Audiências de custódia podem perder sua função primordial
11 de setembro de 2024, 11h17
A audiência de custódia começou a ser implantada no Brasil em fevereiro de 2015, um esforço do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em parceria com o Ministério da Justiça e os Tribunais de Justiça estaduais.
Em sua defesa, organizações de direitos humanos, advogados/as e juristas acreditavam na possibilidade de a iniciativa ser, a um só tempo, mais um instrumento de proteção aos direitos fundamentais do indivíduo, previstos na Constituição e no Código de Processo Penal e, além disso, uma resposta contra o encarceramento em massa no Brasil. Esperava-se que a medida pudesse desafogar a enorme população carcerária, naquele ano com cerca de 700 mil pessoas.
Os países da América Latina, como Chile, México, Equador, Argentina, Peru e Colômbia, já se valiam desse instrumento para garantir que uma pessoa detida fosse apresentada a um juiz em até 24 horas após sua prisão, em consonância com o Pacto de San José da Costa Rica e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, dos quais o Brasil é signatário.
É na audiência de custódia que o juiz decide sobre a legalidade da prisão e pela necessidade ou não da manutenção da prisão provisória, ou pela aplicação de outra medida cautelar. É também um mecanismo para prevenir e combater maus tratos e tortura. As audiências passaram a acontecer no Brasil em até 24 horas após o flagrante, com a presença de um defensor público ou advogado constituído.
Desafios
A poucos meses de completar dez anos de existência, esse instituto enfrenta inúmeros desafios, com projetos de lei em tramitação que maltratam sua essência, atacando sua função em pontos cruciais. Mais um grande retrocesso que atinge a política de segurança pública e criminal do país.
O Projeto de Lei 226/24 foi aprovado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, com 25 votos a favor e nenhum contra. Mais de 40 instituições, entre elas o IDDD, a Rede Justiça Criminal, a APT (Associação para a Prevenção da Tortura) e a Defensoria Pública do Distrito Federal, manifestaram-se fortemente contra o PL e pedem sua rejeição.
De autoria do ex-senador e atual ministro do STF Flávio Dino, o PL esteve na CCJ do Senado sob a relatoria de Sergio Moro (União Brasil-PR), que apresentou emendas no texto original para alterar a legislação processual, com a “recomendação” da manutenção da prisão quando constatadas circunstâncias específicas no caso em apreciação judicial.
A saber: quando houver provas que indiquem a prática reiterada de infrações pelo agente; quando o agente já tiver sido liberado em prévia audiência de custódia por outra infração penal, salvo se por ela tiver sido absolvido posteriormente; e quando o agente tiver praticado a infração penal na pendência de inquérito ou ação penal.
Presunção de inocência
A manobra no texto viola a presunção de inocência, cria a possibilidade de prisões automáticas, pode impactar o poder decisório de autoridades judiciais e fere os princípios norteadores das audiências de custódia, que é evitar prisões ilegais e desnecessárias e combater a tortura.
Por tramitar em caráter terminativo, o projeto não precisou ser votado no plenário da casa e segue diretamente para análise na Câmara dos Deputados.
Em outra frente, o Projeto de Lei 321/2023, da deputada Julia Zanatta (PL/SC), com relatoria de Gilson Marques (Novo-SC), altera o Código de Processo Penal (CPP) para permitir a realização de audiências de custódia por videoconferência. O texto, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, abre a possibilidade de o juiz das garantias optar pela videoconferência em substituição à forma presencial.
Na justificativa, o projeto garante a integridade física do próprio acusado. Mas é de conhecimento de todos que a audiência online impossibilita a verificação de tortura ou maus-tratos e impede que o preso relate as violências sofridas, já que agentes penitenciários ou policiais, muitas vezes, acompanham as audiências virtuais.
Temos um sistema em que as pessoas que mais sofrem prisões abusivas são jovens, negras e periféricas — o perfilamento racial determina as prisões em flagrante, sem a existência de critérios objetivos para fundada suspeita. As propostas legislativas vêm perpetuar ainda mais a espiral de prisões e os altos índices de violência policial.
As audiências de custódia resguardam a integridade física e moral das pessoas presas, mas também consolidam desde o início da persecução penal o direito ao acesso à Justiça, à ampla defesa e ao devido processo legal.
Os dois projetos de lei possibilitam o aumento de prisões provisórias em um sistema já reconhecidamente falido. E, mais uma vez, é importante lembrar que o ingresso de pessoas não comprometidas com o crime organizado no sistema prisional favorece o fortalecimento de facções criminosas. Sem pensar nos efeitos colaterais, o populismo penal do Poder Legislativo tem acentuado o racismo e a exclusão social.
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