Licitação e alta administração: responsabilização pela assinatura?
13 de setembro de 2024, 8h00
Confessadamente, a responsabilização no âmbito da administração pública encorpa uma temática que perpassa anos, seja pela probidade que se impõe àqueles que lidam com o interesse e patrimônio públicos, como também pelo propósito de não maleficiar os destinatários finais a quem se destina o exercício da função administrativa.
A busca por uma administração eficiente e incorruptível compõe um traço, ao menos formalmente propalado, de todo e qualquer modelo de gestão democrático, cujo sufrágio ao accountability e transparência oportunize a devida fiscalização.
Em larga medida – e sem qualquer pretensão de palpitar números precisos –, é da essência da contratação pública a atração pela identificação de danos (ou mesmo violação a um ou outro princípio) e consequente responsabilização, independentemente da seara. Não é esta discussão, entretanto, o mais importante para este artigo.
O que se torna interessante é saber o grau de comprometimento que os agentes públicos têm em cada um – isolada ou conjuntamente – dos atos praticados ao longo do curso do processo de contratação pública.
A responsabilidade da alta administração
Apegado a esse objetivo determinante, a Lei nº 14.133/2021 impressiona um simples intérprete por engrenar, exaustivamente, ao longo de sua extensa organização normativa, a alta administração a todos os atos praticados no curso da licitação ou da execução do contrato.
Muito embora o controle almejado vise ao alcance de um modelo de administração estratégica – dissonante de um protótipo tático ou operacional –, distribuir a todos os agentes públicos envolvidos nos atos de contratação o mesmo nível de entrega é, implacavelmente, uma ficção, a qual, se assim assimilada, empobrece a melhor finalidade que se pode absorver da própria Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
O parágrafo único do artigo 11 da Lei nº 14.133/2021 preconiza que “a alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações”.
Trata-se, sem qualquer anseio de dúvidas, de uma ideia padrão, contra a qual é praticamente impossível fazer algum tipo de relutância. Logo, a alta administração (a despeito da minudência de uma precisa terminologia e definição) é tecnicamente responsável pelos objetivos do processo licitatório listados nos incisos do artigo 11, da Lei nº 14.133/2021.
Todos os cenários
Por outro lado, quando da abordagem sobre o controle das contratações, o legislador atribuiu os parâmetros para o exercício do controle interno à alta administração, na medida em que a ela impôs a implementação das práticas constantes no caput do artigo 169: “as contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação e, além de estar subordinados ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa (…)”.
Ainda que a Nova Lei se refira, constantemente, à segregação de funções (possivelmente, uma técnica de distribuição de responsabilidades), definitivamente, em todos os cenários, a alta administração parece estar envolvida. Lendo os termos da Lei nº 14.133/2021, a intepretação literal conduz ao entendimento de que, em todo e qualquer ato que deságue em possível responsabilização, a alta administração terá um possível grau de comprometimento.
Sucede que é manifestamente impossível – e, por que não, impraticável – culpar (em sentido genérico) um agente público, de elevado escalão (talvez, um conceito mais próximo ao de alta administração), por todo e qualquer ato, praticado no curso do processo de contratação pública, que proporcione responsabilização. Tratar-se-ia de uma espécie de competência negativa holística de responsabilidade.
Assinar e confiar
Fatalmente, não são todos os atos que, verdadeiramente, são exercitados pela alta administração, resumindo-se – possivelmente a maior parte deles – a um mero cumprimento solene de assinatura. Dessa maneira, da assinatura – em confiança – não pode decorrer uma resultante responsabilidade.
Imprescindível apontar que a alta administração de um ente que licita com mais frequência e em maior volume não corresponde a de um ente licitante mais tímido. Sendo assim, mais uma vez vem à tona o conceito de alta administração, cuja acepção é mutante e nem sempre pode presumir a integração por todos os agentes públicos que, de uma forma ou outra, assinam alguma autorização.
O agente da alta administração (primeiro escalão) que subscreve, em confiança ao procedimento interno e aos demais servidores que atuaram no certame, salvo inquestionável dolo, não pode sofrer responsabilização como resultado apenas e tão somente da assinatura.
Não raro, firma derradeiramente (homologando, revogando, anulando …) e, passado todo o procedimento de conferência e análise do procedimento por agentes responsáveis e técnicos, exercita essa atribuição em confiança ao sistema e ao procedimento e, principalmente, nos demais servidores.
Confiança comportamental interna na máquina administrativa, que merece proteção jurídica, exclui e afasta a responsabilidade pela simples assinatura, sobretudo se exercida com base no comportamento daquele em quem confia. A organização política e administrativa pressupõe uma certa dose de crédito, salutar para o processo de contratação pública.
Assinar e confiar é o mais impecável caminho, sobre o qual o princípio da segregação de funções a ele deve estar alinhado. De um punho (ou de um token), surgem inovações, jamais executadas em mãos travadas pelo medo.
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