Controle de constitucionalidade direto no STF e processo tributário
15 de setembro de 2024, 8h00
O foco desta coluna é o processo tributário, colecionando, assim, artigos voltados estritamente ao conflito aurido na relação entre fisco e contribuinte, de modo que foram produzidos preocupando-se fundamentalmente em apresentar questões e sugerir soluções no contexto de demandas acionadas em caráter subjetivo, especialmente as individuais.
Contudo, ainda que a massa de conflitos tributários se formatem a partir de ações individuais, presente a possibilidade de a matéria tributária ser debatida pela via direta no Supremo Tribunal Federal, ambiente esse que progressivamente vem assumindo protagonismo na discussão de matéria tributária. Por isso a ideia de produzir artigos voltados ao controle de constitucionalidade no STF. Este é o primeiro deles.
Bem, o sistema processual estabelecesse dois canais de acesso ao Supremo Tribunal Federal, (1) o recursal, portanto, pela via do recurso extraordinário sacado de uma ação individual (ou coletiva) instalada por provocação do contribuinte [1], e (2) o da ação direta materializado por meio de ações de controle de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade) [2].
Representação, ADI e ADC
O controle direto de constitucionalidade das leis foi introduzido no ordenamento jurídico por meio da Emenda Constitucional 16/1965, momento no qual o Supremo era provocado por meio de uma representação e o legitimado para sua apresentação era o procurador-geral da República [3].
A partir da promulgação da Constituição de 1988 o controle direto de constitucionalidade ganhou nova roupagem. Mantido o controle misto (difuso [4] e concentrado), redenominou-se a medida processual de provocação de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) e foi ampliado o rol de sujeitos legitimados [5] para sua propositura. Mas não só. Viu-se ainda inserida a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) como outro mecanismo de controle de constitucionalidade por meio da Emenda Constitucional 3/1993, bem como estendeu-se os efeitos da decisão proferida na ADI [6] para fora do âmbito da jurisdição judicial alcançando também atos e decisões do Poder Executivo, vinculando ambos os órgãos, portanto.
Reflexos na seara tributária
Sob a perspectiva do processo tributário, esse ponto, o da expansividade do efeito vinculativo da decisão proferida em ADI ou ADC, assume relevância, pois a norma fixada no julgamento dessas ações ditará o resultado das questões tributárias objeto de discussão em ambiente jurisdicional judicial e administrativo [7].
Esse efeito expansivo e vinculante das ações diretas de controle de constitucionalidade definem, portanto, a resposta que deve ser dada nos casos individuais (ou coletivos) tributários que contemporaneamente tramitam no Judiciário e nos Tribunais Administrativos, bem como naqueles que futura e eventualmente tenham como objeto a questão já decidida pelo STF.
Cremos que tal efeito, mesmo positivado no texto Constitucional [8], é da genética (essência) dessas ações, pelos seguintes motivos: (1) por meio delas é promovido um juízo de compatibilidade entre o arsenal de regras tributárias e o texto Constitucional [9]; (2) esse juízo de compatibilidade se consolida em caráter abstrato (em tese), de maneira que é irrelevante o interesse subjetivo das partes; (3) têm como objetivo a manutenção da integridade do texto Constitucional; (4) a resposta dada pelo STF acerca da (in)constitucionalidade do instrumento normativo confirma ou infirma o dever de sujeição à regra tributária [10]; afora o fato de (5) concretizarem o princípio da isonomia, já que a decisão do STF será aplicada nos casos concretos presentes e futuros e (6) fortalecerem a segurança jurídica ao gerar expectativas normativas uniformes acerca da aplicação da lei tributária.
Pensamos que não faria minimamente sentido que o órgão de cúpula definisse a constitucionalidade ou não de uma lei tributária e seu pronunciamento não reverberasse sobre os demais âmbitos jurisdicionais e a conduta dos sujeitos na sociedade, seria fazer tábula rasa do próprio texto Constitucional e da função institucional do órgão judicial.
Ao apreciar a ADI ou a ADC, desprende-se o STF de casos concretos, por isso afirma-se que o julgamento é em caráter objetivo, do que decorre a impossibilidade de desistência da ação após o seu ajuizamento, uma consequência inclusive expressa na Lei Federal 9.868/1999 [11].
Poder de cautela e repristinação
Não se pode deixar de destacar, por fim, que o poder geral de cautela está integrado ao exercício da jurisdição constitucional, moldado nos seguintes termos para cada um das ações [12].
Na ADI pode o relator da ação deferir medida cautelar suspendendo o ato normativo objeto da ação; ato decisório esse que, em regra, é dotado de efeito ex nunc, à luz do que dispõe o § 1º do artigo 11 da adrede referida Lei Federal 9.868/1999 [13].
E, objetivando manter a segurança jurídica ante o vácuo normativo que se corporifica a partir da suspensão da eficácia do ato normativo objeto da ADI, é assegurada a repristinação da legislação anterior que regule a mesma matéria (por óbvio se existente lei) [14]. Contudo, está o Supremo autorizado a decidir pela inaplicabilidade, frise-se fundamentada, da legislação anterior.
Para as discussões tributárias tal regra, a de repristinação da legislação anterior, é necessária sob dois aspectos práticos porque mantem intacta a arrecadação tributária e orienta a postura que o contribuinte deve adotar acerca do tributo.
No que toca à ADC, a ordem cautelar deve afetar a atuação dos demais âmbitos de jurisdição, deveras, promovendo a suspensão do julgamento dos processos tributários individuais ou coletivos que tenham como objeto o mesmo ato normativo tratado na ADC e, como já tivemos a oportunidade de escrever [15], medida desse quilate constitui técnica processual de racionalização orgânica de julgamento que impede o exercício da jurisdição, temporariamente [16].
O leitor ou leitora atentos notarão que afirmamos a afetação da ordem cautelar dos demais âmbitos jurisdicionais, e não apenas do judicial, e assim fizemos porque admitimos que há jurisdição administrativa e está ela vinculada à decisão do STF, de maneira que somos forçados a concluir que a suspensão do julgamento determinado na ADC deve ser estendida aos processos administrativo tributários em trâmite. Isso em prol da projetada vinculação à decisão de mérito.
Reputamos que essa coordenação da atividade jurisdicional, barrada em seu exercício temporariamente, para futura adesão conteudística à decisão do STF, decorre do fato de que as ações de controle direto de constitucionalidade, são “causas” que pela questão posta compreendem prejudicial externa, pois o julgamento do processo tributário individual ou coletivo, judicial ou administrativo, depende do conteúdo firmado no julgamento de outra causa (ADI ou ADC) [17].
Assim, andou bem o legislador ao promover essa intertextualidade entre processos, porque crucial para que a almejada segurança por meio da aplicação isonômica da lei, sacada do efeito vinculante da decisão de mérito, se materialize.
[1] A referência é restrita a ações antiexacionais, pois na hipótese de ação exacional o acesso ao Supremo Tribunal Federal por meio de recurso extraordinário somente consolidar-se-á na hipótese de o contribuinte se opor à exigência tributária invocando questão de constitucionalidade da exigência tributária, pela via dos embargos à execução ou da exceção de pré-executividade, pois sem essa sua iniciativa, o processo executivo fiscal tenderá exclusivamente à promoção de atos de constrição e alienação patrimonial para fins de extinção do crédito tributário.
[2] Não esquecemos que a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) também é um canal de acesso ao controle direto de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, mas optamos por não fazer referência por ela assumir, em certa medida, caráter subsidiário no cenário do controle direto de constitucionalidade, uma vez que será utilizada quando não for hipótese de cabimento da ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade.
Em tempo cabe mencionar que também não se fez referência à ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), uma vez que se trata de ação judicial que objetiva dar efetividade a normas constitucionais na hipótese de ausência do exercício do dever constitucional de legislar ou da adoção de providência de índole administrativa.
[3] Emenda essa que alterou o texto da Constituição Federal de 1946:
Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete:
I – processar e julgar originariamente:
k) a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República;
[4] Difuso no sentido de apreciação da questão constitucional de maneira pulverizada entre os órgãos que compõem a estrutura do Poder Judiciário (1ª e 2ª instâncias e Superior Tribunal de Justiça) e segundo o rito determinado para apreciação da inconstitucionalidade da lei. Lembremos do conteúdo do artigo 97 do texto Constitucional:
Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.
[5] A lista de legitimados a seguir é a constante na redação do artigo 103 do texto Constitucional alterado pela Emenda Constitucional 45/2004, a qual ampliou o rol indicado na redação originária da Constituição Federal/1988:
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV – a Mesa de Assembleia Legislativa;
IV – a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V – o Governador de Estado;
V – o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
[6] Essa extensão dos efeitos da decisão da ADI para alcançar os atos do Poder Executivo foi integrada ao ordenamento também por meio Emenda Constitucional 45/2004.
[7] Remetemos o leitor ou leitora ao seguinte artigo desta coluna em que o reconhecimento da jurisdição administrativa é justificado:
[8] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;
§ 2º. As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
[9] A referência é estrito a normas do âmbito tributário em função do objeto temático desta Coluna, entretanto, a assertiva supera esse ramo específico do direito, pois o controle de constitucionalidade é a materialização do juízo de compatibilidade de toda e qualquer norma jurídica compositiva do ordenamento com a Constituição da República de 1988.
[10] A expressão regra tributária está sendo utilizada em seu mais amplo alcance, para se referir desde a regra-matriz de incidência tributária, bem como a toda e qualquer norma que trate da relação fisco-contribuinte e encontre fundamento de validade direto no texto constitucional.
[11] Art. 5º. Proposta a ação direta, não se admitirá desistência.
Art. 16. Proposta a ação declaratória, não se admitirá desistência.
[12] Interessante trazer ao seu conhecimento, leitor ou leitora, que em dado momento histórico não havia expressa previsão normativa a respeito da concessão de cautelar nas ações de controle direto de constitucionalidade. Entretanto, o Ministro Celso de Mello em voto memorável reconheceu-o como ínsito à própria atividade jurisdicional., de tão valiosas suas palavras vale a transcrição de parte de seu voto:
“(…) Ensinam os processualistas que o poder de cautela é inerente à atividade jurisdicional. Esse é, na verdade, um princípio processual constitucional, dado que a Lei Maior confere ao Poder Judiciário o poder-dever de curar qualquer lesão ou ameaça a direito (C. F., art. 5º, XXXV).
(…)
Ora, Sr. Presidente, se o poder de cautela é inerente à atividade jurisdicional, o que dizer quando se invoca esse poder de cautela para as decisões da Corte Constitucional, numa questão constitucional, decisões que têm eficácia erga omnes e efeito vinculante. Numa Corte assim e numa ação desse tipo, é que o poder de cautela é, com muito maior razão, inerente à atividade jurisdicional (…)” (ADC 4 MC, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 11/02/1998, DJ 21-05-1999 PP-00002 EMENT VOL-01951-01 PP-00001)
Para complementação de conteúdo no mesmo sentido, mas referindo-se à ADI, sugere-se a leitura do acórdão proferido na ADI 223 MC (Relator(a): Min. PAULO BROSSARD, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 05/04/1990, DJ 29-06-1990 PP-06218 EMENT VOL-01587-01 PP-00001).
[13] Art. 11. (…)
§ 1º. A medida cautelar, dotada de eficácia contra todos, será concedida com efeito ex nunc, salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa.
[14] Art. 11. (…)
§ 2º. A concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário.
[15] https://www.conjur.com.br/2022-mai-15/processo-tributario-suspensao-processos-suspensao-exigibilidade/
[16] Art. 21. O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo.
[17] Art. 313. Suspende-se o processo:
a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente;
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