemia’ de incêndios e secas na Amazônia e no Pantanal” nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 743 (APDF 743/DF). A decisão se assumiu inserida em um “processo estrutural climático”, havendo se embasado no artigo 139, IV do Código de Processo Civil.
De saída, chama a atenção o emprego superlativo da palavra pandemia, que traz consigo a dimensão de adoecimento imprevisível e global. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), “pandemia é a disseminação mundial de uma nova doença e o termo passa a ser usado quando uma epidemia, surto que afeta uma região, se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa”.
Muito embora haja consequências planetárias em termos de agravamento da crise climática, o mal-estar ambiental brasileiro não pode ser equiparado ao conceito sanitário de pandemia, porque não é propriamente uma novidade, tampouco se replica uniforme e intersubjetivamente pelo resto do mundo.
Trata-se, obviamente, de uso retórico da palavra que mobiliza a memória recente da emergência de saúde pública de interesse nacional da Covid-19 (Espin essa que encerrou em 22 de abril de 2022 como se pode ler aqui.
As ações e omissões estatais na prevenção e no controle de incêndios e desmatamentos nos biomas da Amazônia e do Pantanal não só são previsíveis, como também são recorrentes. Apenas para ficar na chamada “pauta verde” julgada pelo Supremo Tribunal Federal ao longo do primeiro semestre deste ano, a ADPF 760 e a ADO 54, bem como as ADPFs 743, 746 e 857 são ações nas quais a Corte já havia determinado, há poucos meses atrás, um “plano de prevenção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, que abarque medidas efetivas e concretas para controlar ou mitigar os incêndios que já estão ocorrendo e para prevenir que outras devastações dessa proporção não sejam mais vistas”.
A bem da verdade, a devastação ambiental é problema antigo, cujo agravamento tem escalado patamares alarmantes, sem que a resposta estatal tenha sido proporcional. Pelo contrário, ao longo dos anos, tem havido um crescente constrangimento fiscal das dotações orçamentárias dos órgãos ambientais, como se pode ler nas notícias a seguir arroladas (aqui, aqui, aqui e aqui).
Solução provisória para gestão que se ocupa apenas de apagar incêndios
Não cabe, portanto, imaginar que a resposta estrutural ao problema ambiental brasileiro passe apenas pelo afastamento circunstancial e no curto prazo de determinados constrangimentos administrativos e fiscais que impediriam a contratação de brigadistas temporários, quando se está diante de uma atuação estatal que quase sempre se ocupa apenas de apagar incêndios já instalados.
A solução oferecida é emergencial, mas francamente tende a se reiterar no tempo como paliativo insuficiente e inepto, caso não haja uma correlata e ampla reflexão das causas da aventada “pandemia de incêndios e secas na Amazônia e no Pantanal”.
Nos seus estreitos limites, a ADPF 743 buscou equalizar valores constitucionais que o Ministro anunciadamente reputou conflagrados: “a saber: (i) impessoalidade na Administração Pública; (ii) responsabilidade fiscal; e (iii) proteção eficiente ao meio ambiente.”
Sem indagar acerca da falta de quadro de pessoal permanente e de equipamentos adequados, bem como acerca da descontinuidade histórica do orçamento dos órgãos ambientais brasileiros, submetidos a contingenciamentos e a esvaziamentos políticos sazonais, a decisão do ministro Flávio Dino pragmaticamente refutou três impedimentos ocasionais arrolados pela Advocacia Geral da União:
“a) a incidência ou não de interregno para possibilitar a recontratação de servidores temporários, no âmbito do IBAMA e do ICMBIO, destinados ao combate às emergências climáticas verificadas no Brasil;
b) as condições em que o Poder Executivo pode fazer a abertura de créditos extraordinários visando ao atendimento das despesas de proteção ao meio ambiente e às populações atingidas pelas emergências climáticas;
c) as providências investigatórias e sancionatórias em curso;”
Para tanto, houve o reconhecimento de um “quadro fático indutor de medidas excepcionais e imediatas, em face dos incêndios florestais e secas dos rios da Amazônia e do Pantanal, com enormes impactos econômicos, fiscais e sociais”, hipótese que, segundo o ministro Flávio Dino, equivaleria “às recentes enchentes no Rio Grande do Sul, que redundaram em intensas medidas de socorro e reparação”.
Em busca de resposta imediata, a decisão do STF do último domingo na ADPF 743 chamou para si a condição de “controle prático da constitucionalidade das ações e omissões relativas à emergência climática configurada”. Talvez a expressão mais clara do que seria esse aventado controle “prático” de constitucionalidade em sede de ADPF resida precisamente na seara orçamentária.
No caso concreto, não bastava autorizar a abertura de crédito extraordinário para fazer face às despesas emergenciais trazidas pela “pandemia de incêndios e secas”. Era preciso também refutar a incidência do §7º do artigo 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal, acrescido pela Lei Complementar 200/2023, que veda que a lei de diretrizes orçamentárias exclua despesa primária da apuração da meta de resultado primário.
Caso tal deliberação não fosse claramente tomada, haveria o constrangimento reverso das demais políticas públicas a cargo do Executivo federal, com o contingenciamento de outras despesas para fosse cumprida a meta de resultado primário de 2024.
Daí se explica porque o ministro Flávio Dino considerou que “sob a perspectiva de conflito entre valores constitucionais (Responsabilidade Fiscal e Responsabilidade Ambiental), deve-se fazer preponderar aquele que possui o maior risco de extinguir-se irremediavelmente, qual seja, o Meio Ambiente e a Vida das populações afetadas”.
De forma perspicaz, a decisão do STF comparou os custos econômicos da crise climática — em sua dimensão imediata de incêndios e secas — com os impactos fiscais dos créditos extraordinários, suscitando que:
“as consequências negativas para a Responsabilidade Fiscal serão muito maiores devido à erosão das atividades produtivas vinculadas às áreas afetadas pelas queimadas e pela seca do que em decorrência da suspensão momentânea, e apenas para estes últimos quatro meses do exercício financeiro de 2024, da regra do § 7º do art. 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal.”
Desse modo, foi autorizada não só a contratação de brigadistas temporários sem limites temporais na eventual hipótese de renovação de vínculo; como também houve a autorização para, “a critério do Poder Executivo, a abertura de créditos extraordinários, sem a aplicação do contido no § 7º do art. 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal, introduzido pela Lei Complementar nº 200/2023, isto é, sem cômputos para tetos ou metas fiscais”.
Tal permissivo, obviamente, não configura salvo-conduto em face do controle do Poder Legislativo, em relação ao exame da matéria na fase de conversão da medida provisória em lei; tampouco afasta a incidência das regras de transparência e rastreabilidade dos recursos públicos, como bem lembrado pelo ministro Flávio Dino.
Desatando estruturalmente as mãos do Estado brasileiro na seara ambiental
Ao final e ao cabo, o remédio oferecido para a “pandemia de incêndios e secas” foi a abertura de uma brecha temporal para, tanto quanto possível, “desatar totalmente as mãos do Estado brasileiro, a fim de ampliar a proteção à economia, à nossa produção e ao comércio internacional, e — sobretudo — às populações diretamente atingidas por secas e queimadas na Amazônia e no Pantanal”.
Essa fundamentação até pode ser adequada para o curto prazo. Porém, tal como a solução da pandemia da Covid-19 foi a oferta em larga escala de vacina que imunizasse coletivamente a sociedade contra o vírus, há de haver a efetiva cobrança, primordialmente, de “plano específico de fortalecimento institucional do Ibama, do ICMBio, da Funai e outros órgãos envolvidos na defesa e proteção do meio ambiente”.
Tal fortalecimento demanda mais do que o mero permissivo de abertura de créditos extraordinários. Em verdade, é preciso que seja, de fato, vedado o contingenciamento orçamentário em relação às rubricas ambientais, como determinado pelo próprio STF nos autos da ADPF 760.
Afinal, como bem concluiu o ministro Flávio Dino, “não podemos negar o máximo e efetivo socorro a mais da metade do nosso território, suas respectivas populações e toda a flora e fauna da Amazônia e Pantanal, sob a justificativa de cumprimento de uma regra contábil não constante na Carta Magna, e sim do universo infraconstitucional.”
Enfim, o norte que se avizinha para o debate orçamentário deferente à máxima eficácia dos direitos fundamentais é o de colocar as regras fiscais no seu devido lugar. Ao contrário do que usualmente “o” mercado sustenta, regras fiscais não estão acima da Constituição, mas, ao invés disso, submetem-se ao ordenamento constitucional vigente.
Por mais óbvio que pareça aos operadores do Direito, é preciso reafirmar para economistas, contadores e quaisquer outros analistas das contas públicas, que não é a Constituição que deve caber no orçamento, mas é esse que só é legítimo à luz daquela.
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