THC-2: entre a agência e o Cade, quem decide?
16 de setembro de 2024, 12h09
Regulação e concorrência
É notório que o Estado deixou de estar diretamente presente ou, pelo menos, diminuiu sua presença em determinadas atividades econômicas, em razão de processos de privatização e desestatização [1].
Nessas circunstâncias, o Estado não participa do mercado como um agente econômico, mas o fiscaliza e o regulamenta. São os chamados mercados regulados, nos quais as agências reguladoras exercem importante papel.
Além delas, a Lei 12.529/2011 atribui ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) a função de zelar pela livre concorrência, através da investigação e da decisão sobre a prática de infrações à ordem econômica e a aprovação de atos de concentração.
Enquanto as agências atuam de modo verticalizado sobre um mercado específico (e.g. energia elétrica, petróleo e gás, telecomunicações, transportes terrestres, transportes aquaviários), o Cade opera horizontalmente sobre quaisquer mercados, em decorrência do amplo escopo da Lei de Defesa da Concorrência (LDC) [2].
Essa sobreposição de atribuições, especialmente no que tange à política concorrencial, deve ser orientada pela lógica de cooperação institucional, nos termos do artigo 25 da Lei n. 13.848/2019. Todavia, nem sempre as agências e o Cade estão alinhados.
Na perspectiva do controle de condutas, é possível que determinada prática seja considerada lícita pela agência, mas ilícita pela autoridade concorrencial. O inverso também é possível.
De modo similar, sob a ótica do controle de estruturas, a própria LDC admite que pode haver divergência entre a agência e o Cade a respeito da aprovação ou rejeição de um ato de concentração (artigo 65, inciso I).
Se, sob o aspecto democrático, esses diferentes entendimentos podem ser benéficos, demonstrando o exercício de freios e contrapesos (checks and balances), de outro, sob o viés dos particulares que atuam nesses mercados, agir de modo lícito em suas relações jurídicas pode se tornar um desafio.
Caso da THC-2 no mercado de transportes aquaviários
THC-2 é uma taxa de movimentação adicional que vem sendo cobrada pelos terminais portuários na hipótese de o importador ou dono da carga desejar realizar o processo de desembaraço aduaneiro em porto seco (RAI), e não no terminal à beira-mar (molhado).
“Quando um produto chega ao país por via portuária […], há um comprador ou importador (dono da carga), há a empresa ou o responsável por fazer o transporte marítimo do produto até o porto (armador), há um operador portuário com contrato de arrendamento com o poder público (opera em um terminal ao lado do navio, na zona primária ou zona molhada) que retira a carga de dentro do navio e a coloca em pilhas, armazenada, até que ela possa ser entregue ao seu dono ou importador.” [3]
A carga só será entregue ao destinatário após ser nacionalizada, com o cumprimento dos trâmites aduaneiros. Até a completude dessa etapa, o importador paga pela armazenagem, e esse processo é feito por um recinto alfandegado, área demarcada onde ocorre a movimentação, armazenagem e despacho aduaneiro de cargas procedentes do exterior, no caso de uma importação, sob o controle do fisco [4].
Até a década de 1980, toda essa operação ocorria na zona primária do porto (inicialmente, operada pela companhia de docas, e, posteriormente às privatizações, pelos terminais portuários). Com a instituição do recinto alfandegado independente (RAI), o dono da carga ou importador passou a ter duas opções de armazenagem até a nacionalização da carga:
(i) o próprio operador do terminal portuário, a quem cabe retirar a carga da embarcação e colocá-la no pátio e
(ii) o chamado recinto alfandegado independente (RAI), que opera na zona secundária ou em área interna ao porto (o chamado porto seco) [5].
É nesse contexto que surge a discussão sobre a legalidade da THC-2.
Quando o importador ou dono da carga decide pelo armazenamento no terminal portuário (molhado), a prestação dos serviços de movimentação de contêineres e volumes é precificada pelo box rate (cesta de serviços), que é o preço cobrado pela movimentação horizontal e vertical da carga entre o porão da embarcação e sua colocação na pilha do terminal portuário.
Dentro dessa cesta se inclui a THC (terminal handling charge), que é o preço cobrado pela movimentação horizontal da carga entre o costado da embarcação e sua colocação na pilha do terminal portuário [6].
Quando o importador ou dono da carga opta pelo armazenamento e desembaraço da carga no porto seco — recinto alfandegado independente — os operadores portuários cobram uma taxa adicional pela movimentação do contêiner ou volume da pilha no pátio do terminal até o portão de saída (daí o nome THC-2).
Sob o ponto de vista regulatório, a Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) tratou do tema nas Resoluções nºs 2.389/2012, 34/2019 e 72/2022. Nessas duas últimas, admitiu expressamente a cobrança da THC-2, ao fundamento de que haveria serviços extras não contemplados pela THC.
O Cade, por seu turno, enfrentou a temática em inúmeras ocasiões. A questão é sensível porque os terminais portuários concorrem com os recintos alfandegados independentes no mercado de “armazenagem alfandegada” na zona geográfica dos respectivos portos.
Isso significa que o operador portuário, ao cobrar a THC-2, pode elevar o custo de seus concorrentes, tornando mais caro — e consequentemente menos atrativa — a armazenagem em recintos alfandegados independentes (RAI).
Além disso, os operadores portuários são players imprescindíveis, pois, sem sua atuação, o desembarque da mercadoria não acontece. Assim, podem arbitrar essa taxa conforme melhor lhes convenha, denotando a potencial existência de abuso de poder de dominante (artigo 36, inc. I e IV, da LDC).
O Superior Tribunal de Justiça, por ocasião dos REsp 1.899.040 e REsp 1.906.785, recentemente decidiu pela ilegalidade da THC-2, ao argumento de que, além de a cobrança não estar prevista em lei, constituiria também infração à ordem econômica [7].
E as relações entre particulares?
A cobrança da THC-2 é um bom exemplo de prática reputada lícita pela agência reguladora, mas ilícita sob o prisma concorrencial. Antes de retratar apenas um problema institucional entre autarquias da administração pública federal, a questão é importante sob o prisma do Direito Privado, em especial, ao se ter em conta as relações jurídicas estabelecidas entre particulares dentro desse mercado. Afinal, ao fim e ao cabo, consolidando-se a jurisprudência na direção da ilegalidade da THC-2, exsurgem possíveis direitos aos particulares atuantes nesse mercado, que teriam sido indevidamente cobrados de valor reputado ilegal.
Não só isso. As recentes decisões do STJ dão um importante norte aos agentes econômicos a respeito da incidência da LDC mesmo em mercados regulados [8]. Há, nesse sentido, um universo a ser explorado dentro do âmbito do Direito Privado a respeito da qualificação do ilícito, que considere também os influxos do Direito Regulatório e do Direito Concorrencial e as relações com órgãos reguladores e concorrenciais.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
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[1] FREEMAN, Jody. Private parties, public functions and the new administrative law. Administrative Law Revi-ew, v. 52, n. 3, p. 813-858, 2000; METZGER, Gillian E. Privatization as delegation. Columbia Law Review, v. 103, p. 1367-1502, 2003.
[2] Art. 31. Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal.
[3] TCU, Acórdão n. 1448/2022, Rel. Min. Vital do Rêgo, Plenário, J. 22/06/2022.
[4] TCU, Acórdão n. 1448/2022, Rel. Min. Vital do Rêgo, Plenário, J. 22/06/2022.
[5] TCU, Acórdão n. 1448/2022, Rel. Min. Vital do Rêgo, Plenário, J. 22/06/2022.
[6] ANTAQ, Resolução n. 72/2022.
[7]https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/08/28/cobrana-extra-nos-portos-irregular-decide-stj.ghtml. Acórdãos ainda não disponíveis.
[8] Em algumas circunstâncias, os agentes seriam imunes à incidência das leis de defesa da concorrência. Vide State Action Doctrine e Pervasive Power Doctrine (SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial: as estruturas. 2 ed. Malheiros: São Paulo, 2007. pp. 238-242)
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