Seguros Contemporâneos

Há dano moral pela recusa indevida de indenização securitária pela seguradora?

Autores

  • Milena Donato Oliva

    é professora da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro sócia do escritório Gustavo Tepedino Advogados doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ.

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  • André Brandão Nery Costa

    é doutor pela Universidade de Roma mestre pela Universidade de Paris I e pela UERJ habilitado à advocacia na França e advogado do escritório Gustavo Tepedino Advogados - GTA.

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12 de setembro de 2024, 8h00

O Superior Tribunal de Justiça possui firme jurisprudência no sentido de que, em regra, o inadimplemento contratual não gera dano moral [1]. Todavia, o STJ reconhece importantes exceções a esse entendimento, a exemplo da recusa indevida de cobertura pela seguradora para tratamento de saúde [2].

Controverte-se, porém, acerca da recusa da seguradora em pagar a indenização devida, se neste caso haveria ou não dano moral.

Em alguns precedentes, o STJ condenou em dano moral a seguradora ao reconhecer a similitude fática entre a recusa indevida de pagar indenização securitária, notadamente em caso de seguro de vida e de acidente pessoal, e a recusa injustificada envolvendo tratamento sanitário. Consoante entendeu o STJ, “a recusa injustificada da cobertura oriunda de contrato de seguro de vida tem o mesmo tratamento jurídico dado ao contrato de seguro de saúde, não se tratando, nesses casos, de mero aborrecimento” [3].

Vida e saúde do segurado

Nesse caso concreto, o segurado foi atropelado e teve o pé esmagado até a altura do tornozelo, o que resultou em invalidez permanente para a função de servente, que até então exercia. A seguradora não realizou o pagamento da indenização a que ele fazia jus ao argumento de que não haveria “cobertura técnica” em razão da ausência de pagamento dos prêmios devidos.

O STJ entendeu, na espécie, que “não pode ser considerado como um mero aborrecimento a situação fática ocorrida no curso ou em razão da prestação de serviço de consumo, a qual o fornecedor não soluciona a reclamação, levando o consumidor a contratar advogado ou servir-se da assistência judiciária do Estado para demandar pela solução judicial de algo que administrativamente facilmente seria solucionado quando pelo crivo Juiz ou Tribunal se reconhece a falha do fornecedor”.

Ainda que não haja equiparação com a recusa injustificável à coberta de tratamento de saúde, quando a negativa ao pagamento de indenização envolve a vida e a saúde do segurado, verifica-se a tendência, no STJ, de se reconhecer a ocorrência de dano extrapatrimonial. No Agravo Regimental no AREsp 595.031, por exemplo, o STJ concluiu que a seguradora deveria ser condenada ao ter recusado a cobertura contra invalidez de segurada com câncer de mama com metástase, o que lhe teria causado aflição psicológica [4].

Aflição

O STJ também entende restar configurado o dano moral em razão de recusa indevida ao pagamento de indenização, mesmo em situações não relacionadas diretamente à saúde e à vida do segurado, se se convencer de que o segurado sofreu “aflição psicológica”. Nessa linha, o STJ entendeu, no Agravo Interno no AREsp 2.074.140, que a situação ultrapassaria o mero aborrecimento, caracterizando “desrespeito e humilhação” ao segurado, tendo em vista a recusa da seguradora em “receber o pedido administrativo de pagamento da indenização securitária [em seguro de vida]”, o que consubstanciaria “prática furtiva, evasiva, embaraçosa e desleal”, pois “adotada pela Seguradora para simplesmente obstar a rápida satisfação do direito do segurado à indenização devida” [5].

No Agravo Interno no REsp 1.827.326, a demora de anos em examinar pedido de indenização de seguro de vida foi considerada ensejadora de dano moral, pois, conforme extraído do acórdão recorrido, “[e]m decorrência da desídia da requerida os autores tiveram que, por longos anos, sempre relembrar o óbito do pai e esposo” [6]. No Agravo Interno no REsp 2.112.291, o STJ entendeu que, para recusar a cobertura de seguro de vida sob a alegação de que o condutor estaria embriagado, seria necessário demonstrar que a embriaguez teria influído decisivamente na ocorrência do sinistro [7]. Não sendo esse o caso, haveria recusa indevida, causando no segurado aflição psicológica e angústia, a ensejar dano moral.

Por outro lado, no REsp 839.123, o STJ decidiu não ser cabível dano moral pela recusa indevida de pagamento da indenização em seguro de danos, diante da ocorrência de incêndio em loja de departamento, gerando grande perda no estoque, seguida da acusação pela seguradora de fraude no sinistro. Para o tribunal, “além de fazerem parte da normalidade do cotidiano, tais situações não são intensas a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo ou abalar a imagem de empresas” [8].

Cautela

Em caso de seguro de danos, o STJ mostra-se bastante cauteloso ao avaliar a configuração de dano moral. Entende, em linha de princípio, que se trata de situação de mero inadimplemento contratual que não afeta a dignidade do segurado. Já no seguro de pessoas, o STJ tende a ser mais flexível no reconhecimento do dano moral, por considerar que, em tais casos, o inadimplemento contratual transbordaria do mero aborrecimento e atingiria direitos da personalidade do segurado.

Deve-se diferenciar, de fato, o inadimplemento da obrigação que afeta a dignidade do segurado do inadimplemento que apenas tem repercussão patrimonial. No primeiro caso, o dano moral exsurge do bem da vida afetado pelo inadimplemento. No segundo caso, o inadimplemento contratual acarreta dano patrimonial. De toda forma, em todo caso de inadimplemento, a rigor, faz-se necessário investigar se dele decorreu violação a interesse existencial, ocasião em que restará configurado o dano moral.

Com efeito, embora o dano moral, no mais das vezes, seja apreendido em perspectiva subjetiva (aflição psicológica que transborda o mero aborrecimento), deve ser, a rigor, avaliado objetivamente, como lesão objetiva à dignidade da pessoa humana. Assim já decidiu o STJ no REsp 910794, consistente em ação ajuizada pelo recém-nascido, seus pais e irmão, em que buscavam receber, além das perdas patrimoniais, compensação pelos danos morais oriundos de o recém-nascido ter tido seu braço amputado por erro médico.

O acórdão recorrido abraçou a tese de que o recém-nascido não teria aptidão para sofrer dano moral, pois lhe faltaria capacidade intelectiva para avaliar e sofrer pela perda do braço. O STJ, no entanto, entendeu que o dano moral não pode ser visto como de ordem puramente psíquica, devendo-se compensar a objetiva lesão à integridade psicofísica do recém-nascido [9]. A orientação é coerente, ainda, com o posicionamento do STJ segundo o qual a pessoa jurídica pode sofrer dano moral [10]. Afinal, não tendo como a pessoa jurídica experimentar abalo psicológico que supere o mero aborrecimento, o dano moral por ela sofrido apenas pode ser apreendido de forma objetiva, a partir da análise dos direitos lesados pela conduta indevida.

Conclusão

Portanto, a configuração de dano moral pela recusa indevida de indenização securitária pela seguradora dependerá do bem jurídico atingido com a negativa. Caso a repercussão seja meramente patrimonial, não restará verificado o dano moral. Por outro lado, se forem atingidos interesses existenciais, a recusa indevida ensejará dano moral.

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

 


[1] A título ilustrativo, confira-se: “[o] mero inadimplemento contratual não gera dano moral indenizável […]” (STJ, AgInt no AREsp 2.179.870, 4ª T., João Otávio de Noronha, julg. 13.5.2024). V. tb. STJ, AgInt no REsp n. 1.889.207, 4ª T., Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julg. 1.7.2024; STJ, AgInt no AREsp n. 2.195.425, 3ª T., Rel. Min. Humberto Martins, julg. 27.5.2024; AgInt no AREsp n. 2.370.800, 4ª T., Rel. Min. João Otávio de Noronha, julg. 29.4.2024.

[2] A título exemplificativo: “[…] a jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que, em regra, a recusa indevida pela operadora de plano de saúde de cobertura médico-assistencial gera dano moral, porquanto agrava o sofrimento psíquico do usuário, já combalido pelas condições precárias de saúde, não constituindo, portanto, mero dissabor, ínsito às hipóteses correntes de inadimplemento contratual” (STJ, REsp 1.870.834, 2ª S., Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 13.9.2023). Essa mesma decisão ressalva as “situações em que existe dúvida jurídica razoável na interpretação de cláusula contratual, de forma que a conduta da operadora, ao optar pela restrição da cobertura sem ofender os deveres anexos do contrato – como a boa-fé -, não pode ser reputada ilegítima ou injusta, violadora de direitos imateriais, o que afasta qualquer pretensão de compensação por danos morais”. Cf. tb. STJ, AgInt no AREsp 2.094.389, 4ª T., Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julg. 28.11.2022; STJ, AgInt no AREsp 2.038.816, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, julg. 16.5.2022; STJ, AgInt no REsp 1.927.347, 3ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, julg. 25.5.2021; e STJ, REsp 1.651.289/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 6.4.2017. Cf. tb o entendimento do TJRJ, que editou o Enunciado no. 337 da súmula de sua jurisprudência: “[a] recusa indevida, pela operadora de planos de saúde, de internação em estado de emergência/urgência gera dano moral in re ipsa”.

[3] STJ, AgInt no AREsp 780.881, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, julg. 18.6.2019. Na mesma direção, cf. STJ, AgInt no REsp 1.827.326, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, julg. 20.3.2023 e STJ, AgRg no REsp 1.299.589, 3ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, julg. 1.9.2015 – este considerado o leasing case na equiparação entre a recusa injustificada de pagamento de indenização em seguro de vida e de recusa ao tratamento em seguro-saúde.

[4] STJ, AgRg no AREsp 595.031, 3ª T., Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 2.8.2016.

[5] STJ, AgInt no AREsp 2.074.140, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, julg. 10.10.2022.

[6] STJ, AgInt no REsp 1.827.326, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, julg. 20.3.2023. Em situação semelhante, v. tb. STJ, AgInt no AREsp 996.396, 3ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julg. 9.5.2017, em que houve a demora por quatro anos para pagar a indenização, enquanto o contrato previa apenas trinta dias.

[7] STJ, AgInt no REsp 2.112.291, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 8.4.2024.

[8] STJ, REsp 839.123, 3ª T., Rel. Min. Sidnei Beneti, julg. 15.9.2009.

[9] Veja-se a ementa do julgado: “[…] Não merece prosperar o fundamento do acórdão recorrido no sentido de que o recém-nascido não é apto a sofrer o dano moral, por não possuir capacidade intelectiva para avaliá-lo e sofrer os prejuízos psíquicos dele decorrentes. Isso porque o dano moral não pode ser visto tão-somente como de ordem puramente psíquica – dependente das reações emocionais da vítima –, porquanto, na atual ordem jurídica-constitucional, a dignidade é fundamento central dos direitos humanos, devendo ser protegida e, quando violada, sujeita à devida reparação. A respeito do tema, a doutrina consagra entendimento no sentido de que o dano moral pode ser considerado como violação do direito à dignidade, não se restringindo, necessariamente, a alguma reação psíquica” (STJ, REsp 910.794, 1a T., Rel. Min. Denise Arruda, julg. 21.10.2008).

[10] Súmula 227, STJ: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.

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