Por um uso mais racional da análise de impacto regulatório no Brasil
10 de setembro de 2024, 8h00
Panorama da AIR
A análise de impacto regulatório (AIR) é um requisito administrativo que exige dos reguladores a condução de uma série de etapas ou estudos prévios à aprovação de novas regulações. Amplamente disseminada em vários países do mundo, a AIR tornou-se obrigatória para as agências reguladoras brasileiras, a partir de abril de 2021, após aprovação da Lei no 13.848/19 e do Decreto no 10.411/20, que definiram seus conceitos, requisitos e estabeleceram prazos para sua adoção no país.
Transcorridos mais de três anos da adoção obrigatória da AIR por agências reguladoras brasileiras, um panorama sobre o uso da ferramenta já começa a ser traçado. Estudo realizado pelo projeto Regulação em Números, da FGV Direito Rio, examinou 1.415 atos normativos produzidos por agências reguladoras, no período de 15 de abril de 2021 a 15 de abril de 2024, e revelou que a AIR foi utilizada em 17,8% dos atos normativos examinados. Em 82,2% dos casos, as agências utilizaram da prerrogativa de dispensar ou não aplicar a AIR em seus processos decisórios.
O estudo revelou que as agências reguladoras tiveram diferentes apetites normativos, bem como apresentaram variadas propensões a utilizar a AIR como subsídio à tomada de decisão. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foram as agências com maior produção de atos normativos em três anos, 543 e 169, respectivamente. No entanto, as duas agências utilizaram AIR para subsidiar suas decisões em apenas 8% dos casos. A necessidade de atuação das duas agências setoriais da saúde, em período pandêmico, pode explicar a alta produção normativa com baixa adesão à análise de impacto. Em contrapartida, duas agências de infraestrutura aprovaram menos atos normativos, mas lançaram mão da AIR com maior frequência. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aprovou 22 atos normativos, tendo utilizado a AIR em 91% dos casos, e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) aprovou 23 atos normativos, com a AIR sendo utilizada 61% das vezes.
Em uma primeira leitura, esses números parecem indicar que avanços na agenda de AIR passam pela maior adesão das agências reguladoras ao seu uso. No entanto, isso não é necessariamente verdade. A realização de análises de impacto em 100% dos casos não precisa ser uma meta a ser almejada. Tampouco pode-se afirmar que realizar AIR em 17,8% das decisões é um volume inadequado. Por trás desses números, há um debate muito mais promissor para que a AIR avance no Brasil. O país precisa aperfeiçoar o seu modelo de AIR, de modo a priorizar o uso da ferramenta em propostas regulatórias de maior relevância para sociedade.
É necessário priorizar o uso da AIR
Nem todas as propostas regulatórias impõem impactos significativos à sociedade. Algumas apresentam maior impacto sobre o bem-estar social e outras geram maiores custos. Se todas as propostas estiverem sujeitas à AIR ou se as regras estabelecidas para dispensar a AIR não forem claras e objetivas, o governo desperdiçará tempo e recursos com propostas relativamente menores e poderá não avaliar adequadamente as consequências das propostas de maior impacto.

Ainda que haja poucos estudos sobre o tema, levantamento realizado pela OCDE indica que a maioria dos países adota algum tipo de teste de limiar, que busca estabelecer maior racionalidade entre os esforços dispendidos com a elaboração da AIR e a relevância da proposta para a sociedade. Para direcionar o uso da AIR para propostas de maior impacto, o Reino Unido realiza uma avaliação preliminar de impactos, que fornece uma compreensão geral do tamanho dos impactos de cada proposta, com preocupação especial com os custos sobre as empresas e os negócios. Propostas regulatórias que imponham custo anual superior a £ 10 milhões aos negócios ou superior à £ 25 milhões para toda a sociedade, não podem ser classificadas como de baixo impacto e precisam de AIR robusta para sua aprovação. No país, percebeu-se que mais de 90% de redução de custos regulatórios pode ser alcançada com apenas 10 mudanças regulatórias. O limiar contribui para a identificação das propostas mais onerosas e prioriza o uso da AIR nestas situações.
Testes como esse buscam evitar que recursos públicos sejam indevidamente desperdiçados com AIRs dedicadas a propostas de menor impacto e direcioná-los a propostas de maior relevância social.
Teste de limiar
De acordo com a OCDE, os testes de limiar podem ser divididos em quatro tipos. Pode-se adotar: (1) testes quantitativos de impacto, por meio de AIRs preliminares que norteiam a profundidade necessária para a análise; (2) testes multicritério, que consideram critérios qualitativos ou quantitativos para determinar o nível desejável da análise; (3) testes de questão única, que baseiam a profundidade das AIRs a partir dos impactos prospectados sobre determinado setor ou parte interessada e; (4) testes de supervisão, em que o órgão de supervisão regulatória avalia a AIR preliminar e determina o nível de profundidade analítico desejável. Cabe salientar que os testes de limiar também podem ser utilizados para dispensar certas propostas de realizar AIR.
No Brasil, os artigos 3º e 4º do Decreto no 10.411/20 determinaram as situações em que a AIR pode ser evitada pelas agências reguladoras. Foi delegado poder para que elas definam quando usar ou não a AIR, a partir de critérios pré-estabelecidos. A intenção do legislador foi aplicar uma espécie de teste de limiar e racionalizar o uso de recursos públicos na condução de AIRs no país.
No entanto, esse mecanismo pode não estar sendo muito efetivo. Realizar AIR não é uma tarefa simples, exige recursos humanos, financeiros, tempo e conhecimento das agências reguladoras. É natural que, em contextos de insuficiência no quadro de servidores públicos e contínuas discussões regulatórias para lidar com crescentes demandas da sociedade, as agências reguladoras busquem meios para dispensar a AIR. O estudo realizado pela FGV Direito Rio sugere que a dispensa de AIR pode se tornar um procedimento meramente burocrático, por meio do qual as agências se desoneram de trabalho adicional, quando estão atuando no limite de sua capacidade.
Para as agências, pode ser mais vantajoso dispensar a AIR do que realizá-la, caso contrário se comprometem com um volume de análises de impacto que pode superar sua capacidade operacional. E quando decidem realizar a AIR, os mesmos limites operacionais podem levar a condução de AIRs incompletas e de baixa qualidade.
O Brasil já obteve avanços importantes na implementação e difusão da AIR. O desafio que se apresenta no momento é o de adequar o volume e a qualidade das AIRs à realidade das agências reguladoras. É necessário discutir novas possibilidades de testes de limiar para o país. O teste precisa ser objetivo, claro, transparente e deve passar por escrutínio público, de modo a assegurar o uso racional dos recursos limitados para condução da AIR em propostas regulatórias que tenham maior impacto sobre a sociedade.
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