Opinião

Incêndios, queimadas e o manejo do fogo: notas sobre a recém-publicada Lei 14.944/2024

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11 de setembro de 2024, 6h32

“Cidade de SP pode ter ‘chuva preta’ por fumaça de queimadas” [1]; “Fumaça de queimadas na Amazônia carrega ‘partículas de poluição que matam milhões de pessoas no mundo’, alerta especialista” [2]; “Fumaça de queimadas da Amazônia e do interior chega à região metropolitana de SP e deixa céu cinza” [3] . Essas são só algumas das inúmeras headlines que tomaram conta dos jornais tradicionais e especializados, no Brasil, entre agosto e setembro de 2024.

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Bombeiro enfrenta incêndio

O uso do fogo como ferramenta agrícola é uma prática milenar e profundamente enraizada em diversas culturas ao redor do mundo. O método, rotineiramente, continua a ser empregado, tanto por grandes complexos agropastoris quanto por comunidades tradicionais que utilizam o fogo de forma adaptativa para o manejo de suas terras e subsistência: da cultura da cana-de-açúcar no Brasil à ideia aborígene de que a mata precisa queimar ou cool burning. De todo modo, embora o fogo possa desempenhar um papel útil e, em alguns casos, até ecológico, seu uso descontrolado, desarrazoado e sem critérios técnicos pode causar consequências devastadoras, tanto para o meio ambiente quanto para a saúde pública.

Nos últimos meses [4], o Brasil testemunhou um aumento alarmante nas queimadas descontroladas – sejam essas naturais ou de causas antrópicas – com impactos visíveis no campo e nas grandes cidades. Em regiões como a Amazônia e o Pantanal, os incêndios intensificaram o desmatamento, agravando a crise ambiental, ao mesmo tempo, centros urbanos como São Paulo e Manaus sofreram com a poluição atmosférica severa, levando a níveis críticos de qualidade do ar. Essa poluição, gerada principalmente pela fuligem e material particulado (PM2.5) liberado pelas queimadas, coloca em risco a saúde de milhões de pessoas e a biodiversidade de ecossistemas complexos.

Lei 14.944/2024 e o manejo integrado do fogo

Em meio a esse inquieto contexto, uma nova norma, com sensíveis alterações, é promulgada. Trata-se da Lei 14.944, de 31 de julho de 2024, que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo e altera as Leis 7.735/1989 (Lei do Ibama), 12.651/2012 (Código Florestal), e 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais).

A Lei nº 14.944/2024 representa um marco na legislação ambiental brasileira ao instituir a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, buscando equilibrar o uso do fogo com a necessidade de preservação ambiental e combate a incêndios. Seus objetivos principais (artigo 5º) são prevenir a ocorrência de incêndios florestais, reduzir seus impactos e promover o uso controlado e prescrito do fogo. A lei reconhece, também, o papel histórico e ecológico do fogo em certos ecossistemas e nas práticas tradicionais de comunidades indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais (artigo 1º). Assim, a nova política cria mecanismos para uma governança integrada entre diferentes entes federativos, como a União, estados e municípios, além de incluir a participação da sociedade civil e do setor privado, promovendo ações coordenadas no manejo (artigo 1º parágrafo único).

Definições e distinção

Um dos aspectos basilares são as definições legais (artigo 2º). A norma define com precisão o que constitui um incêndio florestal, descrevendo-o como qualquer fogo não controlado e não planejado que afeta florestas e outras formas de vegetação, seja nativa ou plantada, em áreas rurais. Essa definição é essencial para delimitar o campo de atuação da política, diferenciando incêndios florestais de práticas legais de manejo do fogo. O conceito também é ampliado ao reconhecer que um incêndio florestal, independentemente de sua fonte de ignição, requer uma resposta organizada e imediata dos órgãos responsáveis.

Além disso, a lei faz uma distinção crucial entre queima controlada e queima prescrita, ambas práticas previstas para o uso legal do fogo (artigo 2º, II e III). A queima controlada é o uso do fogo de forma planejada, monitorada e controlada, geralmente com finalidades agrossilvipastoris. Isso significa que essa prática é autorizada para áreas previamente determinadas, desde que sob condições específicas estabelecidas pelo órgão ambiental competente. Já a queima prescrita tem um foco diferente: ela é usada para fins de conservação, pesquisa ou manejo de áreas específicas, dentro de um plano de manejo integrado do fogo.

Ancestralidade e comitê

A lei também introduz o conceito de uso tradicional e adaptativo do fogo, que reconhece práticas ancestrais de manejo por comunidades indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais (artigo 2º, IV). Já a definição de uso solidário do fogo, por sua vez, é um mecanismo que permite que pequenos agricultores realizem queimadas em conjunto, abarcando propriedades rurais familiares contíguas, também sob controle e autorização ambiental (artigo 2º, V).

Spacca

A lei incentiva, ainda, a substituição gradual do uso do fogo por práticas mais ecológicas, como adubação verde, permacultura, agrofloresta, carbono social, pastagem ecológica, plantio direto sobre a capoeira e sua biomassa triturada, sistemas agrossilvipastoris e plantio direto. Isso não significa a erradicação total do uso do fogo, mas uma transição para métodos que minimizem eventuais os danos ambientais.

Além de promover essas práticas, a lei estabelece a criação do Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo (Art. 6º), o aperfeiçoamento das brigadas florestais, assegurando direitos como a seguro de vida (Art. 14), a instituição do mascote “labareda” – um tamanduá-bandeira símbolo do Plano – além de ponderar mecanismos de prevenção e controle, para que o uso do fogo seja constantemente monitorado e que os responsáveis por incêndios florestais não autorizados possam ser responsabilizados tanto na esfera administrativa quanto na civil e criminal. A criação de brigadas florestais e o aprimoramento do Sistema Nacional de Informações sobre Fogo (Sisfogo) são instrumentos cruciais para garantir a eficácia dessa política, assegurando a rápida resposta a incêndios e a gestão adequada de dados relacionados ao manejo do fogo em todo o território nacional.

Crimes ambientais

Por fim, a nova lei faz sua alteração mais substancial: modifica a lei de crimes ambientais ao especializar a aplicação da norma penal e ampliar as possibilidades de aplicação de seu artigo 41. Passamos a explicar.

A redação do referido artigo em sua versão original, revogada e tachada, e a redação após a alteração da nova lei de manejo do fogo:

“Art. 41. Provocar incêndio em mata ou floresta:

Art. 41. Provocar incêndio em floresta ou em demais formas de vegetação: (Redação dada pela Lei nº 14.944, de 2024)

Pena – reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de detenção de seis meses a um ano, e multa.”

O entendimento até então consolidado pela jurisprudência pátria reside na ideia de que a tipificação do artigo 41 da Lei de Crimes Ambientais demandaria o incêndio em “floresta” ou “mata” (vide STJ Recurso Especial nº 933.356 – MG e Recurso em Habeas Corpus nº 24.859 – MG) ao ponto que em plantações ou demais formas de vegetações que não se possa considerar “floresta” ou “mata” na tipificação do artigo 250 do Código Penal. Na letra na norma:

“Art. 250 – Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:

Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa.

§1º – As penas aumentam-se de um terço: […]

II – se o incêndio é: […]

h) em lavoura, pastagem, mata ou floresta.”

Na sistemática da seara penal, um dos princípios que norteiam a caracterização típica é o axioma da especialidade, o qual a existência de um tipo delituoso em lei específica afasta a aplicação de lei geral. Nos ensinamentos de Fernando Galvão “o princípio da especialidade pode ser decomposto em três regras de aplicação prática: […] c) um tipo incriminador previsto na legislação extravagante que traz especial tratamento ao bem jurídico afasta a incidência de tipo genérico constante no Código Penal” [5].

Intenção da norma e redução punitiva

Pode ser que até este momento da nossa breve divagação você possa estar se perguntando: será mesmo que a intenção da nova norma era incluir as plantações e cultura agrícolas no gênero “demais formas de vegetação”? Passa-se a fundamentar a resposta afirmativa se o próprio conceito de incêndio trazido pela nova lei como “qualquer fogo não controlado e não planejado que incida sobre florestas e demais formas de vegetação, nativa ou plantada, em áreas rurais e que, independentemente da fonte de ignição, exija resposta” não bastar.

Em primeiro lugar, através do dicionário Michaelis, que define vegetação como o “conjunto de plantas que povoam uma área determinada e que a caracterizam”, [6] e do dicionário da enciclopédia Britânica, que igualmente conceitua vegetação como “plantas em geral: plantas que cobrem uma área específica” [7]. Em segundo lugar através da exposição de motivos do Código Florestal de 1934, primeira norma a evidenciar o termo “outras formas de vegetação” e exemplificar com campos de forrageiras para gado:

“No significado vulgar, floresta é toda a vegetação alta e densa, cobrindo uma área de grande extensão. Evidentemente, porém, não é só essa forma de vegetação que necessita ser protegida, apesar do nome dado ao Código. O anteprojeto resolveu a dificuldade estatuindo no parágrafo único do art. 2º que, para os efeitos do Código, são equiparadas às florestas todas as formas de vegetação que sejam de utilidade às terras que revestem, o que abrange até mesmo as plantas forrageiras nativas que cobrem os nossos vastos campos naturais, próprios para a criação de gado. País destinado a se tornar em futuro próximo um dos maiores centros pastoris do mundo, é de sumo interesse velar pelas pastagens existentes, só permitindo que nelas se toquem para melhorá-las, e nunca para degradá-las, como infelizmente tem sucedido a muitas” [8].

Por fim, a FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura, ao conceituar estoque de biomassa traz que essa é composta por toda vegetação viva, indiferente se de material lenhoso ou herbáceo, se de caules, tocos, galhos, cascas, sementes e folhagens [9].

Logo, na prática, é possível entender que, com a promulgação da nova lei e a especialização da norma penal, houve uma redução punitiva estatal na ação delituosa “incêndio e queimada em plantações, lavouras ou similares”: de quatro a oito anos, no Código Penal para dois a quatro anos, na Lei 9605/98 [10].

Considerações finais

A conclusão deste artigo, em meio a uma análise crítica e jurídica da Lei 14.944/2024, se propõe a enfatizar a importância e a complexidade de se regulamentar o manejo do fogo em um cenário ambiental cada vez mais desafiador. A nova legislação, ao reconhecer o fogo como uma ferramenta milenar de manejo territorial, não apenas valida práticas ancestrais de comunidades tradicionais, mas também avança na tentativa de conciliar o uso do fogo com grandes players agrícolas com a necessária preservação ambiental. No entanto, a aplicação prática dessa lei enfrenta uma série de obstáculos, principalmente em um contexto que as mudanças climáticas e a intensificação de queimadas ilegais ou não autorizadas trazem efeitos prejudiciais para a saúde pública e o meio ambiente.

O foco da lei na substituição gradual do fogo por práticas mais sustentáveis, como agroflorestas e plantio direto, reflete uma tentativa de mitigar os impactos ambientais. Contudo, a efetividade dessa transição depende de uma forte integração entre órgãos governamentais, instituições de pesquisa e comunidades rurais, o que exige um esforço coordenado e contínuo.

Ademais, a redefinição penal trazida pela alteração do artigo 41 da Lei de Crimes Ambientais ao mesmo tempo que sugere uma ampliação das condutas delitivas relacionadas ao uso inadequado do fogo, ao incluir “demais formas de vegetação”, o legislador reduz objetivamente o intervalo de cálculo de penas e a punição estatal.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Decreto-Lei 2.848 de 1940. Código Penal.

BRASIL. Lei 14.944 de 2024.

BRASIL. Lei 9.605 de 1998.

FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). Global Forest Resources Assessment. Terms and Definitions. Roma, 2018.

GALVÃO, Fernando. Direito Penal: parte geral. 14ª Ed. São Paulo: D’Plácido. 2021.

PEREIRA, Osny Duarte. Direito florestal brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, 1950.

[1] CNN Brasil. 25 de agosto de 2024. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/cidade-de-sp-pode-ter-chuva-preta-por-fumaca-de-queimadas-entenda-o-fenomeno/

[2] O Globo. 21 de agosto de 2024. Disponível em https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/08/21/fumaca-de-queimadas-na-amazonia-carrega-particulas-de-poluicao-que-matam-milhoes-de-pessoas-no-mundo-alerta-especialista.ghtml

[3] G1. 23 de agosto de 2024. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/08/23/fumaca-de-queimadas-da-amazonia-e-do-interior-chega-a-regiao-metropolitana-de-sp-e-deixa-ceu-cinza.ghtml

[4] Nota dos autores: Este texto se refere aos meses de agosto e setembro de 2024.

[5] GALVÃO, Fernando. Direito Penal: parte geral. 14ª Ed. São Paulo: D’Plácido. 2021.

[6] Dicionário Michaelis. Disponível em https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=vegeta%C3%A7%C3%A3o . Acesso em 06 de setembro de 2024.

[7] The Britannica Dictionary. Disponível em https://www.britannica.com/dictionary/vegetation . Acesso em 06 de setembro de 2024. Em tradução livre de “vegetation: plants in general: plants that cover a particular area”.

[8] PEREIRA, Osny Duarte. Direito florestal brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, 1950.

[9] FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). Global Forest Resources Assessment. Terms and Definitions. Roma, 2018.

[10] Nota dos autores: não foi objetivo do estudo dissertar sobre o concurso de crimes, como por exemplo, o crime de perigo abstrato na hipótese de o incêndio ou queimada descontrolada expor a perigo a casa-sede de fazenda vizinha.

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