Critérios objetivos definidos por SP para aplicação do artigo 68 do Código Florestal
12 de setembro de 2024, 19h41
Quando pareceria que os embates iniciados desde o advento da Lei nº 12.651/2012 estavam próximos do fim, o Ministério Público do Estado de São Paulo movimenta uma nova batalha contra as aprovações do CAR (Cadastro Ambiental Rural), que coloca novamente em risco a segurança jurídica de quem busca regularizar ambientalmente seu imóvel rural.
É que, para atender e viabilizar a implementação das disposições introduzidas no ordenamento pelo Novo Código Florestal, o estado de São Paulo editou a Lei nº 15.684/2015 para, dentre outros fins, regulamentar o Programa de Regularização Ambiental (PRA) das propriedades e imóveis rurais criado pela Lei Federal n° 12.651/2012.
Sucederam-se discussões acerca da constitucionalidade de dispositivos da lei federal e da lei paulista promovidas pelo Ministério Público, que resultaram na declaração, pelo STF, da constitucionalidade do artigo 12, §§ 1º, 2º, 3º e 8º da Lei Estadual nº 15.684/2015 (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 1.253.638 da Alesp). Restou declarado inconstitucional apenas o § 2º do artigo 17 da Lei nº 15.684/2015.
Entre os anos de 2019 e 2021 foram editados diversos atos administrativos normativos para regulamentar, no âmbito do estado de São Paulo, a aplicação da Lei nº 12.651/2012 e da Lei Estadual nº 15.684/2015. Mais especificamente no que se refere ao CAR e ao PRA, foram publicados os seguintes atos administrativos: Decreto Estadual nº 64.842/2020, Decreto Estadual nº 65.182/2020, Resolução Conjunta SAA/SIMA nº 03, de 16 de setembro de 2020, Resolução SAA nº 12, de 05 de março de 2020 e Resolução SAA nº 55, de 18 de setembro de 2020.
Especificamente no que interessa ao assunto aqui abordado, o Decreto nº 65.182/2020 instituiu o Programa Agro Legal, para regulamentar os artigos 27 e 32 da Lei nº 15.684/2015 “que dispõe sobre a regularização ambiental de imóveis rurais no Estado de São Paulo”. Em seu artigo 3º, o decreto definiu os critérios para reconhecer a dispensa da obrigação de promover a recomposição, compensação ou regeneração para os percentuais de reserva legal exigidos pelo artigo 12 do Código Florestal.
Em seguida foi publicada a Resolução SAA nº 55, de 2020, definindo orientações, critérios e procedimentos para, no âmbito do Programa Agro Legal, viabilizar a regularização da Reserva Legal de acordo com o disposto nos artigos 67 e 68 da Lei nº 12.651/12 e artigos 27 e 32 da Lei Estadual nº 15.684/15.
Transferência
Antes disso, e ainda no intuito de organizar o funcionamento do CAR, o estado de São Paulo transferiu a gestão do CAR da Secretaria do Meio Ambiente para a Secretaria de Agricultura e Abastecimento, visando atender aos princípios da eficiência na administração pública e da celeridade processual.
Em seu artigo 6º, a Resolução SSA nº 55, de 2020, estabeleceu que a Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS) deveria compor as funcionalidades do Sicar-SP:
“Com base nos mapas e bases espaciais a que se referem os artigos 3º, § 2º, e 5º do Decreto 65.182/2020 de 16-09-2020”, “para reconhecimento do direito ou não de dispensa, quando não houver Reserva Legal de 20% da área total do imóvel rural em 22-07-2008, computadas as áreas de preservação permanente, conforme tratado nesta Resolução.”
Assim, com base nas “Cartas do IBGE 1:50.000, elaboradas com base nas aerofotografias oficiais tiradas em 1965 e digitalizadas ou nas imagens de satélite ou aéreas que possam retratar a situação vegetacional do imóvel rural em 1989, no mapa de biomas do Brasil publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2004 e na área do imóvel rural em 22 de julho de 2008”, homologados pelo Secretário de Agricultura e Abastecimento, depois de ouvido o Instituto Geográfico e Cartográfico do Estado de São Paulo e a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento definiu os parâmetros que devem ser seguidos na aplicação dos artigos 67 e 68 da Lei nº 12.651/12 e artigos 27 e 32 da Lei Estadual nº 15.684/15.
Resistência do MP
E desde então o estado de São Paulo, através da Secretaria da Agricultura e Abastecimento, vem fazendo grande esforço para analisar os mais de 423 mil cadastros processados no CAR. Essa análise é fundamental para o avanço do processo de regularização ambiental, pois valida ou viabiliza a regularização das informações, e a consequente aprovação do CAR, após o que é possível disponibilizar ao proprietário o Módulo de Regularização Ambiental (MRA), que lhe permite declarar a adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), e inserir o Projeto de Recomposição de Áreas Degradadas e Alteradas (Prada). E enfim dar início às medidas de restauração ambiental com segurança jurídica.
Pelo menos era o que se esperava, até que muitos proprietários com o CAR aprovado e com seus projetos de regularização ambiental em andamento receberam a notícia de que se tornaram réus em ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
O principal argumento do Ministério Público contra a aprovação do CAR nos casos em que é dispensada a reserva legal em percentual mínimo de 20% — com fundamento no artigo 68 da Lei nº 12.651/12 e artigo 27 da Lei Estadual nº 15.684/15 — é que o ordenamento pátrio nunca teria permitido desmatamento sem preservar, no mínimo, 20% da área do imóvel, desde o Decreto nº 23.793/1934, intitulado “Marco Legal de 34”.
Acontece que, diferentemente dos marcos de 1965 e 1989, o suposto marco de 1934 não foi criado por lei. Além disso, o decreto, por si só, não garantiu proteção imediata às matas e florestas, porque sua implementação dependia de ato do poder executivo. E não se tem notícia de que os atos necessários para implementação da proteção de matas e florestas tenham sido criados no âmbito do estado de São Paulo. Pelo contrário, o próprio governo incentivava a derrubada de matas e expansão das atividades agrícolas em todo o território.
Mas não é só. Resgatando-se o contexto histórico, o Decreto nº 23.793/1934 atribuiu ao Estado a obrigação da conservação ou do florestamento, e não aos particulares, em um contexto de centralização do Estado como agente planejador da economia e controlador do território. Posição essa que se verifica naquele Código Florestal, como também no Código das Águas, de Minas e de Caça e Pesca, todos de 1934 e aprovados durante o governo provisório, nos quais fica evidente a identificação da natureza como patrimônio nacional [1].
Nesse contexto, o artigo 23 do Decreto de 1934 não pode ser lido e compreendido isoladamente. A leitura sistemática do Decreto nº 23.793/1934 deixa claro que a proteção ambiental prevista não era automática e dependia de atos do poder executivo. De acordo com o artigo 8º, as florestas protetoras e as remanescentes seriam de conservação perene.
As florestas protetoras estavam definidas no artigo 4º como aquelas que, por sua localização, servissem para as finalidades ali relacionadas, portanto, deveriam ser mantidas conforme suas funções, mas sem limitação de suas extensões. Aqui já é possível observar a impossibilidade de admitir que toda a vegetação porventura existente em 1934 se enquadraria nas funções previstas no artigo 4º. De outra parte, a definição de florestas remanescentes não se aplicava nas áreas particulares, pois o artigo 5º expressamente se referia às florestas públicas.
Os artigos 10, 11, 12 e 13 deixam claro que as florestas protetoras, remanescentes e modelo deveriam ser classificadas pelo Ministério da Agricultura ou por outra autoridade local, providência essa de que não se tem notícia.
E o parágrafo único do artigo 11 ainda previa o direito do proprietário a indenização, na hipótese de florestas de propriedade privada serem declaradas, no todo ou em parte, florestas protetoras. Mais uma vez se destaca que a proteção do Código de 1934 não se dirigia a áreas particulares como regra. Estas poderiam ser assim declaradas, mediante indenização do proprietário.
O artigo 22, por sua vez, proibia o uso de fogo em campos, mas não impedia o desmatamento para a agricultura, e as restrições eram aplicáveis apenas a vegetação em regiões específicas, como encostas de morros. O artigo 23 estabelecia que proprietários de terras com matas só poderiam derrubar até 75% da vegetação, mas essa regra não foi implementada.
Comparando o Decreto de 1934 com a Lei nº 4771/65, observa-se que as áreas protegidas eram as margens de corpos d’água e locais específicos. Assim, o artigo 23 visava limitar o desmatamento apenas nas áreas hoje classificadas como de preservação permanente.
Portanto, não há como conceber a pretensão do Ministério Público de que malfadado Decreto nº 23.793/1934 prevaleça como “marco legal” em detrimento dos instrumentos definidos no Estado de São Paulo, criados a partir de dados oficiais e confiável, a fim de viabilizar a efetividade e aplicação dos artigos 67 e 68 da Lei nº 12.651/12 e artigos 27 e 32 da Lei Estadual nº 15.684/15.
Via única
Conforme esclarecido pelo Estado de São Paulo, nas cartas disponibilizadas publicamente pelo IBGE [2], em especial a base cartográfica produzida em 1965, há indicação de matas e de plantações perenes, e se trata da única fonte confiável disponível. Ante a inexistência de mapas ou elementos cartográficos oficiais do estado de São Paulo relativos a 1934 e durante a vigência do Código Florestal de 1934, a orientação pelo princípio da boa-fé determina a presunção de que os limites estabelecidos no Código Florestal de 1934 foram respeitados.
Assim, a adoção da base cartográfica de 1965 é imprescindível para se estabelecer um parâmetro objetivo de análise da vegetação do estado de São Paulo, a partir de uma fonte oficial confiável. Caso contrário, estar-se-ia impondo ao proprietário uma prova impossível, diabólica.
Com efeito, a Resolução SAA nº 55, de 2020, pautada em um elemento oficial e confiável para representação da vegetação existente no Estado, e único disponível, estabeleceu um critério objetivo de orientação de seus agentes, que viabilizou as análises automatizadas por meios eletrônicos.
Realmente, à míngua de outros elementos confiáveis, parece ser o único caminho viável para que as análises do CAR sigam procedimentos confiáveis e uniformes, sem deixar de promover a adequada proteção do meio ambiente e garantir a qualidade socioambiental e a sustentabilidade, que são as finalidades precípuas dos órgãos ambientais.
Nessa linha, é oportuno destacar que há muito o Tribunal de Justiça de São Paulo, especialmente nos julgamentos da 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, vem sedimentando o entendimento de que compete ao órgão ambiental a análise de adequação ambiental do imóvel rural, incluindo propostas de reserva legal, áreas de preservação permanente, e correspondentes planos de recuperação, o que se confirma em julgados mais recentes incluindo discussão sobre a aplicação do artigo 68 do Código Florestal [3].
O que se espera é que esse entendimento prevaleça e se consolide, permitindo que até a metade desse século todos os imóveis rurais do Estado de São Paulo estejam ambientalmente regulares.
[1] SILVA, Filipe Oliveira. O Conselho Florestal Federal: Um Parecer de sua Configuração Institucional (1934-1967). In: HALAC – Historia Ambiental, Latinoamericana y Caribeña
v.7, n.2(2017)• p. 101-129. • ISSN 2237-2717101. Disponível em <https://www.halacsolcha.org/index.php/halac/article/view/335/307>. Acesso em 16.05.2024.
[2] https://geoftp.ibge.gov.br/cartas_e_mapas/folhas_topograficas/editoradas/escala_50mil/
[3] TJ-SP. AC 0021421-03.2011.8.26.0506. AC 1000114-66.2015.8.26.0172. AC 0001213-38.2015.8.26.0415. AI 2069010-34.2022.8.26.0000.
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