Opinião

Desnecessidade de ratificação da inexigibilidade na Lei 14.133/2021

Autor

  • Jandeson da Costa Barbosa

    é mestre em Direito e Políticas Públicas especialista em Direito Público servidor do TCU escritor de obras e artigos jurídicos membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (UniCeub) professor de Licitações e Contratos e advogado.

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12 de setembro de 2024, 6h03

A legislação brasileira de contratações públicas passou por uma transformação profunda com a promulgação da Lei 14.133/2021, o que “causou um natural e desejado fervilhar de publicações e comentários, contemplando diferentes dimensões do novo diploma legal” [1]. Uma das mudanças mais notáveis refere-se à eliminação da necessidade de ratificação da inexigibilidade de licitação e de algumas hipóteses de dispensa, conforme estabelecido anteriormente no artigo 26 da Lei 8.666/1993.

A Lei 8.666/1993 tinha um “modelo de seleção burocrático, formalista indutor de exagerados custos transacionais”, sendo “desconectada da realidade vivenciada pela administração”, com a sua “ideia de restringir a autonomia técnica dos agentes responsáveis pela contratação pública” [2].

Na vigência da Lei 8.666/1993, o seu artigo 26 determinava que as contratações realizadas por inexigibilidade ou em determinadas hipóteses de dispensa de licitação deveriam ser ratificadas pela autoridade superior daquela que praticava o ato de autorização. Esse procedimento tinha o suposto intuito de ser uma forma de controle interno, garantindo que a decisão fosse revisada e confirmada por um nível hierárquico superior, o que buscaria aumentar a segurança jurídica e a transparência. Ao menos foi essa a opção legislativa constante daquele diploma.

Contudo, a prática administrativa demonstrou que essa exigência, ao longo dos anos, consistiu em apenas uma atividade meramente burocrática e desnecessária, uma vez que a ratificação se tornava um ato meramente formal, sem adição substancial ao processo decisório. A duplicidade de análise, ao invés de fortalecer o controle, gerava atrasos e ineficiências ao já moroso procedimento das contratações públicas.

Diferenciação do gestor

A par disso, os tribunais de contas têm abandonado ou diminuído a adoção da teoria do domínio do fato nas contratações públicas em geral, preferindo imputar culpa aos agentes públicos que efetivamente realizaram a instrução processual, em detrimento da responsabilização da autoridade superior que, no mais das vezes, não tendo participado da instrução processual, apenas faz uma análise superficial do processo.

Spacca

No nosso entender, anda bem a jurisprudência das cortes de contas ao diferenciar o gestor que tem o real controle sobre a contratação daquele que apenas firma assinatura no processo por exigência legal, pois, em algumas situações, é humanamente impossível que a autoridade revise de maneira pormenorizada dezenas ou centenas de laudas e dezenas de processos que passam mensalmente pelas suas mãos. Veja-se, como exemplo, o que dispõe recentíssimo acórdão do Tribunal de Contas da União:

No presente caso, verifica-se que o então Diretor-Geral do [omissis] foi citado para apresentar suas alegações de defesa quanto ao fato de ter homologado a licitação com erro no cálculo da planilha de composição de custos referente aos encargos sociais e trabalhistas dos serviços de locação da empresa Micro View Comércio e Representações de Produtos Médicos Hospitalares Ltda. Contudo, questiona-se que se era de se esperar que a autoridade máxima do Hospital tivesse a obrigação de refazer os cálculos dos encargos trabalhistas antes de se assegurar do acerto da classificação da proposta.

Dessa forma, considera-se que não seria razoável esperar que o responsável Diretor-Geral dispusesse do seu tempo para reanalisar os documentos e planilhas que deram suporte à classificação da proposta vencedora do certame, refazendo assim o trabalho de responsabilidade da área técnica. Em outras palavras, não se pode esperar que, ao decidir, o então gestor tivesse que duvidar, examinar e refazer a análise da planilha de composição de custos da proposta de preços da empresa que doravante foi contratada pelo Hospital. (Acórdão-TCU 5651/2024 – Segunda Câmara).

Teoria do domínio do fato

A teoria do domínio do fato, tese emprestada do direito penal, serviria para legitimar a responsabilização de uma autoridade administrativa superior que, apesar de não ter acompanhado a instrução do processo licitatório, detinha o domínio sobre a forma e as decisões do referido procedimento. Em acórdão magistral, o Superior Tribunal de Justiça — no âmbito do direito penal — assim decide:

A teoria do domínio do fato funciona como uma ratio, a qual é insuficiente, por si mesma para aferir a existência do nexo de causalidade entre o crime e o agente. É equivocado afirmar que um indivíduo é autor porque detém o domínio do fato se, no plano intermediário ligado à realidade, não há nenhuma circunstância que estabeleça o nexo entre sua conduta e o resultado lesivo. (STJ – REsp: 1854893 SP 2018/0316778-9, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 08/09/2020, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/09/2020).

Foi nesse diapasão que o legislador alterou a dinâmica do tema na Lei 14.133/2021. O artigo 72, inciso VIII, estabelece que a inexigibilidade e a dispensa de licitação exigem apenas a “autorização da autoridade competente”, sem mencionar qualquer necessidade de ratificação por instância superior. A interpretação desse dispositivo deve ser simples: o agente público que detém competência para autorizar a dispensa e a inexigibilidade de licitação irá fazê-lo sem a necessidade de envio do processo para ratificação pelo seu superior.

Quanto ao questionamento de quem seria a “autoridade competente”, em regra, será “o ordenador de despesas, mas pode o regimento interno da instituição, o estatuto ou documento equivalente definir a competência para outro agente, como um diretor, gerente, chefe de seção” [3]. Ademais, não há empecilho legal para que esse ato administrativo seja delegado. De igual modo, mesmo inexistindo a necessidade da ratificação pela autoridade superior, esta poderá avocar os processos que entender mais complexos e praticar ela própria o ato autorizativo.

Fiscalização deve ser mais que formal

Esta mudança reflete um entendimento contemporâneo de que o controle e a fiscalização devem ser eficientes e não simplesmente formalistas. Tal alteração também “dá a César o que é de César”, ao concentrar a responsabilidade — e eventual responsabilização futura — na autoridade que autorizou a contratação.

A desnecessidade de ratificação do ato autorizativo representa uma descentralização da decisão, atribuindo ao responsável pela contratação a legitimidade para conduzir o processo, desde que observados os preceitos legais e regulamentares. Essa mudança visa tornar o procedimento mais ágil, reduzindo entraves burocráticos sem comprometer a integridade e a legalidade das contratações.

A extinção da ratificação em favor da autorização direta tem várias implicações práticas. Em primeiro lugar, há uma potencial aceleração dos processos de contratação, já que elimina-se uma etapa adicional que, anteriormente, poderia retardar a formalização dos contratos. Além disso, transfere-se maior responsabilidade ao gestor público diretamente envolvido na contratação, o que requer um maior cuidado e atenção na tomada de decisões.

Consciência de responsabilidades

Por outro lado, a ausência de ratificação não deve ser interpretada como uma flexibilização dos controles internos. A Lei 14.133/2021 impõe uma série de mecanismos de fiscalização e auditoria, que, em conjunto com a responsabilização do agente público, compõem um sistema de controle que, embora menos formalista, não é menos rigoroso.

Nessa senda, a transição da exigência de ratificação para a de autorização pela autoridade competente marca uma mudança significativa no arcabouço jurídico das contratações públicas no Brasil. Essa modificação simplifica o processo administrativo, conferindo maior agilidade e eficiência, ao mesmo tempo em que mantém um sistema de controle robusto, adequado às necessidades contemporâneas.

Por fim, a nova configuração exige que os gestores públicos estejam ainda mais preparados e conscientes de suas responsabilidades, pois a centralidade da decisão no ato da autorização reforça a importância do conhecimento técnico e da integridade na gestão dos recursos públicos.

 


Referências

BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. MACIEL, Francismary Souza Pimenta. Aspectos hermenêuticos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista do Tribunal de Contas da União. Edição 147, 2021. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1695>. Acesso em: 8 set 2024.

BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Dispõe sobre normas gerais de licitação e contratos administrativos.

__________. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Dispõe sobre licitações e contratos administrativos.

__________. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 1854893 SP 2018/0316778-9, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 08/09/2020, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/09/2020.

__________. Tribunal de Contas da União. Acórdão 5651/2024 – Segunda Câmara.

FERNANDES. Ana Luiza Jacoby. FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. FERNANDES, Murilo Jacoby. Contratação Direta sem Licitação na Nova Lei de Licitações: Lei 14.133/2021. 11. ed. – Belo Horizonte: Fórum, 2021.

TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 15. ed., rev., atual., e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.


[1] BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. MACIEL, Francismary Souza Pimenta. Aspectos hermenêuticos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista do Tribunal de Contas da União. Edição 147, 2021. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1695>. Acesso em: 8 set 2024.

[2] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 15. ed., rev., atual., e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024, p. 56-57.

[3] FERNANDES. Ana Luiza Jacoby. FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. FERNANDES, Murilo Jacoby. Contratação Direta sem Licitação na Nova Lei de Licitações: Lei 14.133/2021. 11. ed. – Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 89.

Autores

  • Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Público. Membro da Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União. Escritor de obras e artigos jurídicos. Membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas, do Ceub. Professor de Licitações e Contratos.

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