Direito Civil Atual

Frutos percebidos devem ser devolvidos por inadimplemento contratual?

Autor

  • Matheus Preima Coelho

    é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Membro da RDCC (Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo). Associado ao IDiP (Instituto de Direito Privado). Advogado em São Paulo no Junqueira Gomide Advogados.

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9 de setembro de 2024, 9h06

A doutrina “clássica” [1] da resolução por inadimplemento sustenta a retroatividade dos efeitos da relação contratual na hipótese de resolução como da natureza do instituto (sempre excetuando os contratos de trato sucessivo). Desse modo, por essa orientação, um dos objetivos da resolução seria o retorno ao estado anterior, restituindo tudo o quanto percebido, inclusive os frutos. Essa orientação, contudo, é problemática dogmaticamente e apresenta questionáveis efeitos práticos.

ConJur

Cogite-se da resolução da relação contratual entre o comprador de determinado apartamento parceladamente e que tomou posse desse imóvel no início do contrato. Ele, então, aluga o apartamento para terceiros, recebendo frutos civis da coisa.

Caso ele ou o comprador fiquem inadimplentes definitivamente com determinada obrigação e o contrato se resolva, ele deverá devolver os alugueres que percebeu da posse de boa-fé do imóvel enquanto vigorava o contrato?

Cogite-se, ainda, de um fazendeiro comprar um imóvel rural para ali plantar e colher determinados frutos naturais, estabelecendo sua atividade agrária. Ocorrendo a resolução por inadimplemento, após um ano de uso e gozo da coisa recebida pelo contrato de compra e venda, os frutos devem ser restituídos como decorrência da resolução por inadimplemento da relação contratual? As questões aqui suscitadas demonstram que o tema merece reflexões aprofundadas.

Modificação da relação

Para iniciar um esboço de resposta [2], impera destacar que a resolução consiste em instituto que visa à modificação da relação contratual, e não propriamente à sua extinção. Aludiu-se, a partir da formulação de Heinrich Stoll [3], que a resolução modifica a relação jurídica contratual para transformá-la em relação de liquidação [4].

Outrossim, diferentemente do Código Civil português [5], o Código Civil brasileiro não possui dispositivo que determine os efeitos retroativos da resolução, e não há regime jurídico sobre a sua eficácia restituitória. Isso significa que as teses que advogam a retroatividade de seus efeitos, com fulcro, especialmente, no artigo 182 do Código Civil [6], não encontram amparo legal, de modo que é possível sustentar que a resolução da relação jurídica contratual não necessariamente conduz à restauração a um estado de coisas anterior.

Consequentemente, as respostas que se baseiam nessa questionável premissa da retroatividade de seus efeitos podem ser revistas, ao considerarmos que a resolução não acarreta o retorno ao estado de coisas anterior, como se a relação contratual jamais tivesse existido, mas a modifica, resultando na restituição das prestações já cumpridas e na indenização dos danos sofridos.

Isso permite um novo enfoque aos casos de resolução contratual, sobretudo no que diz respeito ao seu efeito restituitório, viabilizando conclusões mais adequadas dogmaticamente.

Boa-fé

Com efeito, se a resolução não apaga retroativamente todos os efeitos produzidos pela válida relação jurídica contratual, a posse de boa-fé advinda do negócio jurídico não pode ser tida como de má-fé. Há, portanto, à luz dos artigos 238-242 do Código Civil [7], a proteção ao contraente de boa-fé que possui justo título (aquele eficaz quando do recebimento dos frutos) apto a adquirir os frutos percebidos durante o iter obrigacional.

Nesse cenário, não se afigura possível ter como de má-fé o contratante que desconhecia o vício da posse (até porque não havia vício). Consequentemente, quem recebeu os frutos de boa-fé não deve restituí-los, porque, em regra, os efeitos contratuais são mantidos, não havendo apagamento do quanto já ocorrido.

Houve, à época, legítima posse de boa-fé que permitiu o recebimento daqueles frutos, apenas deixando de produzir efeitos para o futuro, de modo que apenas os frutos pendentes pertencem à outra parte, a quem caberá receber a prestação restituível.

Recorda-se que o efeito liberatório da resolução desobriga as partes de cumprir as prestações principais [8], sem apagar no passado a posse de boa-fé tida pelo contraente, mesmo que inadimplente, e os frutos recebidos. Os frutos, é necessário que se diga, não nascem do dever prestacional, mas da posse de boa-fé do respectivo bem que os gera, não podendo confundi-los.

Fruto

Sobre o tema, importante consignar que o fruto, como sustenta Gustavo Haical, deve ser classificado em relação à coisa principal como: (i) parte integrante (o fruto pendente); (ii) ou como pertença; (iii) ou como coisa independente (como o fruto percebido) [9]. Não há “acessoriedade” dos frutos percebidos à coisa principal, portanto, até porque, como sustenta o autor, baseando-se nas lições de Pontes de Miranda, a ciência prescinde do conceito de acessório para bens [10].

Incide, como sustentado, o parágrafo único do artigo 242, remetendo aos artigos 1.214 e seguintes do Código Civil. Essa opinião não é nova e já foi apresentada por outros autores, os quais sustentam que, além disso, só cessaria a boa-fé subjetiva do artigo 1.214 do Código Civil, na hipótese de resolução contratual, a partir da resolução, por exemplo [11].

Igualmente, no Direito Civil português, defende Pedro Romano Martinez [12], diante do artigo 289º do Código Civil português, que se aplicam as regras da posse e não do enriquecimento sem causa. Com relação aos frutos, segue-se o mesmo que se sustenta ao Direito brasileiro: como o possuidor de boa-fé mantém os frutos recebidos, a parte restitui a prestação, mas não os frutos percebidos. Os frutos pendentes, por sua vez, pertencem ao credor da pretensão restituitória [13].

Má-fé

Dificuldade resulta nos casos em que a parte celebra o contrato sabendo que não irá cumprir, pois pretendia auferir vantagem do recebido. Nessa hipótese, sustenta o autor acima, a parte estaria de má-fé e os frutos devem ser devolvidos [14].

Por sua vez, Paulo Mota Pinto adota posição restritiva, aduzindo que apenas o conhecimento da razão, mesmo futura, da “resolubilidade” contratual colocaria a parte em situação de má-fé, citando como exemplos a citação para uma ação ou a declaração de resolução [15]. Adota-se a posição de Mota Pinto, pois a partir da resolução que a posse deixa de ser de boa-fé, já que o contratante é obrigado a restituir o bem e não pode mais tê-lo em sua esfera jurídica.

De todo modo, a priori e sem esgotamento desse difícil tema pelos limites da coluna, pretendendo trazer o debate à comunidade jurídica, parece-se que os frutos percebidos, como regra, não devem ser devolvidos juntamente das prestações principais na resolução por inadimplemento da relação contratual, excetuando aqueles percebidos depois do exercício da cláusula resolutiva expressa ou depois da resolução judicial, em que a posse do contratante seria de má-fé e não teria mais direito aos frutos recebidos.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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[1] Paradigmática dessa posição é a opinião de Ruy Rosado de Aguiar Júnior, cf. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 616.

[2] Neste artigo, trataremos de hipóteses de inexecução voluntária e definitiva da prestação. Pressupõe-se, portanto, a inexistência de cláusula contratual resolutiva e, ainda, de regulação contratual acerca da própria resolução. Além disso, por dedicar o estudo à resolução fundada no inadimplemento definitivo imputável ao devedor, serão deixadas de fora outras hipóteses de resolução do sistema, como por impossibilidade superveniente inimputável e por onerosidade excessiva.

[3] Heinrich Stoll reviu a doutrina da resolução e sustentou que esta não visaria a simplesmente extinguir o contrato, mas a transformá-lo. Desse modo, a relação contratual passaria, pela resolução, à relação de liquidação (STOLL, Heinrich. Rücktritt und schadensersatz. Archiv Für Die Civilistische Praxis, v. 131, n. 1/2, p. 141-185, 1929). Como narram, com efeito, Heinrich Stoll defendeu essa tese inicialmente em 1921, no artigo “Die Wirkungen des vertragsmäßigen Rücktritts”, o qual só existiria um exemplar datilografado em Berlim (ADAMEK, Marcelo Vieira von; CONTI, André Nunes. Notas sobre a relação de liquidação dos contratos resolvidos (análise crítica da tese da eficácia retroativa da resolução no direito brasileiro). Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 36, p. 153-184, jul.-set., 2023, nota de rodapé 14).

[4] LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, t. I, p. 390-396; PROENÇA, José Carlos Brandão. A resolução do contrato no direito civil: do enquadramento e do regime. Coimbra: Coimbra editora, 2006, p. 160; AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 473-481. Nesse sentido, cf. MOTA PINTO, Paulo. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Coimbra: Coimbra editora, 2008, v. II, p. 991). Ainda, consigna-se que essa orientação é a predominante atualmente na literatura alemã (MENEZES CORDEIRO, António. Art. 433.º In: MENEZES CORDEIRO, António (coord.). Código Civil comentado: das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 2021, v. 2, p. 260).

[5] Conforme artigo 434.º 1 e 2: “1. A resolução tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução. 2. Nos contratos de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efectuadas, excepto se entre estas e a causa da resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas.”. Ainda, no artigo 433.º, alude-se que os efeitos da resolução se equiparam à nulidade ou anulabilidade do negócio: “Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do disposto nos artigos seguintes.”. Ressalva-se que essa retroatividade é entendida atualmente como relativa e delimitada (MENEZES CORDEIRO, António. Art. 434.º In: MENEZES CORDEIRO, António (coord.). Código Civil comentado: das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 2021, v. 2, p. 264). Em sentido diverso: “Por via de regra, a resolução tem eficácia retroactiva, levando à reconstituição do estado anterior à celebração do contrato, mas, como se trata de uma solução supletiva, em alguns casos só produz efeitos ex nunc, salvaguardando as situações jurídicas entretanto constituídas.” (MARTINEZ, Pedro Romano.   Da cessação do contrato. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 179).

[6] ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 4. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 146.

[7] Como o fundamento do direito à restituição na resolução contratual por inadimplemento é contratual, subsumindo-se às regras da teoria geral das obrigações, não se aplicam os artigos do instituto do enriquecimento sem causa ou do pagamento indevido.

[8] MARTINEZ, Pedro Romano. Da cessação do contrato. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 175; MOTA PINTO, Paulo. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Coimbra: Coimbra editora, 2008, v. II, p. 1640; LEITE, Bruna Duarte. A resolução parcial por inadimplemento: fundamentos, requisitos e eficácia. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023, p. 71-72. Igualmente, cf. MENEZES CORDEIRO, António. Art. 433.º In: MENEZES CORDEIRO, António (coord.). Código Civil comentado: das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 2021, v. 2, p. 260-261.

[9] HAICAL, Gustavo. As partes integrantes e a pertença no Código Civil. Revista dos Tribunais, v. 934, p. 49-135, ago. 2013, item 1 e item 2.6.

[10] Ainda, reforçando o exposto: “No momento da separação de uma parte integrante, que se independentiza, a aquisição é originária e não derivativa. O proprietário da parte integrante, no igual momento em que a separa, deixa de ser proprietário e passa a ser da res nova por aquisição originária. Em princípio, estampado no artigo 1.232 do CC, o proprietário da parte integrante separada é o proprietário da res nova. As dificuldades exsurgem quando uma pessoa, distinta do proprietário, tem a posse da coisa principal ao momento da separação. Nesse caso, o proprietário da coisa principal não será proprietário dos frutos ou produtos separados se, por exemplo, restar concretizado o suporte fático dos arts. 1.214 e 1.215 do CC; dos arts. 1.283 e 1.284 CC; ou se a aquisição decorrer do exercício de direito real – e.g., de uso ou de usufruto -; ou se a aquisição decorrer do direito pessoal de apropriação mais posse.” (HAICAL, Gustavo. As partes integrantes e a pertença no Código Civil. Revista dos Tribunais, v. 934, p. 49-135, ago. 2013, item 2.6).

[11] ADAMEK, Marcelo Vieira von; CONTI, André Nunes. Notas sobre a relação de liquidação dos contratos resolvidos (análise crítica da tese da eficácia retroativa da resolução no direito brasileiro). Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 36, p. 153-184, jul.-set., 2023.

[12] MARTINEZ, Pedro Romano. Da cessação do contrato. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 186.

[13] MARTINEZ, Pedro Romano. Da cessação do contrato. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 187.

[14] MARTINEZ, Pedro Romano. Da cessação do contrato. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 186-188.

[15] MOTA PINTO, Paulo. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Coimbra: Coimbra editora, 2008, v. II, p. 992, nota 2775.

Autores

  • é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Membro da RDCC (Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo). Associado ao IDiP (Instituto de Direito Privado). Advogado em São Paulo no Junqueira Gomide Advogados.

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