O Brasil em chamas e o STF como guardião climático
13 de setembro de 2024, 10h14
O ano de 2024 ainda não acabou, mas já entrou para a nossa história recente como o ano dos maiores desastres climáticos verificados no Brasil, pelo menos até o presente momento, já que segundo o último relatório (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, esse será o novo normal climático, com episódios climáticos extremos cada vez mais intensos e frequentes.
Entre enchentes, secas e incêndios, os episódios climáticos extremos bateram todos os recordes históricos em 2024 e impuseram-se como nunca na vida cotidiana dos brasileiros, impactando direitos fundamentais e fragilizando, ainda mais e de forma desproporcional, grupos sociais vulneráveis. A título de exemplo, nas enchentes de abril/maio deste ano no Rio Grande do Sul, verificou-se, conforme dados oficiais, a formação de um contingente de mais de meio milhão de deslocados climáticos.
Nas últimas semanas, ao invés dos rios voadores, nuvens de fumaça tóxica das queimadas na Amazônia, no Pantanal e de várias outras regiões circularam e cobriram o céu do Brasil de Norte a Sul. Diversas cidades brasileiras, como São Paulo e Porto Velho, figuraram, nesse período, entre as cidades com a pior qualidade do ar no mundo.
Nem o Sul do Brasil escapou, com algumas cidades do estado do Rio Grande do Sul registrando o fenômeno da “chuva negra”, resultante do encontro de uma frente fria com a fumaça tóxica das queimadas, cenário que nos faz lembrar de Cubatão (SP), que, na década de 1970 foi considerada como sendo a cidade mais poluída do mundo e cuja região foi denominada de “vale da morte”.
Naquela época, no entanto, não existia ainda o Direito Ambiental no Brasil, cuja gênese verificou-se com a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981). Tampouco tínhamos a Constituição de 1988 e a constitucionalização” da proteção ecológica (artigo 225), e menos ainda um Direito Climático. [1]
Hoje o cenário jurídico é substancialmente outro e a resposta do Sistema de Justiça, e, em particular, do Poder Judiciário, deve ser compatível com esse panorama normativo (convencional, constitucional e infraconstitucional).
‘Zonas de sacrifício’
Os cenários mais graves de poluição atmosférica provocados pelas queimadas nas últimas semanas — como verificado, por exemplo, em Porto Velho — transformaram determinadas localidades em verdadeiras “zonas de sacrifício climático”, adaptando para uma versão climática a expressão “zonas de sacrifício” utilizada recentemente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) na sentença proferida no Caso Habitantes de La Oroya vs. Peru (2023), publicada no primeiro semestre de 2024.
As “zonas de sacrifício” referem-se a cenários fáticos de poluição extrema e violação sistemática e massiva de direitos fundamentais (e humanos), impactando, ademais, grupos sociais vulneráveis de forma desproporcional. Em alguma medida, a categoria jurídica das zonas de sacrifício identifica-se com um estado de coisas inconstitucional ambiental e climático.
Em suma, o fato é que estamos — por mais que alguns ainda insistem em negar — vivenciando um verdadeiro “estado de emergência climática”, tal como reconhecido expressamente no voto-vogal proferido pelo ministro Luiz Edson Fachin por ocasião do julgamento da ADPF 708/DF (Caso Fundo Clima) pelo STF. [2]
A questão das queimadas, diretamente conectada com o desmatamento florestal e as mudanças climáticas, tem sido objeto de diversas ações perante o STF. A título de exemplo, destacam-se as ADPFs 743/DF, 746/DF e 857/DF, promovidas no ano de 2020 por partidos políticos (PSB, PT e Rede Sustentabilidade).
As ações constitucionais suscitadas cobraram a elaboração de um plano governamental para a proteção da Amazônia e do Pantanal em razão dos incêndios verificados à época nos referidos biomas.
Em 20/3/2024, o STF julgou, por unanimidade, parcialmente procedentes os pedidos formulados nas referidas ADPFs, determinando ao governo federal, entre outras medidas, apresentar, no prazo de 90 dias, um “plano de prevenção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, que abarque medidas efetivas e concretas para controlar ou mitigar os incêndios que já estão ocorrendo e para prevenir que outras devastações dessa proporção não sejam mais vistas”, bem como que um “plano de recuperação da capacidade operacional do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais – Prevfogo”.
O ministro Flávio Dino, na condição de relator das ações, tendo em conta o trânsito em julgado da referida decisão e para assegurar o seu cumprimento, obrou com costumeiro acerto ao exarar provimento monocrático nas ADPFs em 12.08.2024, designando audiência de conciliação, a ser realizada no dia 10/9/2024.
De lá para cá, ainda que o desmatamento no bioma amazônico tenha recuado substancialmente nos últimos anos, conforme dados oficiais do Inpe [3], o que foi determinante para o STF afastar a declaração de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental nas referidas demandas — onde tal reconhecimento foi pleiteado — e reconhecer um panorama progressivo de conformidade constitucional, o cenário de incêndios agravou-se de forma sem precedentes nas últimas semanas, avançando inclusive em outras regiões do Brasil. A título de exemplo, o estado de São Paulo registrou um cenário sem precedentes de incêndios nesse período.
Instado por esse novo cenário, o ministro Flávio Dino corretamente proferiu nova decisão monocrática em 27/8/2024, mantendo a audiência já agendada, mas também, como medida urgente, determinando a intimação dos ministros da Defesa, da Justiça e Segurança Pública e do Meio Ambiente para:
“a) mobilizarem, em no máximo 15 dias, todo o contingente tecnicamente cabível das Forças Armadas, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Força Nacional (incluindo Bombeiros Militares) e da Fiscalização Ambiental para atuação preventiva e repressiva quanto a incêndios no Pantanal e na Amazônia (objeto específico desta ADPF) (…); e b) proporem ao Chefe do Poder Executivo Federal, se for necessário, a abertura de créditos extraordinários para fazer face ao custeio das ações emergenciais (…).”
Na audiência do dia 10/9/2024, após a oitiva das partes envolvidas na ação e com o objetivo avançar no cumprimento do regime de normalização constitucional das medidas de proteção ambiental no Pantanal e da Amazônia, o ministro Flávio Dino, considerando o agravamento progressivo das queimadas e dispersão da fumaça tóxica em todo o território nacional nas duas últimas semanas, determinou diversas medidas, entre as quais:
“(…) b) Convocação imediata de mais bombeiros militares para a Força Nacional, oriundos dos estados que não estão diretamente atingidos pelos incêndios florestais (…); c) Realização de mutirão das Polícias Judiciárias (Polícia Federal e Polícias Civis) e da Força Nacional para investigação e combate das causas de surgimento de incêndios por ação humana, nos 20 municípios elencados pela AGU, nesta audiência, que hoje centralizam 85% dos focos de incêndios de todo o país. O mutirão referido deve abranger o Ministério Público e o Poder Judiciário, conforme deliberações do CNMP e do CNJ; d) Apresentação pelo Ministério da Gestão e Inovação, em 30 (trinta) dias corridos, de plano de aprimoramento e integração dos sistemas de gestão territorial, notadamente o CAR e os relativos à autorização de supressão vegetal; (…) g) Ampliação do número de aeronaves, mediante emprego das Forças Armadas, bem como contratação ou requisição junto ao setor privado (…).; (…) i) Ampliação do efetivo da Polícia Rodoviária Federal na fiscalização no âmbito da Amazônia e do Pantanal (…).”
A decisão proferida pelo ministro Flávio Dino na audiência desta semana, é absolutamente legítima e está de acordo com o monitoramento que lhe cabe fazer do cumprimento da decisão (já transitada em julgado) adotada pela Corte ao julgar parcialmente procedentes as ações referidas.
Além disso, o processo em andamento no STF revela-se como sendo um típico processo estrutural, sendo possível falar até mesmo de um processo estrutural climático. A natureza desse tipo de ação envolve não apenas um olhar para passado, mas igualmente um olhar para o futuro, notadamente no sentido de buscar uma solução obtida por meio do diálogo constante e interinstitucional com os diversos agentes envolvidos.
Processo dinâmico
Não é um processo estático, mas sim um processo dinâmico e prospectivo. Há a necessidade de conformação progressiva de comportamentos — por exemplo, por parte de órgãos governamentais — a fim de assegurar o devido e efetivo cumprimento da decisão do STF.
Ademais, a natureza peculiar das decisões estruturais do Supremo revela justamente essa perspectiva futura e mesmo prognóstica, ou seja, com a alteração do cenário fático, novas medidas não somente podem, como devem ser adotadas, de modo a assegurar o efetivo cumprimento das decisões proferidas pela Corte. Em caráter ilustrativo, cita-se a criação, pelo STF, do Núcleo de Processos Estruturais Complexos (Nupec) a fim de auxiliar na condução de tais processos.
Tais desenvolvimentos, aliás, não tem ocorrido apenas no Brasil, como se sabe. Apenas para referir um caso emblemático, a Corte Suprema de Justiça da Argentina, em situação similar envolvendo incêndios na região do Delta do Paraná, adotou, no ano de 2020, decisão de natureza estrutural e criou Comitê de Emergência Ambiental.
Em ação coletiva promovida por associação civil contra o Estado Nacional, as províncias de Santa Fé e Entre Ríos e os municípios de Rosário e Victoria, em virtude dos incêndios irregulares que vêm ocorrendo na cadeia de ilhas ao largo da costa da cidade de Rosário, ordenou, como medida preventiva, que as províncias e os municípios processados constituíssem, imediatamente, um Comitê de Emergência Ambiental, com o objetivo de adotar medidas efetivas para a prevenção, o controle e a cessação de incêndios irregulares na região do Delta do Paraná.
A decisão ordenou igualmente que, dentro de 15 dias de calendário, fosse apresentado ao tribunal um relatório sobre o cumprimento das medidas ordenadas, a criação do Comitê de Emergência Ambiental e as ações tomadas.
O Tribunal considerou, amparado na legislação climática argentina — Lei de Pressupostos Mínimos de Adaptação e Mitigação ao Câmbio Climático Global (Lei 27.520/2019) —, que existem elementos suficientes para considerar que os incêndios acima mencionados, embora constituam uma prática antiga, adquiriram uma dimensão que afeta todo o ecossistema e a saúde da população, de modo que não se trata de uma queima isolada de pastagens, mas sim o efeito cumulativo de numerosos incêndios que se espalharam por toda a região, colocando o meio ambiente em risco. [4]
Omissão constitucional
Do ponto de vista constitucional, o controle judicial de políticas públicas em matéria ambiental e climática é plenamente legítimo num cenário de omissão ou atuação deficiente ou insuficiente dos Poderes Legislativo e Executivo, como já se pronunciou o STF em diversas situações.
Ademais, a gravidade dos incêndios verificados nas últimas semanas — como igualmente se verificou nas enchentes do Rio Grande do Sul meses atrás — caracterizam uma situação de flagrante violação à vida, à dignidade e aos direitos fundamentais das pessoas afetadas, inclusive a ponto de se suscitar a salvaguarda do direito ao mínimo existencial (ambiental e climático [5]).
Como referido na passagem do voto-relator da ministra Cármen Lúcia na decisão proferida pelo STF na ADPF 760/DF (caso PPCDAm), citada pelo ministro Flávio Dino na sua decisão monocrática, “o dever constitucional de proteção ao meio ambiente reduz a esfera de discricionariedade do Poder Público em matéria ambiental, pois há uma imposição de agir a fim de afastar a proteção estatal deficiente e a proibição do retrocesso”. “A inércia do administrador ou sua atuação insuficiente configura inconstitucionalidade, autorizando a intervenção judicial.”
Além disso, é importante realçar o reconhecimento de deveres estatais de proteção climática — por exemplo, deveres de mitigação e deveres de adaptação -, tal como consagrado de forma paradigmática pelo STF nos julgamentos da ADPF 708/DF e ADO 59/DF (Caso Fundo Amazônia), ocorridos no segundo semestre de 2022. [6]
No ano de 2024, igual entendimento foi reforçado no julgamento da já referida e não menos emblemática ADPF 760/DF, com destaque para a passagem que segue do ministro Fux ao cravar expressamente no seu voto o reconhecimento de: “direitos e os deveres fundamentais ambientais, ecológicos e climáticos.” [7]
No mesmo sentido, o STF, no voto-relator do ministro Barroso lançado no julgamento da ADPF 708/DF, reconheceu expressamente os tratados internacionais climáticos (Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima de 1992 e Acordo de Paris de 2015) como espécie do gênero tratados internacionais de direitos humanos, dotando-os, portanto, do status jurídico de (no mínimo) supralegalidade e tornando imperativo — verdadeiro dever ex officio, conforme entendimento da Corte IDH — o exercício do denominado controle de convencionalidade por juízes e tribunais nacionais da legislação infraconstitucional e atos administrativos.
Para além dos deveres estatais de adaptação climática, como verificado na hipótese dos deveres estatais de prevenção e resposta a desastres climáticos, também merece destaque a incorporação dos deveres estatais de descarbonização da economia e da matriz energética brasileira incorporados no regime constitucional por meio da EC 123/2022, mediante a inclusão do novo inciso VIII ao § 1º do artigo 225 da CF/1988.
Por essa ótica, o atual Estado de Direito delineado pela CF/1988 passa a incorporar necessariamente também uma dimensão climática sob a forma de um Estado de Direito Climático. O recente Pacto pela Transformação Ecológica, celebrado poucas semanas atrás entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário ilustra bem esse cenário.
Por fim, cumpre enfatizar que a atuação do Poder Judiciário e, em particular, do STF, como guardião supremo da CF/1988, também legitima a Corte como sendo, no âmbito de suas competências, guardião da integridade e segurança do sistema climático e do direito fundamental a um clima limpo, saudável e seguro [8] titularizado pela coletividade e, em particular, pelas gerações mais jovens (crianças e adolescentes) e pelas gerações futuras (caput do artigo 225).
À vista de todo o exposto, é possível afirmar que o STF tem exercido, sem adentrar de modo constitucionalmente ilegítimo a esfera de atuação dos demais poderes estatais (que seguem tendo a primazia no que diz respeito à criação e execução de políticas públicas” e tomando a liberdade de invocar uma figura de linguagem, a função de uma espécie de “bombeiro”, a contribuir significativamente no processo de combate aos incêndios e demais desastres ambientais e climáticos que tem assolado o Brasil.
_________________________
[1] SARLET, Ingo W.; WEDY, Gabriel; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito climático. São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2023 (2.ed. no prelo).
[2] STF, ADPF 708/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Barroso, j. 01.07.2022.
[3] Disponível em: http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/legal_amazon/rates.
[4] Disponível em: https://www.cij.gov.ar/nota-38022-La-Corte-Suprema-ordena-constituir-un–Comit–de-Emergencia-Ambiental–para-detener-y-controlar-los-incendios-irregulares-en-el-Delta-del-Paran-.html.
[5] V. SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito ambiental. 4.ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2023, p. 442-461(5.ed. no prelo).
[6] O Tribunal Constitucional Federal alemão adotou entendimento similar ao do STF no julgamento da Caso Neubauer e Outros v. Alemanha (2020), ao reconhecer, com base no art. 20a da Lei Fundamental de Bonn, o reconhecimento de deveres estatais de proteção climática, bem como a dimensão intertemporal dos direitos fundamentais e garantias intertemporais de liberdade (intertemporale Freiheitssicherung), de modo a salvaguardar no presente os interesses e direitos fundamentais das gerações mais jovens e futuras.
[7] STF, ADPF 760/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, Red. Acórd. Min. André Mendonça, j. 14.03.2024.
[8] SARLET; FENSTERSEIFER, Curso de direito ambiental…, p. 373 e ss.
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