O Direito de Schrödinger: sobre a execução automática da pena pelo Tribunal do Júri
17 de setembro de 2024, 16h09
O leitor mais fã de ciência certamente conhece o cientista Erwin Rudolf Josef Alexander Schrödinger. Nascido em 12/8/1874, notabilizou-se como um dos pais da mecânica quântica.
O mundo quântico apresenta fenômenos que para nós seriam considerados assustadores, e um dos mais famosos ficou conhecido como “O gato de Schrödinger”. Criado em 1935, esse experimento mental serve para demonstrar os efeitos da mecânica quântica. Há um gato dentro de uma caixa e a vida deste gato depende de uma determinada partícula subatômica. Somente saberemos se o gato está vivo ou morto após a abertura da caixa.
Antes que o leitor abandone a leitura deste artigo se perguntando se a página da ConJur fora hackeada por algum físico brincalhão (e eles existem), devo alertar que este texto se refere à execução automática da pena pelo Tribunal do Júri a partir da decisão do STF.
O Supremo Tribunal Federal julgou recentemente sobre a constitucionalidade do artigo 492, I, e, que estabelece que em caso de sentença penal condenatória o juiz mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.
Provavelmente o leitor já leu uma centena de textos sobre o tema desde que ele fora levado a julgamento perante o STF. Desejo, contudo, fazer outra abordagem e peço que o leitor me acompanhe nela.
Primeiro, pretendo demonstrar que o Supremo se mostrou coerente com parte de sua visão acerca de seu papel frente à sociedade. Depois pretendo demonstrar que o STF foi incoerente com base em julgamento anterior seu. Por fim, pelo acerto ou pelo erro, pretendo demonstrar que o STF é um reflexo do sistema jurídico e do que ele se transformou nas últimas décadas.
Vale lembrar que o STF decidiu pela técnica da “interpretação conforme” para definir que em caso de condenação a pena privativa de liberdade pelo Tribunal do Júri ela deverá ser cumprida imediatamente, independentemente da quantidade da pena. O STF baseou-se neste julgamento na garantia da soberania dos veredictos.
Antes de demonstrar as (in)congruências do STF, registro aqui minha posição sobre o tema. Nossa Suprema Corte baseou-se em premissa equivocada a respeito da soberania dos veredictos na medida em que a é ela em primeiro lugar uma garantia do acusado. Trata-se da garantia de que será julgado por seus pares e não por um juiz togado.
Trata-se de garantia tão importante e que por vezes não se tem corretamente sua conceituação. Afinal de contas como se define a soberania dos veredictos? Podemos em poucas palavras defini-la como a intangibilidade da decisão dos jurados.
Não poderá o juiz togado por si ou de forma colegiada alterar o mérito da decisão dos jurados. Se os jurados condenaram o Tribunal de Justiça não poderá absolver e vice-versa.
Há duas atenuações à alteração do mérito da decisão dos jurados pelos juízes togados: 1) em caso de Revisão Criminal o Tribunal poderá absolver diretamente o condenado; 2) caso a decisão dos jurados seja manifestamente contrária à prova dos autos então o tribunal ao dar provimento ao recurso de apelação irá determinar a submissão do réu a novo julgamento.
A soberania dos veredictos não se confunde com a imposição imediata da pena. Enquanto os jurados decidem sobre o fato, quem decide sobre a pena é o juiz presidente do Tribunal do Júri. E, sendo pena, ela só pode ser imposta após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória sob risco de violação da presunção da inocência.
Desta forma, com a devida vênia, a decisão do STF que determinou a execução imediata da pena baseada na soberania dos veredictos é um equívoco, seja por não se relacionar com a soberania dos veredictos, seja por violar a presunção de inocência.
(In)coerência do STF
O Supremo Tribunal Federal foi coerente com suas decisões anteriores quando entende que entre suas funções está a função iluminista. Ou seja, o STF entende que é sua função estimular a história a avançar no país.
Ao assim entender o Supremo acaba por tomar decisões e fazer juízos de conveniência e oportunidade que são próprios e típicos do legislador e não do julgador. Enquanto o julgador deve lidar com conceitos como constitucional e inconstitucional, legal ou ilegal; incidência ou não incidência, o político deve lidar em especial com conceitos como conveniente e oportuno em oposição a inconveniente e inoportuno.
A título de exemplo, o STF exerceu esse tipo de juízo próprio do mundo político quando do julgamento do juiz das garantias ao estabelecer interpretação conforme para fixar que caberia ao juiz da instrução receber a denúncia e não ao juiz do processo.
Desta forma, quando no julgamento vemos manifestações dos ministros no sentido de combate a esta ou a aquela forma de criminalidade nossa Suprema Corte mostra-se coerente com seus julgamentos anteriores.
No entanto, o STF também se mostra incoerente com seus julgamentos anteriores. Na verdade, mais especificamente com o julgamento da ADPF 347 que reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário nacional.
Nesta ADPF de 4/10/2023, o STF reconheceu a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro e que é responsável pela violação massiva dos direitos fundamentais do preso.
Não se tem ainda ideia de números absolutos, mas uma coisa é clara: o mesmo Supremo que reconhece a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário é também o STF que toma decisão que irá aumentar em muito o número de presos deste sistema carcerário.
Estas congruências e incongruências são próprias da atividade legislativa, mas não deveriam ser próprias dos julgamentos do Poder Judiciário. Afinal de contas a segurança jurídica e a estabilidade dos julgamentos é um reclamo ordenado pelo Código de Processo Civil.
Quando o STF se afasta da legalidade e se utiliza de argumentos próprios das proposições legislativas passamos a ter confusão de signos: o jurídico e o político se entrelaçam e aí as críticas podem deixar de serem jurídicas e se tornarem políticas.
O Direito, que antes deveria ser objeto de previsibilidade e análise sob o escrutínio próprio da legislação e da Constituição, passa a ser analisado também sob o influxo da lógica da maioria, típica e própria da atividade parlamentar.
Sobre responsabilidade compartilhada e destino dos gatos
Longe de se pensar que este tipo de pensamento é algo próprio e exclusivo do Poder Judiciário devemos voltar os olhos para a doutrina. De há muito tem-se elevado o papel dos princípios em nosso ordenamento.
É dizer: parcela da doutrina, quando discorda de algum dispositivo legal, encontra algum fundamento constitucional para justificar a inconstitucionalidade do dispositivo. Da mesma forma, quando o sistema não prevê algo que considera relevante também encontra sua previsão decorrente de algum princípio.
Os vícios que creditamos ao Supremo Tribunal Federal também está em nós, doutrinadores quando não admitimos um espaço legítimo de exercício da atuação legislativa.
Quando estudante de Direito, ouvia muito os professores dizerem que “de lege ferenda” seria melhor modificar a lei para esta ou aquela direção. Perdemos esse espaço em prol de aplicação hiperbólica dos princípios e reclamamos quando o STF faz o mesmo mas não segue o que desejamos.
Este tipo de posição hoje acaba se expandindo para todos os operadores do Direito. Precisamos admitir que há um espaço válido de atuação do legislador pois sua atuação também é elemento integrante da democracia.
Caso nos afastemos deste tipo do espaço jurídico e permaneçamos no espaço das escolhas políticas, não se conseguirá prever os resultados, notadamente com o afastamento da função contra majoritária dos direitos humanos.
O Direito, assim como o gato de Schrödinger, passa a ter sua existência dependente do momento em que aberta a caixa ou, no caso, do momento em que se encerra o julgamento. Não parece, nem para o gato, nem para o Direito, a melhor opção.
Bibliografia sugerida para se aprofundar mais:
BARROSO, Luis Roberto. Sem data vênia: um olhar sobre o Brasil e o mundo. Editora História Real, 2020
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e Direitos Fundamentais. Saraiva Jur, 2018
MARINONI, Luiz Guilherme. Fatos constitucionais?: A (des)coberta de uma outra realidade do processo. Thomson Reuters, 2024
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