Opinião

Problema da obediência aos precedentes como última alternativa ao Judiciário

Autor

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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16 de setembro de 2024, 20h39

Recentemente, conforme noticiado nesta ConJur [1], o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que o Poder Judiciário só tem uma escolha na busca por efetividade, isonomia, segurança jurídica e eficiência: a obediência aos precedentes. Essa fala foi proferida na palestra de abertura do 6º Encontro Nacional sobre Precedentes Qualificados, organizado pelos tribunais superiores em Brasília e sediado pelo Tribunal Superior do Trabalho.

Fellipe Sampaio/STF
Luís Roberto Barroso

Conforme noticiado, para o ministro, teríamos de abrir mão de alguns conceitos arraigados para aprender a trabalhar com o precedente. Não seria, pois, uma escolha filosófica, nem ideológica, mas sim, a única alternativa que existe para uma jurisdição de qualidade, entregue a tempo. Continuando, em sua fala, o ministro Barroso defendeu os precedentes pelas vantagens na busca por segurança jurídica, isonomia e eficiência, ressaltando-se, ainda, que seu uso exige que os juízes reavaliem a importância do livre convencimento motivado.

Acertadamente, e munida do espírito democrático, afirma a notícia que a construção desse sistema de precedentes ainda é nascente no Brasil e alvo de críticas, como as proferidas por Lenio Streck, no sentido de que precedentes não podem nascer para vincular, mas se tornar vinculantes a partir da interpretação. Seguiremos a partir deste ponto.

De antemão, cabe-nos ressaltar que do próprio título do mencionado encontro, que versa sobre “precedente qualificados” (o que é isto — precedentes qualificados?), bem como da conclusão de que juízes devem reavaliar a importância do “livre convencimento motivado”, tem-se que, diferentemente do que fora afirmado o ministro, esta é, sim, uma discussão filosófica. Eis o problema.

Precedentalismo

Continuando, ressaltamos ainda que a crítica do professor Lenio é com o chamado “precedentalismo”, expressão cunhada pelo mesmo para se referir à parcela da doutrina que entende que precedentes são feitos para o futuro, e pelas “Cortes de Vértice/Cortes Supremas”.

Surge, não obstante, o problema do efeito paradoxal do precedentalismo brasileiro, qual seja: o “remédio” do precedentalismo fomenta a degeneração do direito, afastando-se da efetividade, isonomia, segurança jurídica e eficiência buscada. E a solução não é aumentar a dose (maximizar a obediência aos precedentes).

Aproveitando a referência ao professor Lenio Streck, invoco o princípio da caridade epistêmica, partindo-se do pressuposto que todas essas pautas e iniciativas são gestadas na mais boa boa-fé. Todos queremos mais efetividade, isonomia, segurança jurídica e eficiência. Todos concordamos com os problemas. Discordamos, não obstante, da solução. Neste caso, da chamada “única alternativa”.

Spacca

Aristóteles, em “Ética a Nicômaco”, inicia seu raciocínio mencionando que as grandes questões podem ser definidas da seguinte forma: a partir ou em direção a um princípio [2]. Para os precedentalistas, sendo a função das Cortes Supremas/Vértice a outorga de unidade ao Direito, a sua adequada interpretação é ponto de chegada, sendo o caso concreto apenas seu ponto de partida. Acreditamos, não obstante, ser exatamente o contrário. O precedente é, pois, o ponto de partida, que, somente ao percorrer o caminho do caso concreto, chegará ao seu ponto de chegada.

A tese precedentalista, contudo, parece ter sido a tese vencedora. Mas, com todas as vênias, não é a correta. Aplicamos aqui o “fator Júlia Roberts” [3]. Existe uma razão pela qual os precedentes não cumpridos [4]. A reclamação é recorrente [5]. O efeito paradoxal já se apresenta. Este é o problema da realidade: com ela, não se pode barganhar.

Sistema de precedentes judiciais

Nossa aposta é a seguinte: não se segue um sistema de precedentes porque não temos um sistema de precedentes. Jogou-se fora a filosofia “do” e “no” direito, e isso tem suas consequências. De fato, desde a Emenda Constitucional 45 — que introduziu a súmula vinculante em nosso sistema —, parcela da doutrina reitera a necessidade de se estabelecer uma teoria da aplicação dos precedentes no Brasil [6].

Conforme Fredie Didier, um dos pilares do atual Código de Processo Civil é a estruturação dogmática de um sistema de precedentes judiciais obrigatórios. Essa transformação do direito brasileiro deve-se muito ao modo pelo qual a jurisdição vem sendo examinada pelos estudiosos do direito no Brasil [7]. Concordamos com este ponto.

Não obstante, conforme Georges Abboud, especialmente após o CPC/15, incorreu em perigoso equívoco parcela de nossa doutrina ao tratar de precedente. Trata-se de pura equiparação do precedente do common law à jurisprudência vinculante brasileira [8].

Neste sentido, do fato de o artigo 927 do CPC/15 elencar diversos provimentos que passaram a ser vinculantes, fez-se uma leitura equivocada de imaginar que a súmula, o acórdão que julga o IRDR ou oriundo de recurso (especial ou extraordinário repetitivo) são equiparáveis à categoria do genuíno precedente do common law. Violou-se a lei de Hume. Para piorar, degenerou-se o que se entende por precedente.

Na medicina, efeito paradoxal é uma expressão que se refere a efeitos de uma terapia que são contrários aos indicados ou desejados. Em outras palavras, é quando o efeito colateral do remédio e/ou tratamento supera o benefício entregue. É este o caso.

Por mais segurança jurídica, isonomia e eficiência

Como doença, tem-se a queda da efetividade, isonomia, segurança jurídica e eficiência no direito. Obviamente, estamos todos preocupados com isso. Enquanto operadores, teóricos e estudiosos do direito, todos desejamos mais segurança jurídica, efetividade, isonomia e eficiência. Mas também desejamos coerência e integridade. O CPC/15 também (vide artigo 926, CPC).

A tese precedentalista brasileira, sustentada também pelo ministro Barroso, defende que os precedentes brasileiros são compreendidos como razões generalizáveis extraídas da justificação das decisões e que “emanam exclusivamente das Cortes Supremas e são sempre obrigatórios”. Portanto, os precedentes, uma vez que vinculantes, são entendimentos que firmam orientações gerais obrigatórias para o futuro.

Contudo, aqui, já reside o maior equívoco: se é precedente, não pode ser “geral” e “para o futuro”. E por uma razão: precedentes são contingenciais; jamais são feitos para decidir casos futuros. O equívoco já começa na dosagem, ou na equivocada compreensão dos institutos. Para resolver a doença, busca-se solucionar eventuais problemas interpretativos futuros. Mas, no contexto de uma democracia liberal e social, quem deve cuidar do futuro é o Legislativo. O Judiciário cuida do passado.

O discurso precedentalista é uma tentativa de transformar o instituto importado em um sistema de teses abstratas proferidas pelos tribunais superiores, o que gera os problemas recorrentes de má aplicabilidade das decisões anteriores. O problema é da própria compreensão do instituto, e não de sua má aplicação, como se os juízes e tribunais inferiores praticassem deliberadamente “atos de rebeldia”.

Precedentes persuasivos e qualificados

Ora, o texto jurídico só pode ser entendido a partir de sua aplicação, isto é, diante de uma coisa, um fato, um caso concreto. Compreender sem aplicação não é compreender. As respostas não surgem antes das perguntas. É o que se entende por applicatio. Applicatio quer dizer que, além de interpretarmos por partes, em fatias, também não interpretamos em abstrato [9].

A palavra, o texto, não nos salvam da contingência da vida. Não se pode aplicar um precedente sem identificar a sua ratio e sem fazer o devido distinguishing, da mesma forma que não se pode achar que no texto da norma estão contidas todas as possibilidades de casos concretos.

O direito não é aquilo que o interprete quer que ele seja, e, portanto, não é aquilo que o tribunal, ainda que sejam as “cortes de vértice”, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, diz que é. A realidade, que não é negociável, já vem demonstrando isso.

Discutem-se, pois, sobre precedentes persuasivos e qualificados e, até hoje, não se fomentou um debate rigoroso sobre o que forma a ratio de um precedente, que seria a raiz do problema [10]. Neste sentido, o que faz com que ministros reclamem frequentemente de não terem seus precedentes cumpridos pelos tribunais, é justamente isto: a despreocupação com uma teoria da decisão judicial, a aposta equivocada no protagonismo judicial, e teses filosoficamente equivocadas como as de que “decisão judicial é um ato de vontade” [11].

O fato de se mencionar que deve o magistrado abandonar o “livre convencimento motivado” já mostra que sequer entendeu-se ainda quais seriam os problemas. Sem as perguntas e os paradigmas filosóficos corretos, continuaremos com as respostas erradas, ainda que munidas de boas intenções. Precisamos olhar para a doença, e não para os sintomas.

Simplicidade

Por fim, no fundo, inegável que o “paciente zero” desta doença é a simplicidade; no caso, a simplificação do direito [12]. Sobre a complexidade em específico, inclusive, Innerarity [13] argumenta que a principal ameaça à democracia não é a violência, corrupção ou ineficiência, mas sim, a simplicidade. Isto porque, em sua forma atual, a política estaria no auge da complexidade social. A população não entende o porquê existem instituições e para que estas servem.

Com todas as vênias, a obediência aos precedentes não é a única solução. No atual cenário, sequer parece ser uma solução, pelo menos não até discutirmos seriamente o que seria isto, o precedente. E sim, trata-se, também, de uma escolha filosófica, por mais que se diga que não.

Não podemos simplificar uma discussão que, filosoficamente, politicamente e juridicamente, seria bem mais complexa, mas de certa forma, inacessível para a população (e comunidade jurídica) em geral. Não se pode ceder a esta necessidade da sociedade de orientação e simplificação, em detrimento de um conceito denso, custoso e complexo.

Certamente, pode-se sempre oferecer uma solução simples, elegante e completamente errada, lembrando H. L. Mencken. Não obstante, precisamos aceitar que o direito é um fenômeno complexo, cuja compreensão necessita de reflexão sobre questões fundamentais, dentro de um correto paradigma filosófico, sem a qual teremos como resultado um direito continuamente alienado da filosofia. E esta última nos ensina, desde sempre, que mais importam as perguntas que respostas, e que não existem respostas antes das perguntas. First things first.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2024-set-09/precedente-nao-e-escolha-filosofica-ou-ideologica-e-a-unica-alternativa-diz-barroso/

[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução e notas Luciano Ferreira de Souza. São Paulo: Martin Claret,2016, p. 20.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Letramento Editora e Livraria LTDA, 2018.

[4] https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/schietti-reforma-decisao-critica-tj-sp-afrontar-supremo/

[5] https://www.poder360.com.br/poder-justica/stj-recebeu-mais-de-10-mil-processos-durante-recesso/

[6] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O NCPC e os precedentes: afinal, do que estamos falando?. Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, v. 27, n. 128, p. 81-87, 2016, p.82.

[7] DIDIER JR, Fredie. Sistema brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres institucionais dos Tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 64, p. 135-148, 2017, p. 136.

[8] ABBOUD, Georges. Do genuíno precedente do stare decisis ao precedente brasileiro: os fatores histórico, hermenêutico e democrático que os diferenciam. Revista de Direito Da Faculdade Guanambi, v. 2, n. 01, p. 62-69, 2016, p.62.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Letramento Editora e Livraria LTDA, 2018, p. 20-21.

[10] STRECK, Lenio Luiz. Por que o STF e o STJ têm de conceder HC para furtos de baldes d’água?. Consultor Jurídico, São Paulo, 2023.

[11] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. 3 ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 18.

[12]Em sua mais recente obra, Lenio Streck aprofunda este ponto. Vide: STRECK, Lenio Luiz. Ensino Jurídico e(m) Crise: Ensaio contra a simplificação do Direito”. São Paulo: Editora Contracorrente. 2024.

[13] INNERARITY, Daniel. Una teoría de la democracia compleja. Gobernar en el siglo XXI.(Barcelona 2020), 2020.

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  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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