Problema da obediência aos precedentes como última alternativa ao Judiciário
16 de setembro de 2024, 20h39
Recentemente, conforme noticiado nesta ConJur [1], o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que o Poder Judiciário só tem uma escolha na busca por efetividade, isonomia, segurança jurídica e eficiência: a obediência aos precedentes. Essa fala foi proferida na palestra de abertura do 6º Encontro Nacional sobre Precedentes Qualificados, organizado pelos tribunais superiores em Brasília e sediado pelo Tribunal Superior do Trabalho.
Conforme noticiado, para o ministro, teríamos de abrir mão de alguns conceitos arraigados para aprender a trabalhar com o precedente. Não seria, pois, uma escolha filosófica, nem ideológica, mas sim, a única alternativa que existe para uma jurisdição de qualidade, entregue a tempo. Continuando, em sua fala, o ministro Barroso defendeu os precedentes pelas vantagens na busca por segurança jurídica, isonomia e eficiência, ressaltando-se, ainda, que seu uso exige que os juízes reavaliem a importância do livre convencimento motivado.
Acertadamente, e munida do espírito democrático, afirma a notícia que a construção desse sistema de precedentes ainda é nascente no Brasil e alvo de críticas, como as proferidas por Lenio Streck, no sentido de que precedentes não podem nascer para vincular, mas se tornar vinculantes a partir da interpretação. Seguiremos a partir deste ponto.
De antemão, cabe-nos ressaltar que do próprio título do mencionado encontro, que versa sobre “precedente qualificados” (o que é isto — precedentes qualificados?), bem como da conclusão de que juízes devem reavaliar a importância do “livre convencimento motivado”, tem-se que, diferentemente do que fora afirmado o ministro, esta é, sim, uma discussão filosófica. Eis o problema.
Precedentalismo
Continuando, ressaltamos ainda que a crítica do professor Lenio é com o chamado “precedentalismo”, expressão cunhada pelo mesmo para se referir à parcela da doutrina que entende que precedentes são feitos para o futuro, e pelas “Cortes de Vértice/Cortes Supremas”.
Surge, não obstante, o problema do efeito paradoxal do precedentalismo brasileiro, qual seja: o “remédio” do precedentalismo fomenta a degeneração do direito, afastando-se da efetividade, isonomia, segurança jurídica e eficiência buscada. E a solução não é aumentar a dose (maximizar a obediência aos precedentes).
Aproveitando a referência ao professor Lenio Streck, invoco o princípio da caridade epistêmica, partindo-se do pressuposto que todas essas pautas e iniciativas são gestadas na mais boa boa-fé. Todos queremos mais efetividade, isonomia, segurança jurídica e eficiência. Todos concordamos com os problemas. Discordamos, não obstante, da solução. Neste caso, da chamada “única alternativa”.
Aristóteles, em “Ética a Nicômaco”, inicia seu raciocínio mencionando que as grandes questões podem ser definidas da seguinte forma: a partir ou em direção a um princípio [2]. Para os precedentalistas, sendo a função das Cortes Supremas/Vértice a outorga de unidade ao Direito, a sua adequada interpretação é ponto de chegada, sendo o caso concreto apenas seu ponto de partida. Acreditamos, não obstante, ser exatamente o contrário. O precedente é, pois, o ponto de partida, que, somente ao percorrer o caminho do caso concreto, chegará ao seu ponto de chegada.
A tese precedentalista, contudo, parece ter sido a tese vencedora. Mas, com todas as vênias, não é a correta. Aplicamos aqui o “fator Júlia Roberts” [3]. Existe uma razão pela qual os precedentes não cumpridos [4]. A reclamação é recorrente [5]. O efeito paradoxal já se apresenta. Este é o problema da realidade: com ela, não se pode barganhar.
Sistema de precedentes judiciais
Nossa aposta é a seguinte: não se segue um sistema de precedentes porque não temos um sistema de precedentes. Jogou-se fora a filosofia “do” e “no” direito, e isso tem suas consequências. De fato, desde a Emenda Constitucional 45 — que introduziu a súmula vinculante em nosso sistema —, parcela da doutrina reitera a necessidade de se estabelecer uma teoria da aplicação dos precedentes no Brasil [6].
Conforme Fredie Didier, um dos pilares do atual Código de Processo Civil é a estruturação dogmática de um sistema de precedentes judiciais obrigatórios. Essa transformação do direito brasileiro deve-se muito ao modo pelo qual a jurisdição vem sendo examinada pelos estudiosos do direito no Brasil [7]. Concordamos com este ponto.
Não obstante, conforme Georges Abboud, especialmente após o CPC/15, incorreu em perigoso equívoco parcela de nossa doutrina ao tratar de precedente. Trata-se de pura equiparação do precedente do common law à jurisprudência vinculante brasileira [8].
Neste sentido, do fato de o artigo 927 do CPC/15 elencar diversos provimentos que passaram a ser vinculantes, fez-se uma leitura equivocada de imaginar que a súmula, o acórdão que julga o IRDR ou oriundo de recurso (especial ou extraordinário repetitivo) são equiparáveis à categoria do genuíno precedente do common law. Violou-se a lei de Hume. Para piorar, degenerou-se o que se entende por precedente.
Na medicina, efeito paradoxal é uma expressão que se refere a efeitos de uma terapia que são contrários aos indicados ou desejados. Em outras palavras, é quando o efeito colateral do remédio e/ou tratamento supera o benefício entregue. É este o caso.
Por mais segurança jurídica, isonomia e eficiência
Como doença, tem-se a queda da efetividade, isonomia, segurança jurídica e eficiência no direito. Obviamente, estamos todos preocupados com isso. Enquanto operadores, teóricos e estudiosos do direito, todos desejamos mais segurança jurídica, efetividade, isonomia e eficiência. Mas também desejamos coerência e integridade. O CPC/15 também (vide artigo 926, CPC).
A tese precedentalista brasileira, sustentada também pelo ministro Barroso, defende que os precedentes brasileiros são compreendidos como razões generalizáveis extraídas da justificação das decisões e que “emanam exclusivamente das Cortes Supremas e são sempre obrigatórios”. Portanto, os precedentes, uma vez que vinculantes, são entendimentos que firmam orientações gerais obrigatórias para o futuro.
Contudo, aqui, já reside o maior equívoco: se é precedente, não pode ser “geral” e “para o futuro”. E por uma razão: precedentes são contingenciais; jamais são feitos para decidir casos futuros. O equívoco já começa na dosagem, ou na equivocada compreensão dos institutos. Para resolver a doença, busca-se solucionar eventuais problemas interpretativos futuros. Mas, no contexto de uma democracia liberal e social, quem deve cuidar do futuro é o Legislativo. O Judiciário cuida do passado.
O discurso precedentalista é uma tentativa de transformar o instituto importado em um sistema de teses abstratas proferidas pelos tribunais superiores, o que gera os problemas recorrentes de má aplicabilidade das decisões anteriores. O problema é da própria compreensão do instituto, e não de sua má aplicação, como se os juízes e tribunais inferiores praticassem deliberadamente “atos de rebeldia”.
Precedentes persuasivos e qualificados
Ora, o texto jurídico só pode ser entendido a partir de sua aplicação, isto é, diante de uma coisa, um fato, um caso concreto. Compreender sem aplicação não é compreender. As respostas não surgem antes das perguntas. É o que se entende por applicatio. Applicatio quer dizer que, além de interpretarmos por partes, em fatias, também não interpretamos em abstrato [9].
A palavra, o texto, não nos salvam da contingência da vida. Não se pode aplicar um precedente sem identificar a sua ratio e sem fazer o devido distinguishing, da mesma forma que não se pode achar que no texto da norma estão contidas todas as possibilidades de casos concretos.
O direito não é aquilo que o interprete quer que ele seja, e, portanto, não é aquilo que o tribunal, ainda que sejam as “cortes de vértice”, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, diz que é. A realidade, que não é negociável, já vem demonstrando isso.
Discutem-se, pois, sobre precedentes persuasivos e qualificados e, até hoje, não se fomentou um debate rigoroso sobre o que forma a ratio de um precedente, que seria a raiz do problema [10]. Neste sentido, o que faz com que ministros reclamem frequentemente de não terem seus precedentes cumpridos pelos tribunais, é justamente isto: a despreocupação com uma teoria da decisão judicial, a aposta equivocada no protagonismo judicial, e teses filosoficamente equivocadas como as de que “decisão judicial é um ato de vontade” [11].
O fato de se mencionar que deve o magistrado abandonar o “livre convencimento motivado” já mostra que sequer entendeu-se ainda quais seriam os problemas. Sem as perguntas e os paradigmas filosóficos corretos, continuaremos com as respostas erradas, ainda que munidas de boas intenções. Precisamos olhar para a doença, e não para os sintomas.
Simplicidade
Por fim, no fundo, inegável que o “paciente zero” desta doença é a simplicidade; no caso, a simplificação do direito [12]. Sobre a complexidade em específico, inclusive, Innerarity [13] argumenta que a principal ameaça à democracia não é a violência, corrupção ou ineficiência, mas sim, a simplicidade. Isto porque, em sua forma atual, a política estaria no auge da complexidade social. A população não entende o porquê existem instituições e para que estas servem.
Com todas as vênias, a obediência aos precedentes não é a única solução. No atual cenário, sequer parece ser uma solução, pelo menos não até discutirmos seriamente o que seria isto, o precedente. E sim, trata-se, também, de uma escolha filosófica, por mais que se diga que não.
Não podemos simplificar uma discussão que, filosoficamente, politicamente e juridicamente, seria bem mais complexa, mas de certa forma, inacessível para a população (e comunidade jurídica) em geral. Não se pode ceder a esta necessidade da sociedade de orientação e simplificação, em detrimento de um conceito denso, custoso e complexo.
Certamente, pode-se sempre oferecer uma solução simples, elegante e completamente errada, lembrando H. L. Mencken. Não obstante, precisamos aceitar que o direito é um fenômeno complexo, cuja compreensão necessita de reflexão sobre questões fundamentais, dentro de um correto paradigma filosófico, sem a qual teremos como resultado um direito continuamente alienado da filosofia. E esta última nos ensina, desde sempre, que mais importam as perguntas que respostas, e que não existem respostas antes das perguntas. First things first.
[1] https://www.conjur.com.br/2024-set-09/precedente-nao-e-escolha-filosofica-ou-ideologica-e-a-unica-alternativa-diz-barroso/
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução e notas Luciano Ferreira de Souza. São Paulo: Martin Claret,2016, p. 20.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Letramento Editora e Livraria LTDA, 2018.
[4] https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/schietti-reforma-decisao-critica-tj-sp-afrontar-supremo/
[5] https://www.poder360.com.br/poder-justica/stj-recebeu-mais-de-10-mil-processos-durante-recesso/
[6] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O NCPC e os precedentes: afinal, do que estamos falando?. Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, v. 27, n. 128, p. 81-87, 2016, p.82.
[7] DIDIER JR, Fredie. Sistema brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres institucionais dos Tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 64, p. 135-148, 2017, p. 136.
[8] ABBOUD, Georges. Do genuíno precedente do stare decisis ao precedente brasileiro: os fatores histórico, hermenêutico e democrático que os diferenciam. Revista de Direito Da Faculdade Guanambi, v. 2, n. 01, p. 62-69, 2016, p.62.
[9] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Letramento Editora e Livraria LTDA, 2018, p. 20-21.
[10] STRECK, Lenio Luiz. Por que o STF e o STJ têm de conceder HC para furtos de baldes d’água?. Consultor Jurídico, São Paulo, 2023.
[11] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. 3 ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 18.
[12]Em sua mais recente obra, Lenio Streck aprofunda este ponto. Vide: STRECK, Lenio Luiz. Ensino Jurídico e(m) Crise: Ensaio contra a simplificação do Direito”. São Paulo: Editora Contracorrente. 2024.
[13] INNERARITY, Daniel. Una teoría de la democracia compleja. Gobernar en el siglo XXI.(Barcelona 2020), 2020.
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