Ratificação de terras na faixa de fronteira: origens e desafios
14 de setembro de 2024, 17h20
O proprietário rural brasileiro não pode, jamais, “dormir no ponto” e esquecer de conferir a situação jurídica de seu imóvel.
Ponto que mais chama a atenção para o futuro próximo, e que demanda uma atenção especial do produtor rural, é a ratificação das áreas localizadas na chamada “faixa de fronteira”, cujo prazo para regularização é outubro de 2025, devendo desde logo o proprietário iniciar a análise documental, já que há diversas exigências para que a ratificação ocorra de forma adequada. O descumprimento do prazo previsto na Lei 13.148/2015 pode implicar a perda da propriedade para a União.
Mas o que é a “faixa de fronteira” e qual a razão de ser necessário ratificar a matrícula do meu imóvel?
A faixa de fronteira, da qual ultimamente tanto se fala, é objeto de legislação desde a Lei 601/1850 (Lei de Terras), regulamentada à época pelo Decreto 1.318/1854, servindo para permitir ao governo doar terras localizadas a até dez léguas da fronteira com outros países (66 quilômetros), com o fim de povoar as fronteiras e assegurar sua ocupação, frente o temor de que as áreas pudessem vir a ser habitadas por estrangeiros — para além da faixa de fronteira, o governo apenas poderia vender suas terras aos particulares.
Com a Constituição de 1891, definiu-se que pertenciam à União as terras devolutas localizadas na “porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras” (artigo 64), de modo que a então faixa de fronteira, criada pela Lei de Terras de 1850, passou a delimitar as terras devolutas de propriedade da União. A partir de então, todos os atos realizados por estados no sentido de entregar terras devolutas localizadas nesta faixa a particulares eram irregulares, pois se estava doando ou vendendo aquilo que não lhes pertencia.
Faixa de segurança
Com a Constituição de 1934, foi mantida a faixa de fronteira em 66 quilômetros. Entretanto, criou-se a “faixa de segurança”, de 100 quilômetros (artigo 166), a qual manteve a propriedade das terras devolutas aos estados, mas passou a obrigar, para que estes cedessem aos particulares estas terras, anuência do então criado Conselho Superior de Segurança Nacional.
Com o Estado Novo, e a Constituição varguista de 1937, a faixa de segurança, foi ampliada para 150 quilômetros (artigo 165); manteve-se, novamente, a faixa de fronteira em 66 quilômetros. O regime foi mantido pela Constituição de 1946.
Em 1955, com a Lei 2.597/1955, definiu-se que a faixa de fronteira e a faixa de segurança, ambas, seriam de 150 quilômetros da fronteira. Com isso, as terras devolutas entre 66 e 150 quilômetros passaram do domínio dos estados para a União.
Este regime manteve-se desde então. Com o Estatuto da Terra (Lei 4.947/1966), criou-se o Ibra (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária), cujas competências foram incorporadas pelo Incra com sua criação, em 1970 — Decreto-Lei 1.110/1970) —, autorizando-se, expressamente, a ratificação das terras incorretamente cedidas a particulares pelos estados.
Aumento de exigências para regularização
Com isso, desde então existe a possibilidade de regularização destas terras (ratificação). Mesmo objetivo é o da Lei 13.178/2015, que transferiu do Incra para os registros de imóveis a competência para realizar a ratificação; a lei, apesar de agilizar o procedimento de ratificação, ampliou as exigências para sua aprovação.
A linha temporal analisada das faixa de fronteira e faixa de segurança explica a forma como se dispôs o regime de ratificação na Lei 13.178/2015:
Art. 3º A ratificação prevista nos arts. 1º e 2º alcançará os registros imobiliários oriundos de alienações e concessões de terras devolutas: (Vide ADI 5.623)
I – federais, efetuadas pelos Estados:
a) na faixa de até sessenta e seis quilômetros de largura, a partir da linha de fronteira, no período compreendido entre o início da vigência da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, até o início da vigência da Lei nº 4.947, de 6 de abril de 1966 ; e
b) na faixa de sessenta e seis a cento e cinquenta quilômetros de largura, a partir da linha de fronteira, no período compreendido entre o início da vigência da Lei nº 2.597, de 5 de julho de 1955 , até o início da vigência da Lei nº 4.947, de 6 de abril de 1966 ;
II – estaduais, efetuadas pelos Estados sem prévio assentimento do Conselho de Segurança Nacional:
a) na faixa de sessenta e seis a cem quilômetros de largura, a partir da linha de fronteira, no período entre o início da vigência da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, até o início da vigência da Lei nº 2.597, de 5 de julho de 1955 ; e
b) na faixa de cem a cento e cinquenta quilômetros de largura, a partir da linha de fronteira, no período entre o início da vigência da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, até o início da vigência da Lei nº 2.597, de 5 de julho de 1955 .
Estatuto da Terra
Veja-se que o limite para a ratificação das terras é a criação do Estatuto da Terra, de 1966, já que, com ele, houve a criação do Ibra e, logo depois, do Incra, órgão (e autarquia) que passaram a monopolizar a cessão de terras nestas áreas.
Temos, portanto, que o âmbito de atuação da chamada Lei da Ratificação (13.178/2015) é restrito aos de cessão irregular de terras por estados a particulares, seja pela não obtenção de autorização do Conselho de Segurança Nacional, seja por terem sido entregues terras da União, que não pertenciam aos estados cedentes.
Inicialmente, a Lei 13.178/2015 concedia o exíguo prazo de quatro anos para a realização das ratificações. A fim de preservar a segurança jurídica, entretanto, era absolutamente necessária a concessão de maior prazo, o que foi promovido pela Lei 14.177/2021, que ampliou o prazo para os pedidos de 2019 para 2025.
Entretanto, não é apenas com o prazo, que agora é exíguo, já que estamos a um ano de seu esgotamento, que os proprietários devem se preocupar. Grande problema decorrente da fixação dos registros de imóveis como competentes para a realização das ratificações é o estabelecimento de normas aptas a guiar o procedimento a ser realizado, especialmente a definição de quais documentos seriam aptos a comprovar as exigências previstas em Lei, e quais exigências podem os cartórios realizar.
Afinal, apesar de a Lei fixar critérios para a ratificação (artigos 1º e 2º), o Supremo Tribunal Federal ter instituído outros mais (ADI 5.023) e a legislação a reger os atos registrais ser uma para todo o Brasil (Lei de Registros Públicos — 6.015/1973 e Código Nacional de Normas — Foro Extrajudicial — CNJ), os critérios específicos na condução dos atos registrais demanda a regulamentação e fiscalização pelos Tribunais de Justiça de cada estado (artigo 236, §1º, CF), de modo que cada estado acaba por ter, ao final, e ainda que parecidas, normas específicas aptas a regular os pedidos de ratificação.
Regularização distinta em três estados
A título exemplificativo, podemos tomar as distintas regulamentações havidas entre Paraná, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
Mato Grosso acabou por tornar o procedimento mais burocrático dentre os três estados analisados, exigindo, inclusive, advogado constituído para se realizar o pedido junto aos registros imobiliários (artigo 1.364, Código de Normas do Foro Extrajudicial — MT), bem como a participação de engenheiro, mediante a demonstração de ART ou TRT (artigo 1.364-A, inciso II) e laudo técnico de produtividade.
O Paraná (artigo 656-BU a 656-CD, Código de Normas do Foro Extrajudicial — PR), a seu turno, apesar de exigir ART, dispensa a exigência de advogado constituído para a realização do pedido e laudo técnico de produtividade (o que é suprido pela demonstração de que, no CCIR, consta a propriedade como produtiva), ainda que o atendimento por profissional habilitado e competente seja indispensável para um procedimento correto e adequado.
Em sentido oposto aos dois primeiros estados analisados, temos o Mato Grosso do Sul (Provimento nº 309/2024 — CGJMS), que dispensa grande parte dos documentos exigidos pelos outros estados sem que isso afaste o caráter sério e adequado das exigências — temos, em verdade, o único dentre os três estados que, na regulamentação do procedimento de ratificação, tomou a sério a Lei da Desburocratização (Lei 13.726/2018) e o princípio da eficiência que deve reger a administração pública (artigo 37, CF).
Exigir menos não significa atuar de forma descriteriosa; pelo contrário, significa respeito ao cidadão que atua de boa-fé e, frente a inúmeras exigências, vê-se engolido pela enorme burocracia estatal.
Nem todos os estados facilitam
Apesar de longas burocracias observadas em Mato Grosso e no Paraná, estes estados, ao menos, já possuem regulamentação específica para a matéria, o que não ocorre em muitos outros, que atualmente deixam na mão de cada um de seus cartorários a elaboração de exigências, imprimindo longas e infindáveis listas de documentos, úteis e inúteis, a serem levantados anteriormente à realização do pedido, ou mesmo como exigências após seu protocolo.
Faz-se importante ainda a análise pormenorizada, e caso a caso, das exceções à ratificação, previstas nos incisos I e II do artigo 1º da Lei 13.178/2015:
Art. 1º São ratificados pelos efeitos desta Lei os registros imobiliários referentes a imóveis rurais com origem em títulos de alienação ou de concessão de terras devolutas expedidos pelos Estados em faixa de fronteira, incluindo os seus desmembramentos e remembramentos, devidamente inscritos no Registro de Imóveis até a data de publicação desta Lei, desde que a área de cada registro não exceda ao limite de quinze módulos fiscais, exceto os registros imobiliários referentes a imóveis rurais:
I – cujo domínio esteja sendo questionado nas esferas administrativa ou judicial por órgão ou entidade da administração federal direta e indireta até a data de publicação da alteração deste inciso;
II – que sejam objeto de ações de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária ajuizadas até a data de publicação desta Lei.
§ 1º. Na hipótese de haver sobreposição entre a área correspondente ao registro ratificado e a área correspondente a título de domínio de outro particular, a ratificação não produzirá efeitos na definição de qual direito prevalecerá.
Especialmente quanto à existência questionamento do domínio, frente a vagueza do texto normativo, impõe-se uma análise criteriosa e específica, não se devendo admitir que a ocorrência de procedimentos administrativos que não digam respeito diretamente à origem do título impeça a ratificação.
Já casos como terras em inventário ou outros litígios sobre o domínio devem também demandar cuidado redobrado, a fim de que o entre particulares não leve à perda do prazo e, consequentemente, do domínio pelos litigantes.
Burocracia entre Congresso e Incra
A problemática regulamentação da matéria, entretanto, não se encerra na existência de critérios distintos a depender do estado (ou do município) em que localizada a propriedade a ter seu título ratificado, na excessiva burocracia em alguns deles e em hipóteses excepcionais.
Também se prevê graves entraves para a ratificação das propriedades que, quando da promulgação da Lei 13.178/2015, possuíam áreas superiores a 2.500 ha (dois mil e quinhentos hectares), as quais demandam autorização do Congresso para que tenham seus títulos ratificados (exigência traçada pela Constituição em seu artigo 49, inciso XVII e replicada pela Lei da Ratificação).
A norma é clara: é necessário que se peça ao Congresso a autorização para a ratificação; entretanto, não há no seu regimento interno qualquer regulamentação sobre a matéria, sendo que, quando consultada a ouvidoria do Congresso, ela indica a necessidade de que se consulte o Incra para que seja realizado o procedimento, o que vai de encontro à disposição em lei. A burocracia é longa.
A luta dos proprietários rurais para a consolidação de suas terras é perene. Hoje, aqueles de boa-fé que adquiriram propriedades dos estados se veem na possibilidade de perdê-las caso descumpridas longas burocracias, inobservadas exigências procedimentais deletérias traçadas pelo Estado e “descobertos” procedimentos administrativos vistos como impeditivos à ratificação, apesar de nada terem a ver com o título a ser ratificado.
O desrespeito à propriedade privada é antigo no Brasil, e estamos em via de vermos mais um capítulo dessa história se concretizar com o fim do prazo de outubro de 2025.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!