Opinião

Limites claros: paródia não pode 'esculhambar' música original!

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14 de setembro de 2024, 11h18

No ar, a polêmica sobre a decisão (0920539.55.2024.8.19.000 — Chico Buarque e  Gilberto Gil contra Tiago Luis Pavinatto Gonçalves) que proibiu o uso da canção “Cálice”, de autoria de Chico e Gil, pelo advogado Pavinatto.

Gil e Chico nos anos 1970

O caso se refere à obra derivada, criada de forma desautorizada, da obra musical “Cálice” pelo advogado, criada com o fim de se expressar para criticar, em especial, o ministro Alexandre de Moraes, e tendo como conteúdo também outros temas, em postura político-ideológica totalmente contrária — absolutamente antitética, registre-se — ao que se conhece como o conteúdo literário da referida obra musical originária.

A decisão judicial determinou que a empresa Meta (responsável por Instagram e Facebook) retirasse de circulação a versão do réu, baseando-se, principalmente, na regra dos três passos, seguindo jurisprudência do STJ.

Regra dos 3 passos

Vale dizer que, nos termos da decisão, a regra dos três passos (chamada de teste dos três passos) é devidamente indicada. A decisão é correta.  A obra, portanto, poderia ser reproduzida sem autorização: 1) em certos casos especiais; 2) desde que a reprodução não conflitasse com a circulação normal da obra e 3) desde que não prejudicasse injustificadamente os interesses do autor. No caso do STJ, indica, a decisão, da 3ª Turma do STJ, REsp 2008.122/SP, de 5 de setembro de 2023 (Informativo 785).

Inconformado, Pavinatto contesta a decisão e vem se manifestando em veículos de mídia alternativa na internet e nas redes sociais, indicando que haveria a prática de censura (sic) contra si por conta da decisão. A declaração do réu Pavinatto comprova a tese que iremos demonstrar como legítima para retirar de circulação a referida obra derivada, ou seja, a paródia em si. O direito ainda importa no Brasil e, como diz o historiador Edward Thompson, o direito importa e por isso nos importamos com tudo isso.

É verdade que o sistema de direitos autorais prevê limitações e exceções aos direitos autorais, mas, como se verá, não na forma do que pretende o réu.

O primeiro dispositivo a se examinar é o artigo 47 da Lei 9610/98:

Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.

Em uma leitura mesmo que superficial do dispositivo já se vislumbra que há duas condicionantes para a sua aplicação: 1) que a obra não seja verdadeira (ou seja, mera) reprodução da obra preexistente ou que 2) a nova obra derivada não implique descrédito à obra originária.

A obra confrontada não é mera reprodução [1] do original, mas comporta um novo uso por meio de criação adicional de letra, mantendo-se apenas inalterados os elementos musicais. Desta forma, não se está diante da primeira condicionante do dispositivo.

No que diz respeito à segunda condicionante, que é a proibição quanto ao descrédito que pode vir a se causar à obra originária (e ao autor, como consequência), já desmonta qualquer tese do réu sobre eventual censura à sua paródia.

Ora, os compositores compuseram uma canção em um momento histórico do país em que a censura, de fato, imperava e a compuseram de forma a confundir os censores e conseguir tornar pública a canção. Houve um “drible da vaca” hermenêutico nos censores, naquela ocasião, lembrando expressão criada por Lenio Streck e que bem ilustra o caso.

Ora, o réu Pavinatto, ao escrever a sua letra e sua versão com críticas ao ministro Alexandre de Moraes ou ao que quer que seja, escolheu justamente uma canção ideológica de luta contra a censura. Eis o paroxismo. Não o faz por acaso, o faz para “causar” como hoje se diz por aí.

Aliás, em vídeo postado nas suas redes sociais [2], o réu cita diversas vezes que estaria sendo censurado por aqueles que lutavam contra a censura, deixando absolutamente exposto o “DNA da lacração”. Diz o réu, nas suas redes:

“O autor de afasta de mim esse cálice, acabou de me calar.” Ah Pavinatto, nem dá para disfarçar um pouco? O réu tenta, ele também, um drible da vaca hermenêutico, mas ele não é um craque, e fracassa!

Não cola

O claro objetivo do réu é jogar luz sobre tudo o que diz utilizando-se da canção “Cálice” numa metalinguagem, para comprovar que é um homem livre e aqueles que se diziam livres são os seus censores. Não cola. Mas não cola, mesmo. O argumento é de nível intelectual pífio. Raso.

Por que não utilizou alguma canção contemporânea, de algum artista que seja do mesmo campo ideológico que o seu? Em primeiro lugar porque seria difícil encontrar alguma canção sobre censura na contemporaneidade, por uma razão desde já evidente: não se trata do mesmo momento histórico, ou seja, não há censura instituída, ainda que eventualmente o réu se sinta limitado em seus direitos, não por censura, mas por exceder-se onde a lei não permite.

Pavinatto, de fato, consegue o que almejou: a discussão pública sobre a censura alegadamente praticada pelos compositores que escreveram, outrora, contra a censura. Ora, ora.

Aliás, não sendo sequer compositor (ao menos não profissionalmente, ao que parece) por que resolveu fazer uma sazonal paródia em tom crítico? Estranho, não? Baita coincidência que seja uma canção contra a censura.

Direito autoral não é censura

Outro ponto importante é que o réu pretende atribuir a tudo o que se faz uma liberdade absoluta e, portanto, quem estiver no campo oposto será o seu censor. Disciplina, respeito a lei e à ordem não podem ser confundidos com censura. E o respeito à lei de direitos autorais também não é censura.

Não basta dizer que está sendo censurado e, com isso, a censura aparece, num passe de mágica. A argumentação de que se está sendo censurado não é uma espécie de salvo conduto, de super trunfo.

Censura implica que tenha ocorrido, de fato, limitações que não estejam previstas na lei, no ordenamento, no sistema jurídico. Não há “licença para falar” numa espécie de “licença para matar” da liberdade de expressão. Não há espaços para discursos autocontraditórios.

Utilizar a própria paródia com o objetivo inequívoco de provocar o mal-estar nos compositores para lhes imputar censura é a comprovação, por si só, de que há descrédito na obra derivada. Há de se lembrar, uma obra derivada se baseia numa anterior que a antecede.

A regra geral para que seja permitida a sua divulgação é a autorização prévia do seu autor. A exceção legal se dá, por exemplo, pela paródia, mas desde que cumpridas as condicionantes. E por que utilizar uma obra que denunciava a censura?

A escolha da obra com o objetivo de modificar o seu teor e posteriormente alegar censura é fato desabonador, tanto frontalmente quanto com a presença da meta linguagem, e merece rechaço, como fez o tribunal, ainda que utilizando outra tese, qual seja, a da regra dos três passos.

O que se descortina é uma obviedade: as limitações de direitos autorais também são limitadas, sobretudo no que a lei determina de forma expressa. Sim, há um limite aos limites! Portanto: uma obra derivada que implicar descrédito à originária (primígena, como diz a lei) afronta o direito de autor, pois a limitação é condicionante a que não se pratique ato que gere descrédito. Gerando descrédito, há violação.

Atribuir, por meio de uma metalinguagem de mau gosto, a condição de censores a compositores que escreveram uma letra contra a censura, é violar a lei. E ao bom senso. Curioso que Pavinatto, nas suas redes, ao citar o artigo 47 afirma, em suma, que a lei brasileira trata da paródia como uma permissão legal, mas não informa que havendo descrédito, não se sustenta a permissão pela limitação do direito de autor.

Com isso, já poderíamos encerrar. Mas há mais

A mesma lei dispõe também sobre os denominados direitos morais de autor. Os que interessam ao caso são os indicados nos incisos IV e VI, nomeados direito de integridade e direito de retirada (ou arrependimento):

Art. 24. São direitos morais do autor:
(…)
IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;
(…)
VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;

O inciso IV determina a proteção contra violações praticadas à obra que possam prejudicá-la ou atingir o autor, na sua reputação ou honra. O prejuízo seria contra a obra, já a afronta seria à imagem ou honra do autor.

Trata-se de análise que precisa ser feita à luz da integridade da obra, ou seja, deve haver alguma modificação para que a obra não esteja mais íntegra. A modificação total da letra é violação suficiente de integridade que justifica a aplicabilidade do artigo.

Nesse sentido, não é um exercício difícil verificar que atribuir a condição de censor a quem escreveu obras contra a censura é frontalmente violador do dispositivo legal. Não há dúvida de que se trata de violação à honra do autor.

Ora, é evidente que se está diante de uma violação de direito de autor quando o réu faz uso de uma obra buscando a proteção legal com o objetivo (ainda que não seja o único) de atingir o autor. O conteúdo da paródia, por outro lado, ainda mais comprova a tese contra o réu.

Há, pois, um paradoxo: quanto mais o réu pretende se autodenominar livre para que os compositores da obra primígena sejam considerados censores, mais ele comprova a metalinguagem e o artifício que deve, de fato, ser proibido de praticar.

Como complemento argumentativo, com o direito (ou faculdade) de retirar a obra de circulação por afronta à sua imagem e reputação, o autor pode fazer cessar a circulação da obra, mas também nesse caso há uma condicionante.

A condicionante que está prevista no parágrafo 3º é a necessidade de o autor, caso exerça o seu direito com o objetivo de promover a retirada de circulação da obra, arcar com as indenizações a tantos quantos sejam os terceiros envolvidos (artigo 24. § 3º Nos casos dos incisos V e VI, ressalvam-se as prévias indenizações a terceiros, quando couberem.).

Por outro lado, e também em referência à circulação da obra, deve-se compreender que se ela serve até mesmo para obras para as quais o autor tenha autorizado a circulação, também servirá àquelas paras as quais ele não tenha autorizado.

Claro, nesse ponto poderá ser argumentado que a paródia é livre. Mas ocorre que ela é livre se não puder ser observada a luz da condicionante do artigo 47, qual seja, o descrédito. Se há descrédito, não poderia ter sido efetuada de forma desautorizada (a não ser que alguém interpretasse que um autor autorizaria um descrédito, o que parece, no mínimo, esdrúxulo) e, portanto, pode ser retirada de circulação.

Conclusão

Como conclusão lógica e sistêmica, não se pode esquecer que os direitos morais de autor recebem proteção legal para que sejam mantidos na órbita do criador, pois são irrenunciáveis e inalienáveis, o que transforma o processo de proteção contra paródias que venham a violar os direitos em algo ainda mais fortalecido. Ainda que fosse uma opção, não poderiam os compositores deixar de lado as faculdades previstas no artigo 24 da Lei 9610/98, por força do artigo 27.

E, por fim, no mesmo entender lógico, o conteúdo de liberdade atribuído pela limitação prevista no artigo 47 não pode se opor ao conteúdo dos artigos 24 e 27. Nesse sentido, é livre a paródia, desde que não haja descrédito, como já determina a condicionante do artigo 47 (o que é evidente, no caso em tela) e desde que não viole as condições que conduzem às faculdades morais (cabe melhor do que nunca aqui, o termo “faculdade”) que são expressas pela proteção da reputação, da honra, da imagem.

Há também um conteúdo didático na decisão judicial ao determinar, uma vez mais, que o terreno da liberdade de expressão não é o mesmo da prática de crimes e nem da possibilidade de ofensas ou atribuições de descrédito, ainda que por meio de metalinguagens. Liberdade implica evidente compreensão do que é responsabilidade e aquele que faz uso da liberdade para a prática de excessos sob o manto de um direito absoluto precisa compreender as evidentes nuances de um sistema que é baseado, primordialmente, no equilíbrio.

No caso em tela, o sistema de direitos autorais demonstra equilibrar de forma adequada e prudente o uso das obras. Há liberdade, mas não para ofender, sobretudo o criador da obra primígena. Ora, que o réu criasse outra obra derivada baseado em alguma canção do seu campo ideológico e não haveria o mesmo limite aos limites.

Numa palavra final: Pavinatto resvala naquilo que chamamos no direito (e o direito importa muito, pois não?) de “venire contra factum proprium” (ninguém pode tirar proveito da própria torpeza — ou esperteza). Isso é velho, vem, no direito, desde 1895 (caso Riggs v. Palmer), quando o neto matou o avô para ficar com a herança.

Para além da proibição do assassinato, não havia lei, no campo do direito sucessório, que proibisse o próprio matador de receber a herança. Elmer, o neto, fez o cálculo: cumpro a pena e, depois, curto a fortuna. Em primeiro grau Elmer venceu. No segundo grau, lascou-se. O Tribunal de Nova York disse: ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza. Você não pode criar o problema e depois se apresentar como vítima ou querer apresentar a solução.

Aqui temos que Pavinatto, de algum modo, “matou o avô”. Fez a paródia. Malfeita. A justiça vetou. E agora se diz prejudicado. “Ah, fui censurado”. Vítima de si mesmo? Ao que se sabe, Elmer, o neto, também reclamou. “Ah, fiquei sem a herança. E preso”.

Pronto. Acho que conseguimos repor a verdade acerca do que é isto – uma paródia. E dos seus limites. Direitos autorais devem ser levados muito a sério. Em respeito à cultura. Em respeito aos artistas. E em respeito à história!

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[1] Aqui há de se reconhecer que o sentido de reprodução é um pouco diferente do utilizado na maior parte das citações do sistema de direitos autorais, pois se refere não ao ato em si de fazer cópias (direito de cópia, copyright), mas o de permitir a multiplicação de acesso à obra, num conceito mais amplo do ato de reprodução que, de fato, é a gênese da reprodução, já que esta era a única forma de reprodução possível desde meados do século XV até finais do século XIX.

[2] Perfil da rede social do réu @pavinatto: https://www.instagram.com/reel/C_3Hv6HPihV/?igsh=MW9lMGt3Nzg1bHV2cQ%3D%3D

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