Garantias do Consumo

Perdão de dívidas no superendividamento: análise à luz da lei e doutrina

Autor

  • Leonardo Garcia

    é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

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11 de setembro de 2024, 8h00

O superendividamento, um problema crescente no Brasil e no mundo, tem motivado debates acalorados sobre suas causas, consequências e, principalmente, soluções. Uma das questões mais complexas que o tema suscita é a possibilidade de perdão das dívidas, um assunto controverso que divide opiniões e esbarra em diferentes interpretações jurídicas. Este texto, portanto, se propõe a analisar a viabilidade do perdão de dívidas no contexto do superendividamento no Brasil, à luz da legislação vigente, doutrina especializada e casos concretos.

O superendividamento, como bem define o artigo 54-A, §1º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), atualizado pela Lei 14.181/2021, caracteriza-se pela “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”. Tal conceito, como se pode observar, é central na discussão sobre o perdão de dívidas, pois coloca em questão a colisão entre o direito de crédito e a dignidade da pessoa humana.

A lei, nesse ponto, é clara ao estabelecer a preservação do mínimo existencial como um princípio fundamental. Isso significa que, mesmo em situação de superendividamento, o consumidor tem direito a uma parcela de sua renda e patrimônio destinada a garantir sua subsistência e de sua família, assegurando acesso a condições mínimas de vida digna, como moradia, alimentação, saúde e educação.

Surge então o questionamento: como conciliar a exigibilidade das dívidas com a proteção do mínimo existencial, especialmente quando este já se encontra comprometido pela situação de superendividamento? É nesse contexto que a possibilidade de perdão de dívidas ganha força, ainda que de forma tênue e controversa no ordenamento jurídico brasileiro.

Círculo vicioso

A doutrina, em sua análise do superendividamento, aponta para a necessidade de se buscar soluções que extrapolem o mero caráter punitivo-patrimonial, comumente aplicado em casos de inadimplência. Afinal, o superendividamento não se configura, na maioria das vezes, por má-fé ou intenção deliberada do consumidor em não honrar seus compromissos, mas sim por uma conjunção de fatores que o levam a um círculo vicioso de impossibilidade de pagamento.

Fatores como a oferta indiscriminada de crédito, a falta de educação financeira, o consumismo exacerbado e os “acidentes da vida” (desemprego, doença, divórcio etc.), contribuem significativamente para o crescimento do número de superendividados, colocando o consumidor em uma posição de extrema vulnerabilidade.

Nesse cenário, o perdão de dívidas, ainda que ausente de previsão legal expressa no Brasil, surge como um importante instrumento de justiça social, ao possibilitar ao consumidor superendividado a oportunidade de um “fresh start”, ou seja, um recomeço financeiro livre do peso de dívidas impagáveis.

É preciso reconhecer que a renegociação e a repactuação de dívidas, mecanismos amplamente defendidos pela Lei 14.181/2021, são o primeiro passo para a superação do superendividamento.

Contudo, em determinados casos, tais medidas podem se mostrar insuficientes para garantir a efetiva recuperação financeira do consumidor e a preservação de sua dignidade, especialmente quando o montante da dívida é exorbitante e ultrapassa em muito a capacidade de pagamento, mesmo a longo prazo.

A ideia do perdão de dívidas, apesar de seus benefícios sociais, encontra resistência em parte da doutrina, principalmente por aqueles que defendem a necessidade de garantir a segurança jurídica e evitar o chamado “risco moral”. Assim, argumenta-se que a ausência de previsão legal expressa para o perdão de dívidas gera insegurança jurídica, tanto para credores quanto para devedores, pois abre margem para interpretações subjetivas e decisões judiciais contraditórias. Já o argumento do “risco moral” sustenta que a possibilidade de perdão de dívidas pode incentivar o comportamento irresponsável por parte dos consumidores, que, sabendo da possibilidade de não ter que arcar com suas dívidas, tenderiam a se endividar de forma descontrolada.

Perdão parcial

A nossa Lei do Superendividamento foi nitidamente inspirada no sistema de tratamento de superendividamento da França. O sistema francês de tratamento de superendividamento, estabelecido em 1989, inicialmente se concentrava em planos de pagamento em vez de perdão de dívidas. O objetivo era reabilitar os devedores, responsabilizando-os pelo reembolso de suas dívidas, mesmo que isso significasse um compromisso de longo prazo de sua renda futura. No entanto, essa abordagem mostrou-se inadequada para lidar com casos graves de superendividamento, nos quais os devedores não tinham bens ou renda para pagar suas dívidas dentro de um prazo razoável [1].

Assim, o conceito de perdão parcial de dívidas foi introduzido na legislação francesa em 1998 como uma medida extraordinária para casos de “superendividamento-insolvência”. Essa medida, concedida após um período de moratória de dois anos, visava lidar com situações em que as medidas ordinárias de parcelamento de dívidas e redução de juros não eram suficientes para aliviar o fardo do devedor [2].

Nos mesmos moldes que na França, o perdão de dívidas pode ser adotada no Brasil como uma medida excepcional, aplicada apenas em casos extremos, quando comprovada a boa-fé do consumidor e a impossibilidade de pagamento, mesmo após a aplicação de outros mecanismos de renegociação e repactuação.

A construção de um sistema justo e eficaz de tratamento do superendividamento exige, portanto, um debate amplo e aprofundado entre os diversos atores envolvidos (legisladores, magistrados, advogados, economistas e a própria sociedade civil), com o objetivo de se encontrar soluções equilibradas que, ao mesmo tempo em que garantam a segurança jurídica e a saúde do mercado de crédito, assegurem a dignidade da pessoa humana e a justiça social.

O perdão de dívidas no superendividamento, embora seja um tema complexo e que gera divergências, não pode ser simplesmente ignorado pelo ordenamento jurídico brasileiro. A Lei do Superendividamento, apesar de não prever expressamente o perdão, abre caminhos para que, em situações excepcionais e mediante análise criteriosa do caso concreto, o juiz possa determinar a redução da dívida, com base na onerosidade excessiva e na necessidade de se garantir a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial do consumidor superendividado. Afinal, o objetivo maior da lei é a reinclusão do consumidor superendividado na sociedade de consumo novamente, principalmente em virtude do princípio da dignidade da pessoa humana.

 


[1] LIMA, Clarissa Costa de. O Tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. Ed. Revista dos Tribunais, 2014, pg. 101.

[2] LIMA, Clarissa Costa de. O Tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. Ed. Revista dos Tribunais, 2014.

 

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, diretor do Brasilcon, membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ e autor de várias obras jurídicas relacionadas ao Direito do Consumidor e Superendividamento.

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