Opinião

RE 2.107.658/SC: estupro de vulnerável e presunção absoluta de vulnerabilidade

Autor

  • Thales Sousa da Silva

    é assessor judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (matéria cível) servidor efetivo do TJ-DF especialista em Direito Penal e Processual Penal autor no Canal de Ciências Criminais e no Internacional Center for Criminal Studies (ICC) colaborador no Empório do Direito e membro do Clube Metajurídico.

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15 de setembro de 2024, 7h02

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao examinar as razões do Recurso Especial nº 2.107.658/SC, conheceu e negou provimento à irresignação promovida pelo Ministério Público de Santa Catarina para assim preservar os fundamentos adotados no acórdão prolatado pelo juízo a quo para absolver o réu, a quem havia sido imputada a prática de conduta prevista no artigo 217-A do Código Penal (estupro de vulnerável).

Narrou a peça de ingresso que o acusado, com 20 anos de idade, manteve relação amorosa e de cunho sexual com a vítima, menor de 14.

O édito absolutório levou em consideração as circunstâncias fáticas — pois supostamente indicariam a presença de consentimento —, o fato de ter sido a relação amorosa “autorizada” pelos pais da vítima, a insuficiente evidência de violação à liberdade sexual da menor e a ausência de risco social significativo atribuível à conduta.

Dignidade dos ofendidos

Inicialmente é preciso registrar que existe no âmbito do STJ entendimento sumulado que aponta para a irrelevância, no exame dos elementos referentes ao estupro de vulnerável, do consentimento eventualmente oferecido pela vítima, de experiência sexual pretérita ou da existência de relacionamento entre o vulnerável e o autor do delito (Enunciado nº 593 da Súmula do STJ).

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assédio sexual estupro

Aliás, no ano seguinte à edição do mencionado verbete sumular, o Código Penal passou a prever semelhante disposição em seu artigo 217-A, §5º, a seguir transcrita: “as penas previstas no caput e nos §§1º, 2º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”.

É curial mencionar que a nova vitimologia (a partir de 1985) adota como função central a proteção da vítima e o reconhecimento de seu papel preponderante, bem como a releitura da dogmática penal no sentido de atender às suas expectativas [1]. Rompe-se com o princípio monológico de compreensão do delito para adotar-se um princípio dialógico, cujo resultado é o fortalecimento do “outro” [2]. Trata-se, portanto, do devido reconhecimento ao preceito da dignidade em relação aos ofendidos.

Dignidade e proteção segundo a doutrina

Luis Roberto Barroso leciona que o princípio da dignidade humana pode ser observado quando se permite ao indivíduo o exercício autônomo de suas vontades, envolvendo“em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade”.

A dignidade, contudo, não se restringe à observância da liberdade, e com ela não se confunde, pois é necessário que se façam presentes as condições para a autodeterminação do indivíduo, “o que traz pare esse domínio, também, o direito à igualdade, em sua dimensão material” [3].

Spacca

Segundo Soraia da Rosa Mendes, “tanto o direito à autodeterminação como o direito à proteção se colocam como vetores estruturantes a partis dos quais devem ser deduzidos os limites de atuação do direito penal” [4].

Vetor proteção e viciosidade do consentimento

Os fundamentos adotados pelo órgão fracionário do Superior Tribunal de Justiça negligenciam o fato de que o delito em estudo caracteriza não unicamente violação à liberdade sexual (capítulo I do Título VI do CP). A conduta ofende o bem jurídico dignidade também no que concerne ao seu vetor proteção, tendo em vista a presunção absoluta de que a vítima é vulnerável, como revela a denominação dada ao capítulo pertinente. (Dos Crimes Sexuais Contra Vulnerável).

Além disso, a caracterização do estupro de vulnerável não exige, em regra, que esteja demonstrada a ausência do consentimento da vítima, pois nesses casos é comum se verificar a viciosidade do aceite oferecido, uma vez que, por razões de ordem fisiológicas ou biopsicológicas, não estaria o ofendido apto a, de modo válido, consentir.

Concordância dos pais

Também não afasta a caracterização do ilícito a eventual concordância dos genitores com a prática do ato, pois, embora possa inspirar no menor a percepção de legitimidade do comportamento, não desonera autor, a quem a norma está dirigida, do dever de observância da Lei penal (artigo 21 do CP).

Em verdade, o genitor que permite a ocorrência do resultado criminoso em casos dessa natureza é corresponsável pela prática delitiva, de acordo com o enunciado da norma prevista no artigo 13, §2º, “a”, do Código Penal.

Conclusão

Ainda sobre o tema, destaca-se que a opção feita pelo menor de levar adiante a relação amorosa não tem impacto no exame de tipicidade do fato criminal, pois é atribuído unicamente ao réu. A condenação do autor em hipóteses como a presente reflete a necessidade de garantir o poder dissuasório da norma e não se traduz como punição dirigida à vítima pelo desempenho de sua autodeterminação em matéria sexual.

Pune-se o autor, que devendo se abster de violar a norma, violou-a (finalidade repressiva da pena).

Pune-se o autor para reafirmar a validez do ordenamento jurídico e preservar a força dissuasória da norma em relação aos demais indivíduos (finalidade preventiva geral).

Pune-se o autor porque as circunstâncias apontam para a necessidade de aplicação pena como modo de dissuadi-lo a comportar-se de acordo com a Lei penal (função preventiva especial).

Mais importante, pune-se o autor porque é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade e ao respeito, colocando-o a salvo de toda forma de negligência, exploração, violência ou crueldade, como reza o artigo 227, caput, da Constituição.

 


[1] JORGE, Aline Pedra. Em busca da satisfação dos interesses da vítima penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005

[2] LARRAURI, Elena. Victimología ¿Quiénes son las víctimas? ¿Cuáles sus derechos? ¿Cuáles sus necesidades? Jueces para la democracia. Madrid, 1992.

[3] BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010.

[4] MENDES, Soraia da Rosa. (Re)pensando a criminologia: reflexões sobre um novo paradigma desde a epistemologia feminista. Tese de doutorado (Direito). Pós-Graduação em Direito pela UnB. Brasília, 2012.

Autores

  • é autista, policial legislativo do Senado, ex-assessor judiciário de um dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, tecnólogo em Secretariado Jurídico, bacharel em Direito, especialista em Direito Penal e Processual Penal, pós-graduando em Gestão de Segurança Pública, membro do Clube Metajurídico e autor de artigos jurídicos.

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