Opinião

Brasil, o paraíso penal da pessoa jurídica

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10 de setembro de 2024, 17h22

O combate ao crime oriundo das pessoas jurídicas é um dos temas da política criminal e da dogmática que se evidencia a tentativa da manutenção de um equilíbrio entre as garantias e a eficácia na dissuasão na incursão ao delito.

Por um lado, há o muro da dogmática, escorada em princípios e teorias que de certa forma pode limitar novas abordagens sob a escusa do avanço das barreiras principiológicas e da imputação; de outro, verifica-se o fenômeno amargo da criminalidade empresarial, por meio de sua expansão econômica, mercados liberais e o processo global.

A pessoa jurídica assume seu protagonismo na sociedade atual, e as discussões sobre um ajuste e nova interpretação do direito penal se fundam na sua visão de que o controle não é feito apenas sobre os comportamentos individuais de pessoas físicas, como sempre exercido pelo direito penal clássico. Nesse estágio atual de sociedade, de globalização e de tecnologia, busca-se o controle e reprovação de certas disfunções sociais, não apenas restrito aos indivíduos.

Delitos econômicos, lavagem de dinheiro, responsabilidade por produtos, meio ambiente, delitos informáticos, delitos inerentes ao mercado de capitais, homicídios, desobediência, entre outros, estão entre os itens atuais da política criminal. Tais exemplos descortinam comportamentos coletivos em que as empresas são os atores da sociedade capitalista moderna [1]. Desse modo, nota-se a enorme influência da pessoa jurídica (bancos, grandes corporações, associações, partidos políticos, ONGs) no plano da política criminal.

A discussão sobre as pessoas jurídicas pode gerar a falsa impressão de que apenas aquelas de grande porte seriam imputáveis. Não se trata de responsabilizar somente as pessoas jurídicas complexas ou de grande porte, mas sim aquelas formalmente constituídas.

Polêmica em punições às pessoas jurídicas

Se houve uma temática polêmica nos últimos tempos na doutrina brasileira, esse tema foi o reconhecimento da possibilidade de imputar resultados puníveis às pessoas jurídicas. Poucas questões suscitaram tantas e tão conflitantes opiniões, com alguns sendo radicalmente contra esse reconhecimento e outros que, no entanto, entendem que sua implementação não seria apenas aconselhável, mas absolutamente essencial e praticamente inevitável em uma sociedade pós-industrial.

No plano brasileiro, mesmo que a pessoa jurídica seja capaz de certas ações, tais como formalizar contratos, negócios jurídicos, contratar, demitir, realizar/não realizar pagamentos etc., sempre será dependente da ação de uma pessoa física, de modo que seria lógico que os seres humanos fossem os destinatários da imputação e sua consequente responsabilidade penal. Tem-se, portanto, que um ato da pessoa física tornaria responsável a pessoa jurídica, o que, de pronto, afronta princípios basilares como a culpabilidade, da imputação e responsabilidade subjetiva.

Spacca

O que se percebe é que a maioria dos casos e discussões acadêmicas é bastante alheia à vida cotidiana, e mesmo aqueles que não são tão improváveis dificilmente serão levados ao tribunal, corroborando o distanciamento entre a academia e a realidade do fenômeno criminológico.

O processo de imputação busca determinar se uma conduta e seu resultado podem ser atribuídos a determinado sujeito que é capaz de causar uma mudança no mundo, manifestando contrariedade socialmente reprovável de um ponto de vista em relação à legislação. Em outras palavras, o direito penal desenvolveu critérios de imputação destinados a definir se o autor do fato pode ser atribuído como aquele que possuía, ao tempo da ação, a possibilidade de se comportar de acordo com a norma, de tal forma que seu descumprimento é encarado como uma afronta à lei.

Paraíso penal

O sono dogmático perdura até os dias atuais. Os casos envolvendo a pessoa jurídica atormentam os certos teóricos do direito penal, que ainda preferem subterfúgios dogmáticos, em clara alienação do que ocorre na prática criminal. Não se pretende abandonar as categorias do direito penal, rechaçar a teoria do delito ou pretender modificar os elementos do fato típico. Mais ainda, não pretendo inovar artificiosamente com um “novo” direito penal para pessoas jurídicas, mas sim tomar por base o conteúdo dogmático aplicável às pessoas físicas, respeitando a especificidade da pessoa jurídica.

O problema tem início com a imputação de pessoas jurídicas que ocorre apenas por meio da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98). Ao menos na práxis, não se atribui responsabilidade penal para além dos delitos ambientais, tornando o Brasil em uma espécie de “paraíso penal” para a pessoa jurídica.

Os países do sistema common law, em específico Reino Unido [2] e Estados Unidos, há muito responsabilizam criminalmente as corporações pelos seus atos, sem óbices teóricos ou político-criminais.

O modelo anglo-saxão respondeu ao fenômeno da industrialização, originalmente consagrando regras puramente vicárias, expressamente previstas em um estatuto processual, tal como a Criminal justice act de 1925, no artigo 33, tornando-o um dos países europeus que primeiro cultivaram o regime por meio de construções jurisprudenciais que datam do século 19.

Regulamentação na América Latina

Essa contemplação normativa permitiu que a empresa se tornasse um sujeito de direito penal, porém, apesar disso, deve-se observar que o Reino Unido vem tendendo cada vez mais para a concepção de um modelo de autorresponsabilidade ou de responsabilidade direta [3]. Países da União Europeia como Áustria [4], Bélgica [5], Dinamarca [6], Espanha [7], Estônia [8], Finlândia [9], Islândia [10],  Luxemburgo [11], Noruega [12], Polônia [13], Portugal [14], Suécia [15] e Suíça [16] possuem suas normativas inerentes à responsabilização penal de pessoas jurídicas.

A análise do ordenamento jurídico de países latino-americanos perfaz uma realidade mais próxima econômico-social à realidade brasileira. Argentina, Bolívia, Chile, Peru, Equador e Venezuela regulamentaram a responsabilidade criminal das pessoas jurídicas. Entretanto, deve ser observado que o escopo de tal responsabilidade difere em relação às infrações abrangidas.

Nesse sentido, a Bolívia somente o faz em relação ao enriquecimento ilícito de pessoas privadas que afetam o Estado. As demais jurisdições mencionadas reconhecem a responsabilidade criminal por uma gama mais ampla de delitos, incluindo a corrupção e ofensas à administração pública.

Em qualquer caso, a maioria dessas jurisdições, ao mesmo tempo em que estabelecem a responsabilidade criminal das pessoas jurídicas, também reconhecem a responsabilidade civil ou administrativa dessas entidades. Em sua soberania, apenas Paraguai e Uruguai não regulam a responsabilidade penal de pessoas jurídicas.

O Brasil oferece condições favoráveis às pessoas jurídicas no âmbito criminal. Em exemplo, no caso dos delitos transnacionais, é benéfico que a investigação e julgamento seja em território brasileiro, pois nosso ordenamento jurídico não prevê a imputação de delitos como lavagem de dinheiro, delitos financeiros, mercado de capitais etc. Portanto, certas infringências à norma penal não são imputadas à pessoa jurídica, sendo restrita, apenas, aos delitos ambientais.

Em decisão de agosto de 2024 na Pet. 12.404, o Supremo Tribunal Federal enfrentou problemas envolvendo pessoas jurídicas (redes sociais) no território brasileiro. Os termos prolatados em relação à pessoa jurídica “(…) consistentes nos reiterados, conscientes e voluntários descumprimentos judiciais”, além da descrição da figura típica de desobediência (artigo 330 do Código Penal), a Suprema Corte, ao que parece, reconheceu elementos de consciência e voluntariedade nas ações da pessoa jurídica, aparentando avançar em elementos que viabilizariam a imputação penal autônoma.

Se pela dogmática é possível a resolução dos entraves da imputação, nos resta aguardar o despertar da política criminal.

 


[1] Por exemplo, um estudo desenvolvido pelo Instituto Max Planck apresentou que mais de 80% dos delitos econômicos são cometidos por meio de empresas. Em CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Aproximación a la dogmática de la responsabilidad penal de las personas jurídicas. In: Constitución, Derechos fundamentales y sistema penal. Semblanzas y estudios con motivo del setenta aniversario del Professor Tomás Salvador Vives Antón. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009. p. 309.

[2] Corporate Manslaughter and Homicide Act 2007.

[3] Cf.  LAUFER, William S. Corporate Bodies and Guilty Minds. The Failure of Corporate Criminal Liability. Chicago: University of Chicago Press, 2008. p. 71.

[4] Austrian law on corporate criminal liability (Verbandsverantwortlichkeitsgesetz or VbVG).

[5] Código Penal da Bégica, artigo 5: “a legal person is criminally liable for criminal offenses which either are intrinsically linked to the realisation of the corporation’s corporate purpose or the corporation’s interests, or which, according to the circumstances, were committed on the corporation’s behalf.”

[6] Código Penal da Dinamarca: § 25.

[7] Código Penal Espanhol: Artículo 31 bis. Para aprofundamento, ver BAJO FERNÁNDEZ, Miguel; FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José; GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. Tratado de responsabilidad penal de las personas jurídicas. Adaptada a la Ley 1/2015, de 30 de marzo por la que se modifica el Código Penal. 2. ed. España: Thomson Reuters, 2016.

[8] Código Penal da Estônia: § 14.

[9] Código Penal da Finlândia: Chapter 9.

[10] Código Penal da Islândia: Chapter II A.

[11] Código Penal de Luxemburgo: Chapter II. Article 34.

[12] Código Penal da Noruega: Chapter 3a. Criminal liability of enterprises.

[13] República da Polônia. Act on Liability of Collective Entities for Punishable Offences.

[14] Código Penal da República Portuguesa: Artigo 11.

[15] Código Penal da Suécia: Chapter 36, Section 7.

[16] Código Penal da Suíça: Title Seven: Corporate Criminal Liability. Art. 102: 1.

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