PEC 50/2023 pode esvaziar o sentido das cláusulas pétreas
12 de setembro de 2024, 15h28
Tramita no Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 50/2023) que pretende incluir, entre as competências do Poder Legislativo, a prerrogativa de sustar decisões do Supremo Tribunal Federal por meio de decreto legislativo [1].
A proposta tem gerado críticas de diversos juristas brasileiros, que apontam uma violação ao princípio da separação dos poderes, pois retira do Judiciário a sua autonomia e a prerrogativa de ter a última palavra no julgamento de questões constitucionais [2]. Neste artigo, quero destacar uma singularidade desse projeto: a capacidade que ele tem de esvaziar o efeito das cláusulas pétreas constitucionais, ou seja: do limite material das emendas à Constituição.
As cláusulas pétreas da Constituição, previstas no artigo 60, §4º, formam o núcleo essencial do sistema constitucional de 1988, com o objetivo de garantir sua proteção máxima conforme o desejo do poder constituinte originário [3].
Essas cláusulas incluem a integridade do território nacional e a descentralização do poder político (pacto federativo), a proteção contra a concentração de poder (separação dos poderes), o princípio republicano (garantido pelo direito ao voto direto, secreto, universal e periódico), além do respeito às regras e princípios que asseguram os direitos e garantias individuais [4].
As cláusulas pétreas ainda consagram, no ordenamento brasileiro, o sistema de judicial review e o papel contramajoritário das cortes constitucionais, mesmo quando se trata do poder constituinte derivado. Isso significa que o princípio da revisão judicial, que autoriza o Judiciário a invalidar decisões legislativas que violem a Constituição, e o papel contramajoritário das cortes, que impede a tirania da maioria no sistema democrático, são fortalecidos pelas cláusulas pétreas. Elas garantem que emendas constitucionais que atentem contra o núcleo essencial da Constituição possam ser declaradas inconstitucionais, preservando a integridade desse sistema.
ADI 939-7-DF e vedação ao poder absoluto
Um exemplo do uso das cláusulas pétreas e do judicial review para invalidar emendas à Constituição pode ser encontrado na decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 939-7-DF, que analisou a inconstitucionalidade de parte do § 2º do artigo 2º da Emenda Constitucional nº 3/93. Nessa decisão, o STF concluiu que a emenda violava o princípio da imunidade tributária recíproca, uma garantia fundamental da Federação, protegida pelas cláusulas pétreas [5]. Assim, a corte declarou a inconstitucionalidade material parcial da emenda por afrontar “princípios e normas constitucionais inamovíveis”.
Se o Congresso tivesse o poder de revisar e anular essa decisão por meio de um ato político, uma garantia essencial, como a imunidade tributária recíproca, estaria sob risco de ser comprometida e revogada. Nenhuma diferença haveria entre o poder constituinte originário e o poder constituinte derivado, seu poder seria absoluto.
É assim que a PEC 50/2023 introduz uma mudança que pode comprometer a integridade das cláusulas pétreas da Constituição de 1988. O novo inciso XIX, proposto para o artigo 49, permite que o Congresso suste decisões do STF já transitadas em julgado, caso os parlamentares considerassem que essas decisões extrapolam os limites constitucionais.
Tentativa de extinção do papel contramajoritário do STF
Curiosamente, esse poder seria exercido com o mesmo quórum exigido para a aprovação de emendas: três quintos dos membros de cada Casa Legislativa, em dois turnos. Sob certo olhar, isso significa que o Poder Legislativo poderia aprovar uma emenda à Constituição que viole uma cláusula pétrea, desde que passe por quatro votações em cada casa do Congresso: duas votações antes da decisão do Supremo e duas votações após a decisão, para sustar seu efeito. A emenda consagra, assim, o desmantelamento do judicial review e a extinção do papel contramajoritário da corte, que passa a submeter-se ao poder da maioria parlamentar.
Esse último aspecto é particularmente sensível. O papel contramajoritário das cortes tem sido, desde a segunda metade do século passado, fundamental para que as democracias ocidentais assegurem os direitos das minorias e avancem em questões que, por sua natureza moral, encontram resistência por parte das maiorias [6]. No Brasil, por exemplo, temos temas como gênero, aborto e sistema prisional, quando deixados exclusivamente à mercê da vontade majoritária, tendem a resultar em violações sistêmicas dos direitos humanos.
Jargões contra o ‘Poder Supremo’
É evidente que a proposta de emenda à Constituição não considerou de forma aprofundada as consequências de sua eventual aprovação. Na exposição de motivos, suas justificativas são apresentadas com o uso de jargões comuns no debate político brasileiro contemporâneo, como as afirmações: não se pode falar em um “Poder Supremo para o Judiciário” e uma suposta ameaça do STF à soberania da maioria. Esses argumentos parecem estar ancorados em uma concepção de democracia majoritária, como se esse fosse o único critério legítimo para o funcionamento de uma democracia.
O fator político e o jogo de forças entre os três Poderes são centrais nesse debate. Conflitos como os embates entre o bolsonarismo e o STF, as controvérsias envolvendo o ministro Alexandre de Moraes e a judicialização de questões morais, como o aborto e o uso da maconha, têm impulsionado a discussão sobre os limites da atuação do STF em temas morais e políticos.
Esse cenário é amplamente evidenciado pelo alinhamento ideológico dos signatários da proposta, que parecem questionar a legitimidade do tribunal em decisões que tocam diretamente em pautas sensíveis. O efeito backlash [7] está flexionando, talvez, o sistema a rever a repartição de competências para uma guinada contra o papel contramajoritário e o judicial review.
Considerações finais
Com a possível aprovação da PEC 50, surgem, então, essas questões fundamentais: seria realmente o objetivo das instituições brasileiras eliminar o judicial review? Dar ao Legislativo o poder de rever qualquer aspecto da Constituição? Retornar a um modelo de democracia baseado apenas na vontade da maioria? Ou será que os proponentes da PEC não calcularam as profundas implicações dessa proposta? Em tempos de tensão política, seria justificável um retrocesso nas garantias que limitam o poder das maiorias e protegem os direitos fundamentais? Essas são questões que precisam ser cuidadosamente ponderadas.
[1] BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 50/2023. Proposta de Emenda à Constituição. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2391567. Acesso em: 09 set. 2024.
[2] LOPES, Arthur Tavares Francioni. PEC 50/2023 e respostas (in)constitucionais a mutações inconstitucionais. Consultor Jurídico, São Paulo, 11 fev. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-11/pec-50-2023-e-respostas-inconstitucionais-a-mutacoes-inconstitucionais. Acesso em: 09 set. 2024.
[3] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2023.
[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 09 set. 2024
[5] MARTINS, Sérgio Rodas. Advogados de SP dizem que cobrança é inconstitucional. Consultor Jurídico, São Paulo, 25 jun. 2002. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2002-jun-25/advogados_sp_dizem_cobranca_inconstitucional/. Acesso em: 09 set. 2024.
[6] SILVA, Patrick Luiz Martins Freitas. Tensões democráticas: pautas morais fazem Congresso desafiar STF. JOTA, São Paulo, 30 ago. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tensoes-democraticas-pautas-morais-fazem-congresso-desafiar-stf. Acesso em: 09 set. 2024.
[7] SOUZA, Renata. O efeito backlash na jurisdição constitucional. Consultor Jurídico, São Paulo, 28 set. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-28/renata-souza-efeito-backlash-jurisdicao-constitucional. Acesso em: 09 set. 2024.
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