Proceduralização judicial e direito de acesso a medicamentos de alto custo
10 de setembro de 2024, 11h18
Um dos principais aspectos do direito fundamental à saúde se manifesta pelo direito ao acesso a tratamento, um direito que historicamente se manifestou com diversas compreensões distintas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, hoje, representa um dos grandes desafios do Poder Judiciário e do sistema de saúde brasileiro: a judicialização da saúde.
A despeito de aproximadamente 30% dos brasileiros relatarem dificuldades na obtenção de medicamentos prescritos, conforme dados do IBGE [1], a judicialização da saúde consumiu, no ano de 2020, até 10% do orçamento destinado à saúde de 13 estados e de metade dos municípios brasileiros [2].
Para além do dilema de “quanto custa uma vida”, ou de standards argumentativos acerca da reserva do possível e eficácia do direito fundamental à saúde que é manifesto pelo acesso ao medicamento, tem-se uma situação complexa cuja resposta judicial pode implicar num problema ainda maior do que aquele que se está tentando resolver. Trata-se da típica situação em que a proceduralização judicial deve se manifestar [3].
Assim, se o direito de acesso ao tratamento medicamentoso passou da fase de se tratar de norma de eficácia limitada [4] a uma ampla abertura de fornecimento e, posteriormente, à racionalização do fornecimento judicial por meio da Suspensão de Tutela Antecipada nº 175, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, pudemos assistir nas últimas semanas um novo paradigma se manifestar, também pela relatoria do ministro.
Petição 12.928
No caso em questão, a União informou que havia 55 ações judiciais em curso, das quais 13 contam com decisões liminares para fornecimento do Elevidys (sendo que 11 delas ainda não haviam sido cumpridas). A União também explicou que, apenas para o cumprimento das ordens deferidas, haveria um impacto de R$ 252 milhões aos cofres públicos.
O Elevidys é o único tratamento conhecido e registrado para a distrofia muscular de Duchenne, uma doença rara que atinge um em cada 3.600 a 6.000 meninos nascidos vivos [5]. Por conta da dificuldade de pesquisa e desenvolvimento da tecnologia, trata-se também de um medicamento de alto custo — cerca de R$17 milhões por tratamento.
A estratégia foi viabilizar um espaço institucional de diálogo para que tanto o Ministério da Saúde quanto a indústria farmacêutica pudessem estabelecer condições para viabilizar a compra em valor que propiciasse um menor impacto orçamentário.
Anteriormente, o SUS havia realizado um acordo inédito de incorporação de tratamento para doença rara com preços reduzidos e compartilhamento de risco entre Estado e indústria farmacêutica no caso do Zolgensma, medicamento para Atrofia Muscular Espinhal do tipo 1 [6].
No caso da Petição 12.928, um detalhe importante foi a sensibilidade jurisdicional para o fato de que acordos levam tempo para serem celebrados e efetivados, enquanto o tratamento em questão possui uma janela de oportunidade que após perdida, não há mais efetividade no tratamento. Com isso, o ministro Gilmar Mendes determinou que crianças que estejam a seis meses do final da janela de eficácia devem receber o tratamento imediatamente.
Nova fase
Inicia-se, assim, uma nova fase na judicialização da saúde, tão importante para a realização dos direitos fundamentais, das promessas incumpridas da modernidade. Embora Brecht já tenha ensinado que “as novas eras não começam de uma vez” [7], há que se reconhecer que há uma nova fase, que acrescenta um novo mecanismo na jurisdição constitucional para a tutela da democracia sanitária brasileira.
Não falamos de uma brusca quebra de paradigmas, vez que o STF já ruma de forma clara para o caminho da conciliação, ao menos desde a criação do Centro de Mediação e Conciliação (CMC), na presidência do ministro Dias Toffoli.
O caminho encontrado foi certamente exitoso, na medida que realizou o direito à saúde sem aquele custo inicial posto como exorbitante pela União. O STF seguiu no caminho da judicialização, inevitável e contingencial, afastando-se do ativismo, danoso para as escolhas administrativas e para a democracia.
Ao invés de sobrepujar a discricionariedade presente na atividade administrativa, a medida adotada pelo ministro Gilmar Mendes privilegiou a realização dos objetivos que necessariamente devem ser buscados pelo Estado e sua atividade: a realização dos objetivos fundamentais da República e dos direitos fundamentais. [8]
Aqui calha lembrarmos de Agamben, especificamente quando ele fala da relação contemporânea entre legalidade e legitimidade, ao apontar que os poderes das instituições não acabem deslegitimados por caírem na ilegalidade, mas exatamente em razão do contrário: de se esconderem na legalidade ilegítima. [9]
A difusão da ilegalidade ocorre porque os poderes acabaram por perder toda a consciência de sua legitimidade. Esta relação leva a uma banalização de ambos os conceitos, culminando na desvalorização de ambos, dado que a legitimidade deveria funcionar como fundamento, sustentáculo da legalidade. [10] O que fez o STF foi trazer a tona um mecanismo legal que preserva a legitimidade do Ordenamento, realizando a Constituição.
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[1] Pesquisa Nacional de Saúde 2019 Brasil e Grandes Regiões Percepção do estado de saúde, estilos de vida, doenças crônicas e saúde bucal. Disponível em:http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101764.pdf.
[2] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/05/judicializacao-consumiu-de-30-a-100-da-verba-da-saude-em-mais-de-250-cidades-brasileiras.shtml#:~:text=Judicializa%C3%A7%C3%A3o%20consumiu%20de%2030%25%20a,2024%20%2D%20Equil%C3%ADbrio%20e%20Sa%C3%BAde%20%2D%20Folha.
[3] Cf. Abboud, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, Parte III.
[4] Veja-se, por exemplo: “Normas constitucionais meramente programáticas – ad exemplum, o direito a saúde – protegem um interesse geral, todavia, não conferem, aos beneficiários desse interesse, o poder de exigir sua satisfação – pela via do mandamus – eis que não delimitado o seu objeto, nem fixada a sua extensão, antes que o legislador exerça o múnus de completá-las através da legislação integrativa. Essas normas (arts. 195, 196, 204 e 227 da CF) são de eficácia limitada, ou, em outras palavras, não tem força suficiente para desenvolver-se integralmente, ‘ou não dispõem de eficácia plena’, posto que dependem, para ter incidência sobre os interesses tutelados, de legislação complementar” (STJ, ROMS 6.564/RS, DJ 17/6/1996)
[5] Bushby K, Finkel R, Birnkrant DJ, Case LE, Clemens PR, Cripe L, et al. Diagnosis and management of Duchenne muscular dystrophy, part 1: diagnosis, and pharmacological and psychosocial management. Lancet Neurol. 2010;9:77-93.
[6] https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/dezembro/ministerio-da-saude-assina-protocolo-para-acordo-inedito-de-incorporacao-do-medicamento-para-ame
[7] “Die neuen Zeitalter beginnen nicht auf einmal.” BRECHT, Bertolt. Werke: Gedichte und Gedichtfragmente 1940-1956. Aufbau-Verlag, 1993. Die neuen Zeitalter, p. 102.
[8] MADALENA, Luis Henrique. Uma teoria da discricionariedade administrativa. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.
[9] AGAMBEN, Giorgio. O mistério do mal. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 10-11.
[10] BRAGA MADALENA, Luis Henrique; VEDANA, Óliver. O mistério do mal da discricionariedade (administrativa). Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.15, n.2, 2º quadrimestre de 2020. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica – ISSN 1980-7791
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