Contra relativização da violência na interpretação da nova Lei de Guarda
9 de setembro de 2024, 18h32
No ano passado, foram promovidas alterações no Código Civil Brasileiro e no Código de Processo Civil, por meio da Lei nº 14.713/2023, “para estabelecer o risco de violência doméstica ou familiar como causa impeditiva ao exercício da guarda compartilhada, bem como para impor ao juiz o dever de indagar previamente o Ministério Público e as partes sobre situações de violência doméstica ou familiar que envolvam o casal ou os filhos”.
É fundamental compreender e considerar os impactos dessas alterações no contexto familiar e jurídico, para que não se relativize a violência nas relações conjugais e parentais.
A primeira alteração foi a que modificou o § 2º do artigo 1.584 do Código Civil. Além das exceções já conhecidas ao exercício da guarda compartilhada, foi inserida uma nova possibilidade “quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar”.
A segunda alteração diz respeito ao Código de Processo Civil, que passou a vigorar acrescido do artigo 699-A, que determina que, nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação, o juiz indagará às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de cinco dias para a apresentação de prova ou de indícios pertinentes.
Há correntes de pensamento que divergem sobre como o risco de violência deve ser analisado no contexto familiar. Uma abordagem restritiva sugere que a violência deva ser examinada especificamente em relação à criança ou à mãe, enquanto outra corrente propõe uma análise mais ampla, reconhecendo a possibilidade de que a violência possa afetar tanto a criança quanto a mãe, simultaneamente.
Sobre o tema, vale mencionar o posicionamento de Rodrigo Pereira da Cunha [1]:
“Na violência doméstica, também, é preciso separar agressões à mãe e agressões ao(s) filhos(s). O homem pode ser um péssimo marido/companheiro e, no entanto, ser um bom pai. Assim como há casos em que ele pode ser um ótimo marido/companheiro e não ser um bom pai. Certamente, há casos em que o agressor da mãe é, também, agressor do(s) filho(s) na medida em que desrespeita a mãe, principalmente na frente do filho. É preciso separar o joio do trigo, ou seja, conjugalidade de parentalidade, sob pena de trazer graves prejuízos aos filhos, ou mesmo usar a Lei como instrumento de vingança quando, na verdade, o seu espírito é o de proteção às pessoas vulneráveis. Portanto, não é qualquer indício de violência contra a mãe que autoriza a guarda unilateral. A referida lei alterou foi o Código Civil não a Lei Maria da Penha. Ou seja, a caracterização da violência, para efeitos desta lei deve ser em relação à criança e adolescente” (CUNHA, 2023).
A posição do autor parece reconhecer a complexidade das dinâmicas familiares envolvendo violência doméstica. No entanto, há que se pontuar algumas questões.
A primeira delas, diz respeito à generalização das situações, ao considerar que um pai pode ser bom para o filho, mas ao mesmo tempo mau para sua esposa ou companheira, quando a coloca em risco ou em situação de violência doméstica. É preciso explorar e investigar o impacto psicológico e emocional que a exposição à violência doméstica pode ter nas crianças e adolescentes, mesmo que não sejam diretamente alvo das agressões.
O segundo ponto diz respeito à consideração da interconexão entre conjugalidade e parentalidade [2]. Embora o autor defenda a necessidade de separá-las, é importante reconhecer que esses aspectos muitas vezes estão intrinsecamente ligados. Por exemplo, um ambiente conjugal abusivo pode ter impactos diretos na capacidade dos pais de desempenharem a parentalidade de forma equitativa.
O terceiro ponto diz respeito ao risco de minimização da violência contra a mãe. Ao sugerir que não é qualquer indício de violência contra a mãe que autoriza a guarda unilateral, pode-se inadvertidamente contribuir para a relativização da gravidade da violência contra a mulher. É importante enfatizar que a violência doméstica contra a mãe pode ter efeitos devastadores não apenas para ela, mas também para seus filhos.
Cite-se, por oportuno, a existência da violência vicária [3] contra a mulher, que utiliza a instrumentalização dos filhos objetivando causar dor e sofrimento à genitora. Segundo Thimotie Aragon Heemann, trata-se de uma espécie de violência que ocorre mediante a prática de agressões físicas, psicológicas, morais contra os filhos, objetivando causar dor e sofrimento à genitora.
O quarto argumento diz respeito ao foco limitado na abordagem das alterações legislativas promovidas. É comum que os autores se atentem que a lei em questão alterou o Código Civil e não a Lei Maria da Penha, mas não exploram suficientemente as implicações práticas dessa distinção. Do mesmo modo, se poderia argumentar que a Lei não alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e que, portanto, não se aplicaria às crianças e adolescentes.
Alvos
Importante destacar a posição de Maria Berenice Dias [4] quanto à identificação de quem é alvo da violência doméstica ou familiar de acordo com as alterações normativas aqui exploradas. Segundo a autora, a Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher; e a chamada Lei Henry Borel (Lei 14.344/2022) cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente.
Lembra a autora que é chamada de violência doméstica e familiar tanto a cometida contra mulheres como a perpetrada contra crianças e adolescentes. Contudo, adverte que, como o indigitado dispositivo foi inserido no Código Civil, no capítulo que trata da proteção dos filhos, estaria a se referir à probabilidade de violência contra os filhos somente. Até porque, na visão dela, seria equivocado suspender a convivência paterno-filial diante de mera alegação de probabilidade de risco de violência contra a mulher.
Alterações relevantes
A preocupação em modificar legislações para coibir e minimizar as violências está sendo perceptível. Cite-se a Lei nº 13.894/19 que instituiu a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para requerimento de divórcio ou dissolução de união estável, bem como, a Lei nº 14.188/21, que reconheceu a existência da violência psicológica, tipificando-a penalmente (Barbosa, 2023, p. 80 e 81).
Trata-se de mudanças importantes para refletir, inclusive, o acréscimo da exceção no artigo 1.584 do Código Civil, em 2023, qual seja, a impossibilidade de guarda compartilhada quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar. Pois, seguem na mesma estrada de implementação de ações para coibir outros danos pós violência.
É preciso considerar a importância da interseccionalidade dos casos de violência doméstica: levar em consideração que as mulheres em situação de violência doméstica muitas vezes são vítimas conjuntamente e simultaneamente com as crianças. Portanto, a interpretação exclusiva de que a referência é apenas os filhos pode negligenciar a proteção das mães.
Caso a caso
Por último, a falta de contextualização das medidas protetivas merece destaque. Embora suspender a convivência paterno-filial baseado apenas na alegação de probabilidade de risco de violência contra a mulher possa parecer absurdo, é importante considerar que cada caso deve ser analisado individualmente, levando em conta o contexto e as evidências apresentadas.
A corrente que propõe uma análise mais ampla, reconhece a possibilidade de que a violência possa afetar tanto a criança quanto a mãe simultaneamente. Primeiramente, considerando que a violência doméstica pode criar um ambiente prejudicial para todos os membros da família, é importante reconhecer que tanto a mãe quanto a criança podem experenciar as opressões cada qual a partir do seu lugar.
Por exemplo, se a mulher está sofrendo violência física em frente aos seus filhos ou se estes escutam os sons da violência, estes não seriam vítimas indiretas, mas sim diretas, pois, são assegurados pelo princípio da proteção integral do Estatuto da Criança e do Adolescente. Tais experiencias negativas, advindas através das violências vistas, ouvidas ou sentidas, podem causar danos psicológicos, na saúde mental, comportamental, entre outros, capazes de tomar proporções significativas na existência da pessoa.
Proteção integral
Todo esse debate está envolvido com a não recomendação de realização de sessões consensuais, que têm ganhado espaço de destaque nas ações de família com o CPC de 2015. A mediação, por exemplo, busca um diálogo construtivo e respeitoso entre as partes envolvidas, especialmente nas questões relacionadas ao Direito das Famílias, em que há relações anteriores que se protraiam no tempo, como é o caso das situações de guarda.
No entanto, é fundamental que a mediação e conciliação estejam alinhadas ao princípio da proteção integral, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece que crianças e adolescentes devem ser protegidos de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Ou seja, o bem-estar delas deve ser priorizado em todas as decisões judiciais e procedimentos relacionados à guarda. No mesmo sentido, sessões consensuais não são recomendadas para tratar conflitos que envolvam risco de violência doméstica, seja ela corrente ou latente, a não ser que se tenham disponíveis mediadores treinados na temática e se utilizem estratégias de mediação indireta, que evite qualquer risco de dano.
A guarda compartilhada, conforme destacado por Martins e Osterne (2020, p. 209 e 210), é influenciada por disparidades significativas em termos de capital social e econômico entre homens e mulheres. Essas diferenças se refletem nas diversas maneiras como a cooperação parental é negociada. No entanto, a realidade para famílias em situação de pobreza, vulnerabilidade e miséria é marcada por obstáculos significativos, onde a prioridade primordial é a própria sobrevivência.
Outros desafios
Para mulheres que têm medidas protetivas e filhos, a organização da guarda e convivência, especialmente na modalidade assistida, apresenta desafios adicionais. Nos processos judiciais de família, os juízes frequentemente solicitam que a mãe indique alguém de confiança para levar a criança ao pai durante visitas supervisionadas.
No entanto, familiares nem sempre estão dispostos a assumir essa responsabilidade, o que pode exigir a contratação de uma cuidadora para desempenhar esse papel, gerando custos, mais conflitos e outros desgastes.
Assim, é importante abordar a questão da violência entre os pais e seu impacto na vida dos filhos. A violência doméstica é uma questão grave que pode afetar significativamente o bem-estar e o desenvolvimento emocional, psicológico e social das crianças e adolescentes. Portanto, é fundamental que os profissionais do sistema de justiça estejam preparados para identificar e lidar com situações de risco, sem relativizar a violência.
A guarda compartilhada, embora desestabilize a assimetria de gênero ao promover modalidades plurais de paternidade e maternidade, não elimina as desigualdades entre homens e mulheres no exercício da parentalidade (Martins e Osterne, 2020, p. 210). Nesse contexto, é crucial mitigar os danos causados pela violência doméstica e familiar por meio de medidas protetivas que fortaleçam os direitos das mulheres, das meninas e das crianças e adolescentes.
Portanto, em meio aos debates sobre as alterações legislativas relacionadas à guarda de crianças e adolescentes em casos de violência doméstica e familiar, é essencial considerar a complexidade dessas questões e seus impactos nas vidas das pessoas envolvidas. É preciso destacar a importância de uma análise cuidadosa das situações, levando em conta as necessidades e direitos das crianças e adolescentes, dos pais e das vítimas de violência, sem relativizar qualquer espécie de risco.
Referências
Barbosa, Gabriela Jacinto. Violência contra as mulheres e a interlocução com o Direito das Famílias: guarda, afetos e desafetos. In: HUGILL, Michelle de Souza Gomes et al. (Org.). Coleção Sistema de Justiça, Gêneros e Diversidades: Estudos e práticas sobre aspectos socioculturais das violências contra as mulheres. Florianópolis: Editora Academia Judicial, 2023. v. 4, 604 p.
Martins, L. H. Campos; Osterne, M. do S. Ferreira. Guarda Compartilhada e igualdade de gênero: uma equação possível? Revista Dizer, Fortaleza, v. 5, n. 1, p. 196-214, 2020. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/dizer/article/view/60360. Acesso em: 8 jul. 2024.
IBDFAM. Guarda Compartilhada, Violência Doméstica e a Lei 14.713, de 2023. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/2076/Guarda+Compartilhada%2C+Viol%C3%AAncia+Dom%C3%A9stica+e+a+Lei+14.713%2C+de+2023. Acesso em: 8 jul. 2024.
Conjur. A família no direito em 2023: uma retrospectiva. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-31/a-familia-no-direito-em-2023-uma-retrospectiva/. Acesso em: 8 jul. 2024.
IBDFAM. “Guarda” no ECA e no Código Civil. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/2106/%22Guarda%22+no+ECA+e+no+C%C3%B3digo+Civil. Acesso em: 8 jul. 2024.
[1] Para saber mais, consultar: https://ibdfam.org.br/artigos/2076/Guarda+Compartilhada%2C+Violência+Doméstica+e+a+Lei+14.713%2C+de+2023
[2] Há situações em há conjugalidade sem parentalidade e vice-versa.
[3] Para saber mais: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/violencia-vicaria-contra-a-mulher-e-o-direito-das-familias-um-debate-necessario-06052024
[4] Para saber mais: https://ibdfam.org.br/artigos/2106/%22Guarda%22+no+ECA+e+no+Código+Civil
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