Os intelectuais e o poder: a 'Carta VII', de Platão
15 de setembro de 2024, 7h32
A relação entre os intelectuais e o poder é um dos assuntos mais aliciantes da ciência política. Noberto Bobbio deixou-nos um livro com esse exato título; explorou a tensão entre o homem de gabinete, que estuda as coisas do passado, e o integrado participante, que estuda e interfere nas lutas de seu tempo.
Zygmunt Baumann também tratou desse complicado assunto em “Legisladores e Intérpretes”, publicado pela Zahar. Richard Posner dedicou um livro ao tema (Public Intellectuals, a Study of Decline). Antonio Gramsci, no volume 2 dos “Cadernos do Cárcere”, tratou da dicotomia entre intelectuais “orgânicos” e intelectuais “tradicionais”; aqueles primeiros seriam integrados na luta pelo poder.
Na história política brasileira há exemplos a mancheias que ilustram o problema da relação entre os intelectuais e o poder: Miguel Reale, Francisco Campos, San Tiago Dantas, Oliveira Vianna, Rui Barbosa e o próprio Fernando Henrique Cardoso, bem como o Padre Antonio Vieira, em tempos mais antigos, além de tantos outros.
Um tema fascinante a espera de trabalhos de aprofundamento. Como postulado para essa atraente discussão sugiro leitura atenta da “Carta VII”, atribuída a Platão. É o tema dos Embargos Culturais desta semana.
Filosofia e boa governança
A “Carta VII” de Platão explora a complexa relação entre intelectuais e poder. É uma reflexão sobre a tensão entre filosofia e boa governança. Platão relata suas experiências na Sicília, suas interações com Dion e Dionísio, refletindo sobre o papel do filósofo na política.
Destacou os desafios e frustrações inerentes a intelectuais que tentam influenciar o poder. Se a “Carta VII” é de fato de sua autoria (e há fundadas dúvidas) trata-se de um dos textos mais pessoais e políticos do filósofo. É um testemunho de sua tentativa de influenciar Dionísio de Siracusa a adotar um governo mais justo. Dionísio era um tirano. Siracusa era mais importante cidade grega no Mediterrâneo.
Platão começa o texto descrevendo suas primeiras impressões sobre a política. Relata sua desilusão para com o meio político ateniense, marcado por tensões intermináveis. A corrupção que grassava na cidade o desestimulava. A condenação e execução de Sócrates (que temos que assumir como um fato histórico) foi o ponto culminante dessa desilusão. A perspectiva idealista na concessão de uma política como meio de guiar os cidadãos para uma vida virtuosa foi rapidamente abalada.
Dionísio teria recebido Platão com frieza. Desconfiado, temia perder poder e autoridade. Platão não conseguiu influenciá-lo. Viu-se envolvido em intrigas. Esse é o dramático contexto político no qual essa emblemática carta teria sido redigida.
Limites
Trata-se de profunda reflexão sobre a extensão e os limites da filosofia especulativa e da política prática. Tem-se a quase metáfora do rei-filósofo, que é uma das marcas da filosofia política de Platão.
O filósofo adverte que os soberanos temem a sapiência e a justiça que decorrem da reflexão filosófica. A perspectiva de um governo sábio e justo assustaria os tiranos. Essa disfunção se materializaria numa política distante dos ideais de um bom governo.
A “Carta VII” é testemunho das dificuldades enfrentadas por intelectuais que tentam influenciar o poder político. A má governança, segundo Platão, decorre também do desvio do governante para com os ideais de justiça.
O intelectual que influencia o político seria mero conselheiro ou, de fato, deteria um mandato implícito que lhe daria poderes de influência fática? Deve-se também levar em conta aspectos da integridade e da segurança do intelectual que se aproxima do poder. Há sempre um risco de cair em desgraça. Maquiavel que o diga.
Platão insiste que a filosofia (e nesse caso, penso, a filosofia como um programa de ação prática para o bem comum), por conta de seu poder transformador, seria também uma ameaça ao detentor do poder. Poderosos, parece sugerir Platão, temem os intelectuais. Há uma tensão permanente entre a pureza do ideal filosófico e a crueldade da realidade política.
A leitura da “Carta VII” estimula reflexões em torno do papel do intelectual na vida política, da utópica (e também apavorante) expectativa de que os governantes sejam filósofos, bem como da resistência que o político teria para com uma sincera busca de justiça.
A “Carta VII” é texto fundador sobre a complexa relação entre os intelectuais e o poder, um dos panos de fundo da construção da experiência normativa.
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