Opinião

Limitações ao poder instrutório em negócios jurídicos processuais atípicos

Autor

  • Leonardo Fortes

    é graduado em Direito Pela Universidade Federal do Paraná pós-graduando em Processo Civil membro efetivo das comissões de Arbitragem e de Precatórios da OAB-PR e advogado.

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11 de setembro de 2024, 9h16

1. Autorregramento das partes e poder instrutório do magistrado

A partir da constatação de que um rito ordinário, fundamentado em um procedimento comum, genérico e padronizado, não é capaz de atender adequadamente às diversas peculiaridades das tutelas de direitos materiais submetidos ao Judiciário, o legislador buscou meios de aprimoramento da codificação processual.

O primeiro deles se deu pela introdução de procedimentos especiais, cuja finalidade principal é a implementação de trâmites específicos e adequados, com prazos ajustados, visando a eliminação de atos desnecessários para a resolução dos conflitos propostos pelas partes.

Em um segundo momento, entendendo pela necessidade de uma maior adequação dos procedimentos às necessidades das partes, tem-se a inovação legislativa do Código de Processo Civil de 2015, caracterizada pela inserção dos negócios jurídicos processuais atípicos.

Esse cenário é bem caracterizado por Lorena Miranda Santos Barreiro, que aduz acerca da implementação dos NJP atípicos como reflexo da insuficiência do procedimento comum:

“Partindo-se da constatação de que o procedimento comum, genérica e padronizadamente fixado, não era capaz de dar tratamento adequado às múltiplas peculiaridades dos direitos materiais postos à apreciação judicial, farse-ia mister conferir solução a tal problema. Inicialmente, pela criação de procedimentos especiais; em passo seguinte, pelo reconhecimento, ao magistrado, de poderes de conformação procedimental, lastreando-se tal pensamento no princípio da adequação. Por fim, o CPC/15 avança no trato da matéria, conferindo às partes, democraticamente, o poder de modelar o procedimento, adequando-o às peculiaridades da causa”.

Percebe-se uma tentativa do Código de Processo Civil de 2015 em conciliar duas das principais dimensões da atuação jurisdicional: permitir o autorregramento das partes ao passo que preserva o denominado poder instrutório do magistrado.

Este conflito de interesses se faz ainda claro na aplicação dos negócios jurídicos processuais atípicos, visto que a modificação da estrutura do procedimento proposta pelas partes pode interferir diretamente na organização esperada pelo órgão julgador.

Entretanto, antes de analisar as nuanças e as necessárias ponderações que circundam os institutos, pertinente conceituar o que se entende por “autorregramento da vontade das partes” e por poder “instrutório do magistrado”.

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Para Fredie Didier [1], o conceito de “autorregramento da vontade” se refere a um conjunto de poderes, com diferentes graus de amplitude [2], que os sujeitos de direito podem exercer.

Tratando-se de conjunto de poderes na seara processual, tem-se a disponibilidade de convencionar sobre qualquer meio de procedimento, alterando-o conforme a conveniência das partes. Pode-se dizer, inclusive, que os litigantes podem delimitar quais os meios de prova a serem utilizados para a resolução dos pontos controvertidos.

Este complexo de poderes, embora significativo, não é absoluto, estando sempre subordinado aos limites estabelecidos pela lei e ao também denominado exame crítico de conveniência do órgão julgador.

Esse exame crítico traduz a ideia de “poder instrutório do juiz”, em que o magistrado pode não apenas controlar a pertinência e a admissibilidade das provas pretendidas pelas partes, mas também determinar de ofício [3] a produção de elementos probatórios que entender necessário ao esclarecimento dos fatos [4]. Tem-se aqui a condução do processo de conhecimento.

A limitação dos negócios jurídicos parte, normalmente, da ideia de que a prestação jurisdicional está adstrita à verdade real, em sua pura forma de efetividade e justiça. Nesta perspectiva, o juiz possui o condão, fornecido legalmente, de aclarar os fatos controvertidos e de até mesmo de solicitar determinado elemento probatório durante a fase de instrução processual.

Para parte da academia, esse poder instrutório do juiz é crucial, pois assegura que todos os aspectos relevantes do caso sejam devidamente examinados, possibilitando a máxima efetividade da cognição exauriente.

Nota-se que o questionamento principal não decorre da possibilidade da atividade de ofício pelo magistrado, pois isso é previsto pela legislação. O ponto controvertido é qual a amplitude dessa faculdade do órgão julgador no que se refere à produção probatória, seria ilimitada, ou adstrita às alegações fáticas apresentadas pelas partes?

2. Negócios jurídicos processuais atípicos

Todas as ideias mencionadas indicam um choque entre os institutos discutidos, que decorre, principalmente, da interpretação literal do dispositivo legal que autoriza a celebração de convenções processuais atípicas — artigo 190 do Código de Processo Civil.

Isto porque a redação aparenta ser taxativa, limitando o controle do órgão jurisdicional aos casos em que houver: nulidade, cláusula abusiva em contrato de adesão ou em alguma parte que se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

Além disso, o legislador reforça no artigo 200 do CPC, que os atos das partes produzem efeitos imediatos, independente se pela constituição, modificação ou extinção de direitos processuais.

Nesse contexto, os negócios jurídicos atípicos revelam o caráter liberal da codificação processual, buscando sua máxima eficiência por meio do princípio do autorregramento das partes. Esse princípio inclui a cooperação entre as partes (artigo 6º do CPC) e a busca pela solução consensual de conflitos, conforme preconizado tanto no artigo 5º, XXXV da Constituição, quanto no artigo 3º do Código de Processo Civil.

À luz desta busca pela autocomposição, importante destacar [5] que o ordenamento jurídico possibilita o reconhecimento de sentenças arbitrais, ocasião em que a jurisdição realiza mero controle de legalidade, sem perder sua importância jurídica.

Portanto, se as partes têm a liberdade de convencionar amplamente suas razões dentro da seara arbitral, não há justificativa para aumentar as limitações dentro da tutela jurisdicional, sob-risco de tornar o instituto obsoleto.

Apesar dessas considerações, é imprescindível lembrar que a aplicação de todas as disposições legais deve ser realizada à luz da hermenêutica constitucional, visto que embora a literalidade do parágrafo único do artigo 190 sugira uma limitação taxativa, deve-se destacar a prevalência do controle decorrente das disposições gerais do CPC e dos preceitos constitucionais.

Assim, os negócios atípicos, principalmente em matéria probatória já são limitados pelas prerrogativas legais de existência, validade e eficácia, de modo que suas convenções não representam qualquer ofensa direta aos poderes do juiz, que inclusive deve estimular a autocomposição [6].

3. Da limitação do poder instrutório como entrave para as convenções atípicas em matéria probatória

Com base nas premissas anteriormente discutidas, é fundamental ressaltar que o quadro fático apresentado ao magistrado já está sujeito a restrições, de modo que a delimitação desse quadro ocorre quando as partes submetem suas razões iniciais e, posteriormente, suas defesas, estabelecendo um escopo específico para a apreciação judicial.

Além das questões de ordem pública e dos casos excepcionais, a atividade jurisdicional enfrenta, naturalmente, limitações em seus poderes instrutórios, inexistindo qualquer tipo de reforço decorrente do dispositivo do artigo 190 do CPC.

O princípio da congruência impõe restrições ao julgamento, vedando a análise além (extra), aquém (citra) ou fora (ultra) do pedido das partes, de modo que os poderes instrutórios estão condicionados ao contexto fático e probatório apresentado pelos litigantes.

Assim, a justificativa de que os negócios jurídicos processuais atípicos interferem de maneira direta no poder instrutório do magistrado não merece prosperar, visto que a afirmação sempre demandará análise casuística. Trata-se de premissa ampla e genérica, que não se atenta às peculiaridades do instituto inserido pelo artigo 190 do CPC.

No contexto da prova, é relevante considerar sua tríade conceitual: atividade, meio e resultado. Adotando-se a ideia de prova como atividade, caracterizada por Paulo Osternack [7] Amaral como o conjunto de atos processuais praticados com o objetivo de reconstruir os fatos que amparam a pretensão das partes, não se vê interferência entre as convenções processuais celebradas pelos litigantes e a atividade instrutória do magistrado.

Isto porque são as partes que reconstroem os fatos já ocorridos e os apresentam ao magistrado, de modo que todo o seu crivo analítico está adstrito ao que é oferecido pelas pretensões resistidas. Assim, excetuadas as situações de ordem pública, e ao controle de legalidade atinente ao afastamento de provas ilícitas e ilegítimas, não se vê nenhum tipo de restrição à utilização do dispositivo do artigo 190 do CPC em matéria de direito probatório.

Por todo exposto, tem-se que, estando submetidos à análise de legalidade do magistrado, e ligados ao exercício do múnus público da jurisdição, os negócios jurídicos processuais atípicos não interferem no poder instrutório do magistrado, que continuará sendo realizado dentro do contexto fático e probatório delimitado pelas partes.

 


[1] DIDIER JR, Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 57, p. 167-172, 2015

[2] ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil – Teoria Geral. Coimbra: Coimbra, 1999, p. 78, v. II.)

[3] Marinoni, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Gruz; Mitidiero, Daniel; O Novo Processo Civil. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2015, pág. 254.

[4] AMARAL, PAULO OSTERNACK. Manual das provas cíveis. Editora Thoth, 2024, (pg. 28-30).

[5] LUCCA, Rodrigo Ramina de. Disponibilidade Processual  A liberdade das partes no Processo. São Paulo: RT, 2019, p. 331.

[6] Art. 3º, § 2º, CPC: O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

[7] AMARAL, PAULO OSTERNACK. Manual das provas cíveis. Editora Thoth, 2024, pag. 27.

Autores

  • é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduando em Processo Civil pela Escola Paranaense de Direito, membro efetivo das comissões de arbitragem e de precatórios da OAB-PR e advogado.

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