Opinião

Patrimônio imaterial em Sergipe e a Festa da Retomada do Povo Xokó

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  • é desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região juíza de enlace e mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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  • é procuradora regional da República especialista em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília e especialista em Inteligência Estratégica pela Escola Superior de Guerra.

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12 de setembro de 2024, 16h19

Recentemente, a Assembleia Legislativa de Sergipe aprovou a Lei nº 9.528, de 30 de agosto de 2024, a qual foi sancionada pelo governador, que declara a “Festa da Retomada do Povo Xokó” como “Bem de Interesse Cultural” e institui o dia 9 de setembro como o Dia Estadual de Celebração da Retomada do Povo Indígena Xokó em Sergipe.

Povo Xokó/Divulgação

A Festa da Retomada do Povo Xokó é um evento cultural e espiritual significativo para a etnia Xokó, a qual vive na Ilha de São Pedro, município de Porto da Folha, em Sergipe, às margens do rio São Francisco. Trata-se de celebração pela reconquista da Terra Indígena Caiçara e Ilha de São Pedro, nas décadas de 1970 e 1980, e reafirmação da identidade e do território dos Xokó, após um longo processo de luta e resistência para retomar seu território.

O evento é considerado parte fundamental do processo contemporâneo de luta e soerguimento cultural dos indígenas Xokó. Além de ser uma forma de resistência cultural e política contra as pressões externas que os povos indígenas enfrentam, especialmente ligadas à disputa territorial.

Projeto de lei

Chegou-se a cogitar a instituição de um feriado municipal, o que não se mostrou viável. Mas, sem desânimo, as lideranças do povo Xokó permaneceram lutando e articularam parceiros nessa mobilização social, logrando que a deputada estadual Linda Brasil (PSOL) apresentasse o projeto de lei ao Poder Legislativo do estado.

Na justificativa do PL, a deputada afirmou [1] que “a Festa da Retomada abrange história, ritual, cultura e força coletiva”.

“O dia 9 de setembro deve sempre ser lembrado como a celebração da liberdade, independência e vitória do povo. Esta data é reconhecida como um marco de emancipação, quando os Xokó recuperaram parte de seu território, reafirmaram sua identidade e foram reconhecidos como uma comunidade indígena em Sergipe.

“O reconhecimento oficial como bem cultural implica um compromisso do Estado em preservar essas tradições para as futuras gerações, assegurando a valorização e proteção da identidade cultural do Povo Xokó.”

Embora a justificativa do PL faça referência “ao reconhecimento oficial como patrimônio cultural” é válido ressaltar que, na ótica jurídica, a lei em apreço conferiu visibilidade e atenção à Festa da Retomada, mas não teve o condão de declarar a celebração como patrimônio cultural sergipano. Esse entendimento é expressamente veiculado nos parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 9º da lei em apreço.

Registro

O Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988, reconhece em seu artigo 216 que o patrimônio cultural é constituído pelos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Essa definição inclui as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, bem como as criações científicas, artísticas e tecnológicas.

Apesar da declaração da festa como bem de interesse cultural ter sido um importante passo, persiste a necessidade de celebração por um processo de estudo para fins de registro, na forma da Lei Estadual nº 9.088, de 23 de Agosto de 2022, do estado de Sergipe.

O registro é um dos instrumentos protetivos do patrimônio cultural previsto expressamente na Constituição (parágrafo 1º do artigo 216).  A sua regulamentação foi feita pelo Decreto nº 3.551 de 2000, que  criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e instituiu o registro de bens culturais que constituem o patrimônio cultural brasileiro.

Spacca

No âmbito federal o registro fica a cargo do Iphan, mas, em âmbito estadual, cada unidade da Federação tem suas próprias previsões legislativas. Sergipe instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem o patrimônio histórico e cultural do estado de Sergipe ao Programa Estadual do Patrimônio Imaterial pela Lei estadual 9.088/22. O trâmite para o registro se fará perante o Conselho Estadual de Cultura do Estado de Sergipe.

A União realiza registros de bens culturais por meio de quatro livros: Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro das Celebrações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livro de Registro de Lugares. A lei estadual sergipana seguiu o mesmo modelo e tipologia de livros. Quando existir a necessidade de inscrição de um bem que não se enquadre em qualquer um dos livros já nominados pelo decreto, outros livros poderão ser abertos.

Na perspectiva da Festa da Retomada, a lei sergipana considera como celebrações a serem registradas os rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social.

Além da exigência de que a proposta de registro seja acompanhada de documentação técnica, com a descrição pormenorizada do bem e de seus elementos constitutivos, a lei sergipana também repete os requisitos previstos no Decreto federal e na Resolução Iphan 001/2006 para análise dos bens imateriais, dentre os quais se destacam:

1) a referência à continuidade histórica do bem; e

2) a sua relevância para as memórias local e regional, e para a identidade e formação cultural das comunidades sergipanas.

Patrimônio imaterial, lutas históricas e importância do território

Em uma primeira análise, a festa parece preencher os requisitos legais para concessão do título de patrimônio imaterial sergipano. O processo para deflagrar a análise da Festa da Retomada pelo Conselho Estadual de Cultura depende da iniciativa dos legitimados indicados na lei estadual. Havendo essa provocação, caberá ao conselho estudar a celebração e avaliar a viabilidade de sua inscrição no Livro do Registro das Celebrações.

A discussão do título de patrimônio cultural imaterial sergipano para a Festa da Retomada é atual e tem projeção para o futuro, apesar de remontar o passado recente das décadas de 1970 e 1980. É que, ao conferir novo status à celebração do povo Xokó, a titulação possibilita a criação de um Plano de Salvaguarda, que protegerá os festejos para fruição das futuras gerações.

Este plano deve ser debatido com o povo Xokó e desse diálogo se construirá um “documento guia”, com medidas que contribuirão para a identidade cultural, para o respeito à diversidade cultural, para o vínculo da comunidade indígena com seu território e para a permanência e transmissão da memória identitária da sociedade sergipana.

Assim, a inscrição da festa no Livro de Registro das Celebrações seria uma medida que permitiria que as futuras gerações tivessem acesso a essa herança cultural, abrindo caminho para a salvaguarda e valorização contínua das tradições indígenas. No presente, a medida asseguraria a continuidade e fortalecimento de  um contexto de respeito aos direitos culturais e territoriais dos povos indígenas.

Prática secular e identidade de gênero como catalisadora

Se com a declaração da Festa da Retomada como bem de interesse cultural a lei abre possibilidades para o tempo presente e futuro, especialmente a partir da possibilidade do registro, a instituição de um dia estadual específico para celebrar a retomada territorial pelos Xokós não só fortalece a memória e a identidade deste povo, mas também serve como um lembrete da importância das lutas históricas dos povos indígenas pela terra e da importância do território para preservação e transmissão de sua cultura.

A instituição de datas comemorativas está prevista no artigo 215 da Constituição e é uma das formas de valorizar a memória e a contribuição dos povos formadores da sociedade brasileira. Essas datas são apenas ferramentas de educação, conscientização e mobilização social, que podem fortalecer a identidade cultural e promover o respeito pela diversidade.

Eleger dias comemorativos para formar e consolidar a memória coletiva é uma prática secular. Mas, durante muito tempo, as datas escolhidas lembravam feitos de pessoas ou grupos poderosos, reforçando e  fortalecendo o privilégio e o protagonismo dos que já eram privilegiados.

Não se observava a diversidade nem preocupação em valorizar datas relevantes para pessoas ou grupos vulneráveis. Muito menos havia espaço para que as demandas de minorias e grupos minoritários fossem ouvidas e atendidas; ou que integrantes de grupos desfavorecidos fossem os ouvintes e catalisadores de tais demandas .

Nessa perspectiva, é válido destacar que o projeto de lei foi apresentado por Linda Brasil, única mulher transexual da Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese). A atuação da deputada em prol dos indígenas responde positivamente à pergunta feita no livro Direitos da Esquina (2024), escrito por Victória Dandara Toth Rossi Amorim, advogada travesti, que atualmente cursa mestrado na prestigiosa Universidade Havard (EUA):

“Minha identidade de gênero poderia ser um elemento diferencial, atuando como catalisador no acesso à justiça, especialmente em casos relacionados aos direitos humanos?”

Outras obras

A pesquisa acadêmica e a arte cinematográfica também podem ser considerados catalisadores da demanda dos Xokó, que culminou com a edição da lei.

A dissertação de mestrado de Angelita Queiroz, intitulada A festa da Retomada: uma Celebração Identitária de Ser Xokó na Ilha de São Pedro – Porto da Folha/SE. Defendida em 2020 na Universidade Federal de Sergipe a rica pesquisa aporta subsídios teóricos para compreensão dos desafios e da riqueza da cultura dos Xokó.

Nas artes, o povo Xokó e suas práticas culturais ganharam notoriedade nacional com o documentário Velho Chico, a Alma do Povo Xokó, dirigido por Caco Souza, que foi selecionado para concorrer ao Kikito no Festival de Cinema de Gramado deste ano de 2024. O filme foi o único do Nordeste, na categoria, na Mostra Competitiva de Longas Documentais.

A movimentação de diversos atores e instituições em torno da Festa da Retomada do Povo Xokó é um indicativo importante para o poder público e para a comunidade sobre a relevância das iniciativas de valorização e proteção do patrimônio cultural sergipano.

Há um dia especialmente previsto para lembrar do povo Xokó de Sergipe e, com isso, renova-se (ou cria-se) o compromisso de todos de não esquecermos da contribuição dos povos indígenas para a sociedade sergipana e brasileira.

 

 


[1] https://politicadefato.com.br/noticia/3805/pl-busca-declarar-festa-da-retomada-do-povo-xoko-como-bem-de-interesse-cultural#:~:text=Foi%20aprovado%20em%20vota%C3%A7%C3%A3o%20o,Retomada%20do%20Povo%20Ind%C3%ADgena%20Xok%C3%B3.

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