Opinião

Mas realmente precisamos de uma Lei do Processo Estrutural?

Autor

  • Rayane Ayres Lima

    é licenciada em Letras Espanhol pela UnB (Universidade de Brasília); bacharela em Direito pela UnB; mestranda em Direito pela UnB objeto de pesquisa: litígios/processo estrutural. Pesquisadora do tema desde 2018; membro do grupo Processo Civil e Acesso à Justiça da UnB; advogada.

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10 de setembro de 2024, 7h03

A moda é um conceito matemático muito utilizado na estatística que pode ser compreendido como “o valor que ocorre com maior frequência num conjunto de dados, isto é, o valor mais comum” (1).

Talvez muitos dos que dedicam alguns minutos do seu tempo para essa leitura sequer estão familiarizados com o que vem a ser um litígio estrutural (2). Outros, tem alguma noção sobre o tema considerando sua recente entrada na agenda pública.

Sim, finalmente, o processo estrutural “está na moda”. O que se mostra excelente considerando o potencial que esses litígios têm para a efetivação de direitos fundamentais tão caros à sociedade, mas estar na moda também significa ser pauta de debates que sequer partem de lugares minimante comuns.

E quando se fala em processo estrutural, esse lugar comum ainda não está bem estabelecido. Então a tentativa aqui é contribuir para essa construção.

Agenda pública

A entrada recente do tema na agenda pública se intensificou após a publicação do Ato nº 3/2024, por meio do qual o Senado instituiu a Comissão de Juristas responsável pela elaboração do anteprojeto de Lei do Processo Estrutural no Brasil.

Segundo o Plano de Trabalho apresentado, a comissão tem por objetivo a elaboração de um texto de lei (i) curto; (ii) que será operacionalizado em conjunto com o Código de Processo Civil, a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor; e (iii) que aproveite dispositivos específicos dos PLs 5.139/09, 8.059/2014 e 1.641/21, que sejam relacionados ao contexto do processo estrutural.

Nos dias 22 e 23 de agosto de 2024 foram realizadas audiências públicas com a presença de juristas renomados na área do processo civil, especificamente, do processo estrutural e instituições relevantes que atuam diretamente com questões afetas ao tema.

A sugestão da comissão é que as falas fossem orientadas pela pergunta: “na sua atuação acadêmica e prática, qual aspecto do processo estrutural você entende que mereceria regulamentação específica?”

Foram dois dias de ricas manifestações e como esperado em situações como essas, havia falas nos mais diversos sentidos e divergentes entre si. Há um consenso mínimo entre os especialistas no tema sobre a existência, há muitos anos, do tratamento judicial de litígios estruturais e da grande oportunidade que o Senado tem de regulamentar essa atuação.

Desnecessidade

Em contrapartida, foram registradas falas questionando a existência do processo estrutural e a desnecessidade de sua regulamentação, considerando que boa parte dos juristas sequer sabem o que é um processo estrutural. Além disso, foi ressaltado que muitas vezes a tramitação desse tipo de litígio não é aceita pelos tribunais que acabam por proferir decisões extinguindo o processo sem a resolução do mérito ou atestando a improcedência do pedido.

Essa de fato é uma visão possível do atual cenário, principalmente diante da falta de regulamentação do adequado procedimento para tratar dos litígios estruturais e dos resultados práticos que essa lacuna gera. No entanto, trata-se de uma visão, no mínimo, míope.

Agência Brasil

A experiência brasileira do tratamento judicial dos litígios estruturais não é nem de perto uma realidade recente. É possível citar a Ação Civil Pública nº 93.8000533-4, ou ACP do Carvão como ficou conhecida, proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) em 1993, na qual foram adotadas medidas de caráter estruturante para frear a poluição provocada pela extração do carvão e, principalmente, garantir a recuperação das áreas que haviam sido deterioradas.

Outro exemplo amplamente conhecido pela doutrina é o conjunto das três ações civis públicas propostas entre 2008 e 2010 contra a Prefeitura de São Paulo que objetivaram sanar a violação sistemática do direito à educação caracterizado na insuficiência de vagas para acolher crianças em idade de se matricular em creches e pré-escola no município de São Paulo.

Nesses casos, também foram adotadas medidas de caráter estruturantes e técnicas procedimentais específicas para garantir a efetividade da tutela.

Esses são apenas dois dos exemplos mais conhecidos do tratamento judicial de litígios estruturais. Além disso, por parte da doutrina já há centenas de livros publicados sobre o tema e números ainda maiores de artigos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado produzidos pela academia, sendo que muitos deles tratam da análise de casos práticos.

Tratamento inadequado

Ocorre que, muitas vezes, o tratamento que lhes é dado é inadequado, seja por falta de conhecimento das técnicas procedimentais por parte dos juízes e advogados ou por aplicação insuficiente dessas técnicas. O que por um lado reafirma a importância do trabalho proposto pelo Senado que vem sendo desenvolvido pela comissão e, por outro lado, não anula a existência do tratamento judicial desses litígios.

Dentre as falas feitas nas audiências públicas foi possível identificar algumas críticas que, igualmente, não são recentes, relacionadas basicamente a (i.) falta de legitimidade democrática do poder judiciário; (ii.) violação ao princípio da separação de poderes; (iii.) falta de expertise e capacidade institucional; (iv.) falta de adequação do processo e (v.) efeitos antidemocráticos do ativismo judicial (3).

Críticas

Foi bom perceber que ninguém “inventou a roda”. Muitas das críticas feitas merecem ser consideradas para garantir que o texto do projeto de lei blinde, da melhor forma possível, o processo estrutural. No entanto, todas essas críticas vêm sendo amplamente rebatidas por aqueles que se dedicam aos estudos de litígios estruturais, sendo importante para que avancemos no debate a superação paradigmática de alguns conceitos objetivando a efetivação de direitos fundamentais.

O processo estrutural deve ser encarado justamente como resposta a esses problemas. O objetivo é que a legitimidade das decisões estruturais venha do procedimento dialógico com ampla participação dos envolvidos e afetados pelo litígio, o que permite não só a ampliação da latitude de cognição judicial (4), como a da construção dos planos de reestruturação pelas partes.

Como se sabe, no constitucionalismo contemporâneo o princípio da separação de poderes ganha parâmetros para além da delimitação de poderes devendo também observar a aptidão estatal para a proteção de direitos fundamentais (5). Sendo assim, é tardia a necessidade de superação do fetichismo da interpretação ultrapassada de não atuação do Poder Judiciário em situações de omissão ou atuação inadequada dos Poderes Legislativo e Poder Executivo.

É preciso compreender também que diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição essas questões são amplamente levadas ao judiciário, que por sua vez, tem o dever não só de fazer cumprir a Constituição, como de exercer o controle mútuo entre os poderes. A realidade posta não é mais “se” o Poder Judiciário deve atuar, mas sim o “como” deve se dar a atuação.

Se por um lado o processamento desse tipo de demanda é uma realidade, por outo lado, é de suma importância que o debate do “como” seja levado a sério. Não se está negando que há grande risco de agravamento do litígio ou do contexto de violação sistêmica de direitos caso essas demandas sejam processadas de forma inadequada.

Na verdade, é justamente a partir da observação da realidade, na qual os resultados almejados não foram alcançados em diversas demandas justamente em razão do processamento inadequado do litígio estrutural, que podemos concluir que as medidas de caráter estruturantes e técnicas procedimentais específicas para o tratamento desse tipo de litígio se colocam enquanto procedimento adequado.

Além disso, é importante rebater o pensamento de que o processo estrutural objetivo uma realidade fictícia de garantia irrestrita de direitos em que simplesmente se atropela as políticas estabelecidas e decisões de ordens financeiras adotadas pelo administrador, para substituí-las por decisões judiciais elaboradas única e exclusivamente pelo juiz do caso.

A prática tem demonstrado que, muitas vezes, a violação sistemática de direitos não ocorre por falta de verbas, mas sim por falta de diálogos institucionais e adoção de estratégias claras para lidar com a violação sistemática de direitos. O resultado de vários casos de sucesso é justamente a reestruturação de instituições, promovida pelas partes, em que o judiciário e o processo se colocam enquanto espaço possibilitador do debate.

Por sua vez, quanto a falta de expertise e capacidade institucional, o procedimento adequado também possibilita a participação de técnicos indicados pelas partes ou disponibilizados pelas próprias instituições de justiça que vêm se organizando e se capacitando para melhor auxiliar nessas demandas.

Para além, também é uma realidade que diante de situações de bloqueio institucional ou político, embora não seja a instância ideal ou possua de imediato as ferramentas necessárias, o Poder Judiciário é o único órgão do Estado com a independência e poder suficiente para solucionar tais bloqueios (6).

Preocupação legítima

Outra preocupação legítima, mas que está longe de ser o resultado do processo estrutural são efeitos antidemocráticos e o ativismo judicial. A regulamentação do processo estrutural possibilita a oportunidade de delimitação da atuação nos processos estruturais, justamente para coibir o ativismo judicial e disponibilizar as técnicas procedimentais necessárias para garantir a isonomia de tratamento para todos os envolvidos no litígio.

Além disso, os litígios estruturais quando tratados adequadamente pelo Poder Judiciário possibilitam os efeitos diretos da efetividade de decisões que garantam direitos fundamentais; modificam a percepção pública sobre a violação de direitos; incentivam que o tema seja pautado na agenda pública; promovem mobilização social e a mudança de percepção relacionada à urgência e gravidade da violação sistêmica de direitos; e resultam no amadurecimento da sociedade e das instituições (6).

Nesse contexto, é importante que se compreenda que o processo estrutural nada mais é do que o conjunto de técnicas processuais de intervenção judicial diferenciada que possibilitam e privilegiam (i) a diminuição da tensão entre os Poderes, (ii) o diálogo entre as múltiplas partes, (iii) a construção conjunta de planos que resultem no fim da violação sistêmica de direitos, (iv.) a reestruturação das instituições, e (v.) a efetividade de direitos fundamentais.

Portanto, o momento é de avanço. A comissão tem um grande desafio pela frente, o que inclui a consideração de pontos relevantes suscitados nas Audiências Públicas como a delimitação do conceito de litígio/processo estrutural, ajustes necessários nos procedimentos já existentes e sistematização de técnicas já utilizadas, possibilidade (ou não) de tutelas de urgência e suspensão de demandas individuais e a instituição de mecanismos de monitoramento do cumprimento dos planos e decisões estruturais.

Então, sim: o processo estrutural está na moda e precisamos de um procedimento adequado para tratar dos litígios estruturais que envolvem questões tão caras à sociedade como direito à saúde, à educação, à um meio ambiente ecologicamente equilibrado, entre tantos outros que serão melhor efetivados por meio do processo estrutural.

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Bibliografia

(1) SPIEGEL, Murray R. Estatística. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.
(2) Vitorelli conceitua litígios irradiados como: “a situação em que as lesões são relevantes para a sociedade envolvida, mas ela atinge, de modo diverso e variado, diferentes subgrupos que estão envolvidos no litígio, sendo que entre eles não há uma perspectiva social comum, qualquer vínculo de solidariedade. A sociedade que titularia esses direitos é fluida, mutável e de difícil delimitação, motivo pela qual se identifica com a sociedade como criação. VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças, 2018.
(3) PORFIRO, Camila Almeida. Litígios Estruturais – Legitimidades democrática, procedimento e efetividade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
(4) ARENHART, Sérgio Cruz. Processos estruturais no direito brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão, 2016.
(5) SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
(6) RODRIGUEZ-GARAVIOTO, César; FRANCO, Diana Rodríguez. Cortes y cambio social: como la corte constitucional transformo el desplazamiento forzado em Colombia. Bogotá: centros de estudio de Derecho, Justicia y Sociedad, Desjusticia, 2010.

Autores

  • é licenciada em Letras Espanhol pela UnB (Universidade de Brasília); bacharela em Direito pela UnB; mestranda em Direito pela UnB, objeto de pesquisa: litígios/processo estrutural. Pesquisadora do tema desde 2018; membro do grupo Processo Civil e Acesso à Justiça da UnB; advogada.

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