Breves linhas sobre o caso da Boate Kiss
10 de setembro de 2024, 15h25
Na última segunda-feira, 9 de setembro, apresentamos o agravo regimental contra a decisão do ministro relator que, de forma monocrática, proveu os recursos extraordinários do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e da Procuradoria-Geral da República.
Após minudente análise da decisão, temos a mais absoluta convicção de que os recursos sequer mereceriam conhecimento, quanto menos provimento e, tampouco, de forma monocrática. Inicia-se pelo fato de que o recurso não traz tema com repercussão geral, assim compreendida toda aquela que traz as características de relevância e transcendência. Dito de outro modo, é necessário que apresente questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico e que, sobretudo, transcendam os limites subjetivos da causa (artigo 102, §3º da Constituição). Por mais trágicos tenham sido os fatos em questão, as discussões tratadas em todo o processo dizem exclusivamente com eles próprios – os fatos – e as repercussões jurídico-penais sobre os acusados sobre quem recaem as imputações.
Entretanto, ainda que se entenda por tais relevância e transcendência, não se trata de hipótese que possa ser acolhida, monocraticamente, pelo ministro relator. O juízo de repercussão geral é colegiado, devendo ser submetido ao Plenário do Supremo Tribunal Federal para apreciação. São excepcionadas desse procedimento apenas os casos em que a repercussão geral já tenha sido examinada (e reconhecida), ou quando impugnar súmula ou jurisprudência dominante da Corte (artigo 323, §2º do RISTF). Não é nenhuma das hipóteses dos autos. Tanto é assim que a decisão monocrática sequer faz menção a qualquer súmula ou entendimento pacificado do Supremo Tribunal Federal.
Violação ao princípio da colegialidade
A própria decisão, quando tenta indicar a ocorrência de ofensa direta à Constituição, acaba por transcrever algumas ementas, não sendo nenhuma delas de recursos extraordinários, mas todas de Habeas Corpus. Por certo, o acesso do writ, ainda que restrito, é mais fácil do que o de recurso extraordinário, permitindo, por vezes, o enfrentamento de legislação infraconstitucional.
Afora isso, as restritas hipóteses de decisões monocráticas limitam-se aos casos descritos no artigo 21, §§1º e 2º do RISTF, quando o relator poderá cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada nos termos do artigo 543-B do CPC (atual 1.036), que trata da multiplicidade de recursos extraordinários ou, ainda, quando houver manifesta divergência a súmula do Supremo Tribunal Federal. Não é nenhum dos casos o tratado nos autos, de modo que a decisão monocrática acaba por violar o princípio da colegialidade, razão maior do princípio do duplo grau de jurisdição.
Nulidades
Não fossem todas essas, fundamentais e insuperáveis, questões acima, há, com relação a Mauro, ponto outro que não pode ser descuidado. Os acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça reconheceram a existência de quatro nulidades no julgamento do processo da Boate Kiss, sendo três delas relativas ao procedimento (sorteio dos jurados, reunião secreta entre juiz e jurados e quesitos) e uma delas apenas reconhecida em favor de Mauro (inovação acusatória, quando o Ministério Público sustenta, em réplica, o princípio da cegueira deliberada).
A decisão monocrática tratou de afastar as três nulidades gerais, apenas, reconhecendo a preclusão da matéria. Quanto à quarta, não há se falar em preclusão, na medida em que a defesa de Mauro, tão logo apresenta a inovação ministerial, insurgiu-se, pontuando durante a sessão de julgamento a referida nulidade. Com isso, não se está a tratar de omissão da decisão, mas de uma escolha deliberada do relator, afastando apenas três das quatro nulidades, razão pela qual, com relação a Mauro, neste ponto, deve ser restabelecida a decisão de anulação do julgamento, submetendo-o a novo julgamento pelo Tribunal do Júri e assegurando, desde logo, sua liberdade.
Peculiaridades
Com relação à liberdade, um último e necessário ponto a ser observado. Para muito além de todas as críticas que recaem sobre a execução imediata das sentenças do Tribunal do Júri, o processo da Boate Kiss tem peculiaridades que não foram observadas pela decisão monocrática. Tão logo o magistrado que presidiu o julgamento decretou a prisão dos acusados, sobreveio decisão liminar do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul concedendo a ordem aos quatro réus, de forma liminar. O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, por meio de uma incomum e atípica suspensão de liminar, obteve junto ao ministro presidente, à época, a sustação dos efeitos daquela medida, momento em que os acusados foram todos presos.
Mesmo assim, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul levou a julgamento o mérito do Habeas Corpus sendo que, quando pautado, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, uma vez mais, socorreu-se da Presidência do Supremo Tribunal Federal, e obteve uma decisão que censurava o tribunal gaúcho, impedindo que concedesse a ordem. A ordem foi concedida, porém sem efeitos. A decisão concessiva de habeas corpus transitou em julgado.
No final do ano de 2022, tão logo a ministra Rosa Weber assumiu a Presidência do Supremo Tribunal Federal, a suspensão de liminar foi julgada prejudicada, uma vez que as apelações já haviam sido julgadas, e o julgamento fora anulado pelas instâncias ordinárias. Ora, com a decisão do Supremo Tribunal Federal julgando prejudicado o instrumento jurídico utilizado para cassar os efeitos do habeas corpus, o raciocínio adequado é que repristinam-se seus efeitos. De forma muito clara, os réus deveriam estar sendo mantidos soltos. A decisão monocrática que impõe a prisão obrigatória representa não apenas supressão de instância como, de forma mais grave, violação à coisa julgada.
O processo é complexo e deve ser tratado dentro de suas complexidades. O ideal é que ficasse, todo ele, contido entre suas capas. Entretanto, um processo dessa grandeza torna-se uma grande disputa de narrativas, de modo que a defesa de Mauro, trazendo luz ao debate, espera que se conheçam as razões de sua insurgência e, principalmente, que a Turma conheça de seu recurso e o proveja, para que os réus sejam, enfim, julgados segundo as regras do jogo processual.
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