Com quantos contratos se faz uma família? Novos rumos para uma reforma do Código Civil
11 de setembro de 2024, 7h18
Todos os dias, novos formatos de família são combinados entre os seus atores para tratar de suas questões privadas, com suas especificidades e realidades. O que se observa, nesses acordos, é que os vínculos afetivos estão em constante mutação, assim como os formatos. No entanto, a construção das normas voltadas ao Direito de Família não acompanha tais transformações.

Diante disso, surgem os questionamentos: seria necessário regular cada momento do vínculo afetivo do namoro, casamento, união estável ou outros contratos presentes nas relações afetivas? Para cada família, com variados momentos e relações, seria necessário um acordo? Existem diversos entendimentos nesse sentido.
A divergência reside justamente no limite dessa transição entre o patrimonial e a personalidade, quando a própria vontade humana escolhe aplicar com exagero o primeiro em detrimento da segunda [1]. De todo modo, apesar da diversidade de posicionamentos, existe um consenso: no Direito de Família prevalece a autonomia privada das pessoas com uma mínima intervenção estatal.
E quantos contratos são realmente necessários para formar ou manter uma família? Este artigo explora essa questão, destacando os instrumentos jurídicos que moldam as famílias contemporâneas e aponta os rumos do Anteprojeto de Reforma do Código Civil, que promete ainda mais ênfase na contratualização dessas relações.
Contratos na formação da família
Quando pensamos na formação de uma família, o casamento é, sem dúvida, o primeiro contrato que vem à mente. Ele não só estabelece o vínculo conjugal, mas define aspectos importantes para regular interesses, como o regime de bens, direitos e deveres dos cônjuges, acordos de parentalidade, entre outros. No entanto, muitas relações são formadas sem esse contrato específico, como acontece na união estável.
Outra situação em que os contratos desempenham um papel crucial é no planejamento patrimonial e sucessório. Por meio de doações, seguros, previdência, constituição de empresas ou acordo de sócios, pode ser possível garantir que o patrimônio seja distribuído de forma ordenada, evitando conflitos e fazendo valer a autonomia do planejador.
Contratos na manutenção ou dissolução do vínculo afetivo
Manter uma família unida nem sempre é fácil, e, em algumas situações, os contratos se tornam instrumentos interessantes para lidar com as adversidades. Quando o casamento ou a união estável enfrenta crises, os pactos pós-nupciais, os contratos preliminares para o divórcio ou acordos do divórcio entram em cena [2].

Tais instrumentos na manutenção ou na dissolução do vínculo ajudam a definir novas bases para a relação, garantindo que as questões patrimoniais, assuntos ligados à convivência, aos alimentos e aos direitos dos filhos sejam respeitados, evitando longos e dolorosos processos judiciais.
Na dissolução do vínculo afetivo, por mais que os sujeitos estejam distantes, os frutos que derivam do casal permanecem, os filhos. Isso se demonstra relevante na medida em que uma convivência familiar tranquila e equilibrada proporciona um ambiente favorável para o desenvolvimento da criança, sobretudo no aspecto afetivo, psicológico e material, visando a formação psicológica livre de transtornos e traumas.
Como importante possibilidade nos acordos, ainda que dependam de homologação judicial, está o consenso na regulação da guarda e do calendário de convivência, o que assegura que os pais continuem envolvidos na criação dos filhos, independentemente de sua relação conjugal. Esses acordos não apenas estabelecem a convivência, mas reforçam o compromisso com o bem-estar da criança.
Projeto de reforma do Código Civil e contratualização das relações familiares
O Direito de Família está em constante evolução e o Anteprojeto de Reforma do Código Civil [3] reflete essa dinâmica ao dar ainda mais ênfase à contratualização das vínculos familiares. Com a reforma, os membros da família poderão contar com maior liberdade para regular suas próprias relações, adaptando os contratos às suas necessidades específicas.
Imagine, por exemplo, um casal que decida viver junto, mas que deseja garantir a proteção jurídica de seus bens, durante um período previamente indicado no pacto antenupcial. Com a reforma, no artigo 1.653-B [4], o casal poderá formalizar a chamada sunset clause, cláusula do pôr-do-sol, que permite uma espécie de teste do regime de bens, durante certo período.
Fecha-se um momento jurídico, “para iniciar-se outro, como se dá, diariamente, após o pôr-do-sol, daí derivando a origem da expressão sunset clause [5].
Por meio dessa cláusula, como esclarece Flávio Tartuce [6], seria possível aos cônjuges e conviventes convencionar que, nos cinco anos iniciais do relacionamento, seria adotado o regime patrimonial da separação convencional de bens, convertendo-se em comunhão parcial, após o término do período.
No mesmo sentido, o artigo 1.639 do Anteprojeto permite a livre estipulação de interesses ou bens, antes ou após o casamento ou a união estável. Nesse ponto, está mais um grande progresso voltado à autodeterminação do indivíduo.
Essa já é a linha disposta no Enunciado 635, da VIII Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal pelo qual “o pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar” [7].
Parece que o rumo da reforma da codificação privada aposta na concepção subjetivista da família, pois a cada pessoa será possível dimensionar e redimensionar os seus vínculos de afeto da maneira que entender pertinente, ampliando-se as possibilidades de construção de família.
A reforma do Código se adequa aos anseios da ampliação da autonomia das pessoas, em seus vínculos afetivos, permitindo a criação de regras mais flexíveis e personalizadas, sem depender de um único modelo pré-estabelecido.
Considerações finais
A resposta à pergunta “com quantos contratos se faz uma família?” é mais complexa do que parece. Não se trata de uma simples contagem, mas da compreensão de que esses contratos são ferramentas essenciais para garantir a segurança e o bem-estar dos membros da família.
O futuro do Direito de Família, especialmente com as reformas em andamento, aponta para uma maior autonomia e personalização das relações, em que os contratos serão fundamentais para refletir a realidade e as necessidades das famílias contemporâneas.
Referências
CJF. VIII Jornada de Direito Civil. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/1174>. Acesso em: set. 2024.
CONGRESSO NACIONAL. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630>. Acesso em: set. 2024.
DUQUE, Bruna Lyra. Causa do contrato: entre direitos e deveres. Belo Horizonte: Conhecimento, 2018.
GAGLIANO. Pablo, Stolze. A cláusula do pôr-do-sol (sunset clause) no Direito de Família. Portal Migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/7/BBD0519732F669_Artigo-SunsetClause-Prof.Pablo.pdf>. Acesso em: set. 2024.
TARTUCE, Flávio. A Reforma do Código Civil e as Mudanças quanto ao Regime de Bens – Parte 1. Portal Migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/406125/a-reforma-do-codigocivil-e-as-mudancas-quanto-ao-regime-de-bens>. Acesso em: set. 2024.
SOARES DE CARVALHO, Dimitre Braga. Contratos familiares: cada família pode criar seu próprio Direito de Família. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/artigos/1498/Contratos+familiares:+cada+fam%C3%ADlia+pode+criar+seu+pr%C3%B3prio+Direito+de+Fam%C3%ADlia>. Acesso em: set. 2024.
[1] DUQUE, Bruna Lyra. Causa do contrato: entre direitos e deveres. Belo Horizonte: Conhecimento, 2018. p. 129.
[2] Dimitri Soares adota uma classificação distinta para os contratos nas famílias e as suas fases. O autor propõe: contratos intramatrimoniais, contratos pré-divórcio e contratos pós-divórcio. In: SOARES DE CARVALHO, Dimitre Braga. Contratos familiares: cada família pode criar seu próprio Direito de Família. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/artigos/1498/Contratos+familiares:+cada+fam%C3%ADlia+pode+criar+seu+pr%C3%B3prio+Direito+de+Fam%C3%ADlia>. Acesso em: set. 2024.
[3] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630.
[4] Art. 1.653-B. Admite-se convencionar no pacto antenupcial ou convivencial a alteração automática de regime de bens após o transcurso de um período de tempo prefixado, sem efeitos retroativos, ressalvados os direitos de terceiros
[5] GAGLIANO. Pablo, Stolze. A cláusula do pôr-do-sol (sunset clause) no Direito de Família. Portal Migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/7/BBD0519732F669_Artigo-SunsetClause-Prof.Pablo.pdf>. Acesso em: set. 2024.
[6] TARTUCE, Flávio. A Reforma do Código Civil e as Mudanças quanto ao Regime de Bens – Parte 1. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/406125/a-reforma-do-codigocivil-e-as-mudancas-quanto-ao-regime-de-bens>. Acesso em: set. 2024.
[7] CJF. VIII Jornada de Direito Civil. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/1174>. Acesso em: set. 2024.
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