Redirecionamento de execução fiscal segue viés objetivo da actio nata
11 de setembro de 2024, 10h22
Quando começa a prescrição?
Lendo o oportuno artigo de Augusto Cézar Lukascheck Prado na semana passada, notei que ainda não trouxera à coluna discussão análoga que venho travando nos últimos tempos: a definição do início do prazo para redirecionamento de execução fiscal fundado na acusação de grupo econômico de fato ou em outras condutas fraudulentas imputadas ao executado e ao(s) terceiro(s).
Deveras, tem sido frequente o recurso por fiscos, procuradorias e julgadores à tese de que a prescrição para o redirecionamento só se contaria a partir da ciência inequívoca das autoridades fiscais quanto aos fatos que, na sua opinião, dão ensejo ao pedido de inclusão dos coobrigados.
Entendemos que não é assim: pelo contrário, durante o prazo prescricional, as autoridades fiscais devem constatar os ilícitos justificadores do redirecionamento, identificar os responsáveis e acioná-los em juízo. Entender o contrário equivale, na prática, a consagrar a imprescritibilidade na matéria, pois só uma administração cuja desídia beirasse o crime ficaria inerte por cinco anos após comprovadamente informada de fatos que são sempre descritos como graves.
Viés objetivo da actio nata: regime ordinário
A nossa posição fundamenta-se na teoria da actio nata, subvertida pela corrente ora combatida, que a faz coincidir com uma sua vertente excepcionalíssima: o viés subjetivo da actio nata, aplicável apenas a casos raros e bem justificados. É o que registrou com rigor e clareza a Ministra Nancy Andrighi no voto condutor do Recurso Especial 1.836.016/PR (3ª Turma, j. 10.05.2022) — acórdão ainda não publicado, mas cuja orientação se sedimentou no STJ.
Segundo o Informativo 736 daquela Corte [1], começa a ministra por lembrar que “a determinação do termo inicial dos prazos prescricionais demanda, inicialmente, a distinção entre os conceitos de direito subjetivo e de pretensão”. Consistindo esta última no “poder de exigir um comportamento positivo ou negativo da outra parte da relação jurídica”, nasce tão logo o primeiro se torne exigível.
Vinculando-se à pretensão (mais exatamente, ao encobrimento da sua eficácia), a prescrição — continua o voto — se inicia no exato momento em que aquela surge. E conclui: “em síntese, o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que, disso, tenha ou possa ter o respectivo credor”. Esta a teoria clássica da actio nata, extraída por Savigny do brocardo latino “actioni nondum natae non praescribitur”.
“Eventuais injustiças” decorrentes desse viés puramente objetivo da teoria (fundado apenas nos fatos, sem considerar o conhecimento que o credor possa ter deles) “são mitigadas ou temperadas pelas regras atinentes à suspensão, à interrupção e ao impedimento dos prazos prescricionais”, presentes no Direito Civil (CC, artigos 197 a 204) e — acrescentamos nós — também no Direito Tributário (CTN, artigos 125, III, 155, parágrafo único, e 174).
Viés subjetivo da actio nata: hipóteses excepcionais
Em seguida, anota a ministra Andrighi que em determinados casos o STJ desloca o início do prazo prescricional do instante do surgimento da pretensão para aquele em que o respectivo titular dela toma ciência — no que por isso mesmo se batizou de viés subjetivo da actio nata. Mas adverte que esse dies a quo alternativo — que corporifica a primazia do valor justiça sobre o valor segurança — é excepcional, dedicando-se a partir daí a estabelecer os critérios para a sua aplicação. São eles:
i) incapacidade do credor, segundo standards médios e a boa-fé objetiva, de ter ciência imediata do nascimento da pretensão, o que ocorre por exemplo quando há “distância física entre o titular do direito e o objeto tutelado pelo sistema jurídico (p. ex. propriedades rurais longínquas)” ou “lapso temporal entre o ato ilícito (dano-evento) e a lesão (dano-prejuízo)”, como nos “problemas de saúde cujos sintomas demoram a surgir”;
ii) prazos prescricionais curtos: “a exiguidade dos prazos é (…) compensada pela (…) adoção de critérios subjetivos para a aferição do termo inicial”;
iii) relações de direito absoluto, isto é, com sujeito passivo indeterminado (direitos reais e direitos da personalidade), pois “da presença do sujeito passivo universal decorre uma maior dificuldade para o credor determinar o causador e a extensão do dano sofrido”. Em contraposição, as relações de direito relativo, que têm sujeito passivo determinado (como as obrigacionais), sujeitam-se ao viés objetivo da actio nata;
iv) previsão legal expressa, como nos artigos 27 do CDC (prescrição a partir da ciência, pelo consumidor, do dano e de sua autoria) e 206, parágrafo 1º, inciso II, alínea “b”, do Código Civil (prescrição, nos contratos de seguro em geral, a partir da ciência do fato gerador da pretensão).
Critério aplicável ao Direito Tributário
Pois bem: nenhum dos critérios acima aponta para a aplicação do viés subjetivo da actio nata ao Direito Tributário em geral e ao redirecionamento das execuções fiscais no particular. Com efeito:
a) o Direito Tributário guia-se pela justiça na sua formulação (capacidade contributiva, entre outros valores), mas pela segurança na sua aplicação, sujeito que é à legalidade estrita e à tipicidade cerrada na definição dos fatos geradores e na identificação dos sujeitos passivos;
b) o redirecionamento das execuções fiscais atende a prazo prescricional longo (cinco anos), iniciado somente após o ajuizamento da execução, mesmo que a causa que o determina lhe seja anterior (pois não se redireciona execução que não existe) e passível de diversas causas de suspensão e interrupção, listadas no CTN;
c) a máquina arrecadatória conta com profissionais especializados, moderna tecnologia e instrumentos jurídicos superiores aos de qualquer outro credor (acesso a dados bancários, inclusive), nada havendo que lhe impeça o rápido conhecimento de ilícitos atribuíveis a terceiros vinculados ao fato gerador da obrigação tributária;
d) a relação tributária — mesmo quanto ao responsável — é de natureza obrigacional, qualificando-se como de direito relativo; e
e) não há norma legal determinando a aplicação do viés subjetivo da teoria da actio nata no particular.
Em relação ao ponto “c” acima, um desdobramento é necessário. Com efeito, é comum ouvir das Fazendas, em casos de maior complexidade, que se trataria de atos aparentemente lícitos e que apenas a partir de demorada investigação teria sido possível compreender que eram fraudulentos em seu conjunto. O argumento — na verdade, uma tentativa de purga da mora no pedido de redirecionamento — não se sustenta.
Primeiro porque, a valer essa tese, o prazo seria diferente segundo o procurador que funciona no caso fosse mais ou menos diligente ou arguto. É para isso que se lhe concede o prazo nada exíguo de cinco anos.
E segundo porque isso levaria à impossibilidade de controle da prescrição, visto que é impossível aferir o momento em que cada procurador alcança o insight sobre a suposta ilicitude do contexto fático — o que acabaria por submeter a contagem do prazo ao exclusivo alvedrio da parte contra a qual ele corre.
Debate vai render
A matéria exige maior aprofundamento no âmbito tributário, mas o princípio da coerência interna do Direito e as razões aqui esboçadas apontam para a adoção das mesmas diretrizes válidas no Direito Privado, sintetizadas com mestria no voto-vista da ministra Nancy Andrighi, que formou jurisprudência no STJ.
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[1] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/docs_internet/informativos/PDF/Inf0736.pdf
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