Opinião

Chamar alguém de extrema-direita de 'fascista' não configura crime contra honra

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  • é professor de Direito Penal e Direito Penal Internacional mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba) e advogado integrante do Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia.

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17 de setembro de 2024, 17h18

“o fascismo, na sua forma mais pura, é o somatório
de todas as reações irracionais do caráter do homem médio”
Wilhelm Reich (1897-1957)

Crianças ‘malham’ boneco de Benito Mussolini em Milão, na Itália

Um dos temas mais candentes do Direito contemporâneo tem sido o embate entre a liberdade de expressão e a criminalização de certas condutas que podem ofender a honra de alguém, colocar em perigo as minorias e grupos vulneráveis (discurso de ódio) ou gerar perigo coletivo (como a incitação de crimes).

Na atual conjuntura de reascensão do fascismo, torna-se muito comum em debates políticos que um dos contendores se dirija ao defensor da ideologia de extrema direita chamando-o de “fascista”, como forma de denunciar a serviço de qual orientação política se coloca aquele que promove discurso de ódio, que defende chacinas cometidas por policiais, perseguição a movimentos sociais ou massacres contra os trabalhadores e trabalhadoras, por exemplo.

Não se descuida que há um grande debate nos círculos acadêmicos sobre a delimitação do conteúdo político do nazifascismo e se é possível sua reprodução hoje, na mesma medida dos seus movimentos que varreram a Europa na primeira metade do século 20 e que tiveram ecos na América Latina.

Contudo, certo é que, na atual quadra histórica da sociedade capitalista, as bases econômicas e sociais que deram origem ao nazifascismo europeu e o fascismo latino-americano estão ainda mais profundas, permitindo que líderes políticos que representam os interesses do capital aticem o fogo do fascismo tanto quanto se faça necessário para frear a organização da classe trabalhadora e garantir que o sistema econômico exploratório siga seu curso.

A partir da análise de como funciona a sociedade capitalista e os interesses em contraposição (os do capital versus o da classe trabalhadora), o professor Mauro Iasi propõe uma definição inicial do fenômeno do fascismo:

“O fascismo é, na sua essência, uma expressão política da crise capitalismo em sua fase imperialista e na etapa do domínio dos monopólios, como define Leandro Konder (Introdução ao fascismo, São Paulo, Expressão Popular, 2009). Ele disfarça sob uma máscara modernizadora seu conteúdo conservador, sendo antiliberal, antissocialista, antioperário e, principalmente, antidemocrático. A dificuldade do fascismo reside exatamente em juntar esses dois aspectos contrários em sua síntese – isto é, uma intencionalidade a serviço do grande capital (imperialista, monopolista e financeiro) e uma base de massas que permita apresentar seu programa reacionário como alternativa para a ‘nação’” [1].

Para o professor Ricardo Plazas Neisa, “desde o seu aparecimento, o fascismo tornou-se um mecanismo moderno de defesa dos interesses da burguesia monopolista face à crise, à luta de classes e à competição no processo de centralização e concentração do capital. Isto se torna congênito ao desenvolvimento do capital em sua fase madura: imperialista e monopolista, e se manifesta de diversas formas de acordo com as formações econômico-sociais e o desenvolvimento histórico das relações sociais sob o comando do capital”.

“Outro elemento em que o fascismo se expressa é a atribuição a um princípio sagrado. No caso italiano do início do século 20, a pátria constituía aquele eixo sagrado capaz de concentrar o irracionalismo do relativismo absoluto (KONDER, 1977) nas ações das próprias massas trabalhadoras contra si mesmas. Um dos casos mais recentes é a campanha eleitoral de Bolsonaro que proclamou: ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de tudo’. A relação entre pátria e religião caracterizará esse princípio sagrado em que o sangue de todos os que são diferentes começou a ser derramado. As duas últimas características do fascismo que se desenvolvem no curso do avanço reacionário na América Latina são a retórica agressiva. apoio para encobrir a falta de conteúdo e atacar setores sociais específicos: comunidades LGBTI, afrodescendentes, povos indígenas, mulheres, comunistas, etc. E a manipulação do quotidiano através dos meios de comunicação que desempenham o mesmo papel de condicionar os mecanismos comandados por Goebbels na Alemanha nazi.” [2]

Portanto, o fascismo, ou nazifascismo, constitui movimento político que se engendra das contradições da sociedade capitalista, bem como se constata que sua violência se intensifica em épocas de crise do capital.

Manifestação legítima

No Brasil, recentemente a crise econômica e do sistema político trouxe um campo fértil para a reorganização dos movimentos fascistas, os quais têm atiçado suas hostes contra as minorias, os movimentos sociais, a intelectualidade progressista, sindicatos, diretórios acadêmicos, os artistas, defensores dos direitos humanos, ativistas ambientais e até mesmo os defensores dos valores liberais, vistos pelos fascistas como expressão da decadência cultural.

Sob o pretexto de “fazerem uma limpa no sistema político corrupto”, as organizações fascistas escolhem seus bodes expiatórios e incitam a violência de maneira escancarada, tudo com a finalidade de servir aos interesses exploratórios do capital.

Nesse cenário, denominar de “fascista” ou “nazista” quem se filia a esse movimento é manifestação política legítima por quem denuncia o grau de violência dessa ideologia. Em outras palavras, o chamamento de alguém de “fascista” ou “nazista” com a finalidade de denúncia política não configura crime algum, por ser legítimo exercício de direito previsto no artigo 5º, IV, da Constituição.

Em caso recente julgado pela Justiça espanhola [3], decidiu-se que chamar um partido político de “fascista” ou “nazista” como exercício de crítica à ideologia encampada por dada organização está albergado pela garantia constitucional da liberdade de expressão. Tratava-se de acusação formulada pelo partido espanhol de extrema direita Vox contra um jornalista que publicou tuítes em que chamava o referido partido de “nazi” e “fascista”.

De acordo com a decisão, não se pode criminalizar o discurso na cena pública se o agente não tem finalidade ilícita de promover ameaças, de menosprezar ou injuriar, ou seja, de gerar um risco contra quem é dirigido. A denúncia ao cariz ideológico fascista de quem se coloca na cena política como defensor da extrema direita é, portanto, exercício legítimo de liberdade de expressão.

‘Nazistinha’

No Brasil, em decisão acertada, em sede de reclamação constitucional perante o Supremo Tribunal Federal [4], o ministro Barroso concedeu liminar a favor do jornalista Leonardo Attuch mandando restabelecer publicações na rede social X (que haviam sido suspensas por juiz de primeira instância), em que chamava Felipe Martins, então assessor de Bolsonaro, de “nazistinha” por conta de ter feito, nas dependências do Senado e em sessão transmitida via televisão e internet, gesto utilizado por movimentos extremistas com simbologia ligada à ideia de supremacia branca [5].

A decisão vai no mesmo sentido daquela exarada pela Justiça espanhola: deve-se verificar a periculosidade do discurso a fim de justificar a sua possível criminalização. O ministro Barroso menciona algumas hipóteses de verificação para se atestar a periculosidade que possa sustentar a lesividade da conduta e torná-la passível de punição, tal como ocorre com “(i) terrorismo, (ii) pedofilia, (iii) incitação ao crime e à violência, (iv) ameaças e ataques às instituições democráticas, (v) discursos de ódio e (vi) anticientificismo que coloque em risco a vida e à saúde das pessoas, entre outros”.

Caso Carla Zambelli

A partir do critério da periculosidade do discurso, é possível analisar o caso do jornalista Luan Araújo, um homem negro, que após ter sido perseguido e ameaçado com uma arma de fogo pela deputada federal Carla Zambelli, em plena via pública, foi condenado em primeira instância por crime de difamação porque se dirigiu à extremista em uma publicação como uma pessoa que “segue com uma seita de doentes de extrema-direita que a segue incondicionalmente e segue cometendo atrocidades atrás de atrocidades” [6].

O jornalista apenas denunciou o cariz ideológico extremista da deputada (que é público e notório, como se observam de seus discursos e perfis nas redes sociais), sem colocá-la em perigo e sem gerar risco coletivo, o que torna legítimo o exercício da sua liberdade de manifestação. Além disso, a lesividade à honra da deputada não está presente, já que ela mesma deu ensejo à crítica por parte da vítima que sofrera perseguição por Zambelli, que, em ato de total desprezo às regras civilizadas de convivência social, apontou-lhe uma arma, em via pública e em frente às câmeras.

Ora, a sua ideologia extremista se converteu em ato violento, o qual merece repúdio por qualquer pessoa comprometida com a manutenção de um espaço de convivência democrática. Não se pode exigir tolerância com fascistas.

Incitação e injúria

Em situação diversa, está o ataque misógino promovido pelo então deputado federal e representante da extrema direita Jair Bolsonaro contra a deputada federal Maria do Rosário (PT), em que cometeu crime de incitação ao estupro e crime de injúria, quando disse, em dezembro de 2014, durante discurso no Plenário da Câmara dos Deputados, que a deputada “não merecia ser estuprada”, pois seria “muito feia” [7].

Nesse caso, tem-se a nítida presença do elemento da periculosidade do discurso, uma vez que quem o promove visa a menosprezar a interlocutora (“não merecia ser estuprada porque é feia”), ao mesmo tempo em que publicamente fomenta a violência sexual contra as mulheres ao usar da ameaça de estupro como corretivo (isso num dos países mais violentos para as mulheres [8]).

Denúncia política

Jacson Zilio, em artigo publicado na ConJur, sustenta que

“a razão da punição está necessidade de evitar os efeitos perversos que o método odioso de agressão tem na configuração de uma sociedade democrática e na dignidade dos indivíduos que integram as coletividades vítimas. O traço definidor reside na capacidade de atentar contra bens jurídicos relevantes que protegem, direta ou indiretamente, a própria dignidade humana. Por um lado, nas situações dos níveis individual e grupal, porque a ação lesiona a dignidade pessoal (no sentido de condição de existência do indivíduo e, portanto, da própria ordem jurídica) e da função social destinada à pessoa. Por outro lado, nas situações do nível institucional, porque a ação fragiliza as normas penais que buscam assegurar aos cidadãos, por meio das instituições que as aplicam, uma coexistência livre e pacífica, garantindo, ao mesmo tempo, o respeito aos direitos humanos. Não se trata, portanto, de proteção de meros substratos de sentido de natureza ideal, mas, sim, entidades reais, dado que são apreensíveis pelos sentidos e constituem ‘pressupostos imprescindíveis a vida social’, como dados ou finalidades necessárias para o livre desenvolvimento dos indivíduos ou para o funcionamento do sistema estatal erigidos para consecução de tal fim” [9].

Deve-se ter em vista, portanto, a periculosidade do discurso a fim de se verificar se o Direito Penal poderia intervir de maneira legítima.

Considerando o caráter fragmentário do Direito Penal e a proteção constitucional da liberdade de expressão, bem como os limites que lhe são impostos pela ordem democrática, o chamamento de alguém de “fascista” ou “nazista”, notadamente quando o destinatário compartilha da ideologia extremista de direita, e tendo como finalidade a denúncia política, não configura crime algum e representa legítimo exercício direito de manifestação política, protegida pelo artigo 5º, IV, da Constituição, e pelos artigos 13 do Pacto de San José da Costa Rica de 1969 e 19 do Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU de 1966, ambos devidamente ratificados pelo Brasil.

 


[1] https://blogdaboitempo.com.br/2018/06/04/a-psicologia-de-massas-do-fascismo-ontem-e-hoje-por-que-as-massas-caminham-sob-a-direcao-de-seus-algozes/

[2] Em Projeto ético-político do serviço social no contexto do avanço do ultraconservadorismo.  Revista Praia Vermelha: estudos de política e teoria social. Periódico científico do programa de pós-graduação em Serviço Social da UFRJO, vol. 29, n. 2, 2019, páginas 620-638.

[3] https://www.lamarea.com/2021/11/24/la-justicia-recuerda-que-llamar-fascista-o-nazi-a-un-partido-forma-parte-de-la-libertad-de-expresion/

[4] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=475456&ori=1

[5] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/11/6651658-juiz-revoga-absolvicao-de-ex-assessor-de-bolsonaro-por-gesto-racista.html

[6] https://www.conjur.com.br/2024-jun-07/juiz-condena-jornalista-perseguido-por-carla-zambelli-por-difamacao/

[7] https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-09/bolsonaro-vira-reu-por-incitacao-ao-crime-de-estupro

[8] https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-03/cada-24-horas-ao-menos-oito-mulheres-s%C3%A3o-vitimas-de-violencia

[9] https://www.conjur.com.br/2021-set-15/zilio-limites-penais-direito-liberdade-expressao/

Autores

  • é professor de Direito Penal e Direito Penal Internacional, mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba, membro da Comissão de Assuntos Legislativos do Conselho da Comunidade de Curitiba e advogado integrante do Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia.

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