Opinião

Experimentalismo judicial: inovação e desafios na prática jurídica contemporânea

Autor

  • João Paulo Lordelo

    é procurador da República em auxílio à Procuradoria-Geral da República pós-doutor (Universidade de Coimbra) doutor em Direito (UFBA) coordenador do Grupo de Trabalho sobre Processos Coletivos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) membro da comissão de juristas designada pela Câmara dos Deputados para elaboração do projeto reforma da Lei de Lavagem de Capitais e ex-defensor Público Federal.

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11 de setembro de 2024, 18h17

Nos países do chamado “Sul Global”, os tribunais se tornaram atores centrais da política social. Acompanhando esse fenômeno, a literatura jurídica passou a discutir, cada vez mais, como as cortes podem contribuir para desempenhar um papel mais eficiente na tutela dos direitos sociais, valendo-se de uma metodologia experimentalista. [1]

O experimentalismo judicial consiste em uma abordagem inovadora no cenário jurídico contemporâneo, desafiando paradigmas tradicionais e propondo novas formas de pensar e aplicar o direito. Este fenômeno, que ganha cada vez mais relevância tanto no Brasil quanto internacionalmente, reflete uma mudança significativa na maneira como os tribunais e juízes abordam questões complexas e multifacetadas da sociedade moderna.

No seu cerne está a ideia de que o sistema jurídico deve ser capaz de se adaptar e evoluir em resposta às rápidas mudanças sociais, tecnológicas e econômicas. Esta abordagem reconhece que as soluções jurídicas tradicionais nem sempre são suficientes para lidar com os desafios contemporâneos, exigindo uma postura mais flexível e inovadora por parte dos órgãos julgadores.

Fundamentos teóricos do experimentalismo judicial

As raízes do experimentalismo judicial residem no pragmatismo jurídico, escola de pensamento que enfatiza a importância de serem levadas em consideração as consequências práticas das decisões judiciais. Charles Sabel e William Simon são figuras proeminentes no desenvolvimento teórico desta abordagem. Em “Destabilization Rights: How Public Law Litigation Succeeds” (2004), os autores defendem que o direito público moderno deve adotar uma abordagem mais flexível e experimental, capaz de responder dinamicamente a problemas sociais complexos. [2]

Segundo Sabel e Simon, em vez de impor soluções definitivas, os tribunais deveriam atuar como facilitadores de um processo de resolução de problemas colaborativo e iterativo. Nesse modelo, as decisões judiciais seriam vistas como hipóteses a serem testadas e refinadas ao longo do tempo, com base em evidências empíricas e feedback contínuo.

O experimentalismo judicial também se alinha com o conceito de “direito responsivo” proposto por Philippe Nonet e Philip Selznick. Cuida-se da compreensão de que o sistema jurídico deve ser capaz de responder às necessidades sociais e adaptar-se a contextos mutáveis, em oposição a uma abordagem rígida e formalista do direito. [3]

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Essa abordagem não é isenta de críticas. Autores como Frederick Schauer alertam para os riscos potenciais de uma abordagem excessivamente flexível do direito. Para ele, a ênfase excessiva em soluções consideradas ad hoc pode comprometer a previsibilidade e a coerência do sistema jurídico. [4]

Manifestações práticas do experimentalismo judicial

O experimentalismo judicial encontra expressões concretas em diversas práticas judiciais inovadoras ao redor do mundo. Uma das manifestações mais notáveis é o uso de “remédios estruturais” em casos complexos de reforma institucional (processos estruturais). Nos Estados Unidos, o caso Brown v. Board of Education (1954) é um exemplo icônico, que não apenas declarou a segregação racial nas escolas inconstitucional, mas também iniciou um longo processo de dessegregação, que exigiu intervenção judicial contínua e adaptativa.

No contexto brasileiro, podemos observar práticas semelhantes em casos envolvendo o sistema prisional. A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 347, em que reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” no sistema penitenciário brasileiro, abriu caminho para intervenções judiciais mais abrangentes e experimentais nesse campo.

Outra manifestação prática é o surgimento de “tribunais para solução de problemas” (problem-solving courts). Estes tribunais especializados, como as cortes de drogas e de saúde mental do Canadá e os tribunais britânicos de violência doméstica, adotam uma abordagem mais holística e colaborativa para lidar com problemas sociais complexos. Como pontuam Greg Berman e John Feinblatt, os problem-solving courts representam uma mudança fundamental na forma como o sistema de justiça aborda certos tipos de casos. [5]

O experimentalismo judicial também se manifesta através de inovações processuais e tecnológicas que objetivam melhorar o acesso à Justiça e a eficiência do sistema judiciário. No Brasil, a Resolução nº 350 de 27/10/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um exemplo claro dessa tendência, estabelecendo diretrizes para a implementação de práticas cooperativas inovadoras no Poder Judiciário.

Desafios e críticas ao experimentalismo judicial

Também merece destaque a Resolução CNJ nº 225 de 31/05/2016, que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. De acordo com o seu artigo 1º, a Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado.

Apesar de seu potencial inovador, o experimentalismo enfrenta uma série de desafios e críticas. Uma das principais é a potencial tensão com princípios fundamentais do direito, como a segurança jurídica e a separação de poderes. [6]

Autores como Jeremy Waldron levantam preocupações sobre como abordagens judiciais experimentais podem afetar a dimensão procedimental do Estado de direito, em prejuízo à integridade processual e à igualdade perante a lei. Segundo o autor, procedimentos legais padronizados servem não apenas à eficiência, mas também a valores fundamentais previamente estabelecidos em uma comunidade política. [7]

Outra crítica importante diz respeito à legitimidade democrática das intervenções judiciais experimentais, especialmente em casos que envolvem questões de política pública. Cuida-se da “dificuldade contramajoritária” do Poder Judiciário, como pontuado por Alexander Bickel. [8]

Por fim, há desafios práticos e institucionais significativos na implementação de abordagens experimentais no Judiciário. Malcolm Feeley, em “Court Reform on Trial” (1983), documenta como muitas reformas judiciais bem-intencionadas falham devido a resistências institucionais e limitações práticas.[9]

Em alguns casos, a exemplo do julgamento de ADPFs que veiculam a “teoria do estado de coisas inconstitucional”, questiona-se ainda a efetividade das medidas adotadas, muitas vezes de caráter excessivamente genérico e simbólico.

Perspectivas futuras do experimentalismo judicial

O experimentalismo judicial certamente desempenhará um papel cada vez mais importante. Uma das áreas mais promissoras é a integração de tecnologias emergentes no processo de tomada de decisão judicial e a flexibilização procedimental em cortes online. [10]

Outra tendência emergente é a expansão de abordagens colaborativas e multidisciplinares na resolução de problemas jurídicos complexos, a exigir dos profissionais jurídicos a capacidade de atuação como “construtores de consenso”, navegando por complexas negociações multipolares. [11]

A globalização apresenta tanto desafios quanto oportunidades para o experimentalismo judicial. É o caso do surgimento de redes judiciais globais, em que juízes de diferentes jurisdições compartilham experiências e melhores práticas. Essa tendência pode levar a uma forma de experimentalismo judicial transnacional, em que inovações bem-sucedidas em uma jurisdição são adaptadas e implementadas em outras. [12]

À medida que o experimentalismo judicial se expande, surgem novos desafios éticos e de accountability. Afinal, como garantir que a experimentação judicial permaneça dentro dos limites constitucionais e democráticos? Como equilibrar a necessidade de flexibilidade com a importância da previsibilidade e da segurança jurídica?

Olhando para o futuro, o fenômeno parece destinado a desempenhar um papel cada vez mais importante na evolução dos sistemas jurídicos. A integração de tecnologias emergentes, a expansão de abordagens colaborativas, os desafios da globalização e a crescente complexidade dos conflitos oferecem novas oportunidades para a inovação judicial.

Não se trata apenas uma tendência passageira, mas um convite para repensar como concebemos e praticamos a justiça no século 21.

 


[1] ANGEL-CABO, Natalia. The Constitution and the City: Reflections on Judicial Experimentalism Through an Urban Lens, Journal. European Yearbook of Constitutional Law European Yearbook of Constitutional Law, T.M.C. Asser Press, 2021, p. 157-184.

[2] SABEL, C. F.; SIMON, W. H. Destabilization Rights: How Public Law Litigation Succeeds. Harvard Law Review, v. 117, n. 4, p. 1015-1101, 2004.

[3] NONET, P.; SELZNICK, P. Law and Society in Transition: Toward Responsive Law. New York: Harper & Row, 1978.

[4] SCHAUER, F. Do Cases Make Bad Law? The University of Chicago Law Review, v. 73, n. 3, p. 883-918, 2006.

[5] BERMAN, G.; FEINBLATT, J. Good Courts: The Case for Problem-Solving Justice. New York: The New Press, 2005.

[6] FULLER, L. The Morality of Law. New Haven: Yale University Press, 1964.

[7] WALDRON, J. The Rule of Law and the Importance of Procedure. Nomos, v. 50, p. 3-31, 2011.

[8] BICKEL, A. The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the Bar of Politics. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1962.

[9] FEELEY, M. Court Reform on Trial: Why Simple Solutions Fail. New York: Basic Books, 1983.

[10] SUSSKIND, R. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019.

[11] MENKEL-MEADOW, C. The Lawyer as Consensus Builder: Ethics for a New Practice. Tennessee Law Review, v. 70, p. 63-119, 2002.

[12] SLAUGHTER, A. A New World Order. Princeton: Princeton University Press, 2004.

Autores

  • é procurador da República auxiliar junto à Procuradoria-Geral Eleitoral, professor e Coordenador Pedagógico da Escola Superior do Ministério Público da União, professor do Programa de Mestrado do IDP, mestre em Direito pela UFBA, doutor em Direito pela UFBA, pós-doutor pela UERJ e Universidade de Coimbra e pesquisador visitante na Universidade de Oxford.

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